Vou, pois, começar, Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo, por escrever
	o que o bom Deus me queira fazer lembrar do Francisco. Espero
	que Nosso Senhor lhe faça conhecer, no Céu, o que a seu respeito
	escrevo na terra, para que, junto de Jesus e Maria, interceda por
	mim, em especial nestes dias.
	A amizade que me unia ao Francisco era apenas a de parentesco (4) e a que consigo traziam as graças que o Céu se dignava
	conceder-nos.
	O Francisco não parecia irmão da Jacinta senão nas feições
	do rosto e na prática da virtude. Não era, como ela, caprichoso e
	vivo; era, ao contrário, de natural pacífico e condescendente.
	Quando, nos nossos (jogos) e brincadeiras, algum se empenhava em negar-lhe os seus direitos por ter ganhado, cedia sem
	resistência, limitando-se a dizer apenas:
	– Pensas que ganhaste tu? Pois sim! A mim isso não me importa.
	Não manifestava, como a Jacinta, a paixão pela dança; gostava mais de tocar o pifarito, enquanto os outros dançavam.
	Nos jogos, era bastante animado, mas poucos gostavam de
	jogar com ele, porque perdia quase sempre. Eu mesma confesso
	que simpatizava pouco com ele, porque o seu natural pacifico
	excitava, por vezes, os nervos da minha demasiada vivacidade.
	Às vezes, pegava-lhe por um braço, obrigava-o a sentar-se no chão
	ou em alguma pedra, mandava-lhe que estivesse quieto e ele
	obedecia-me, como se eu tivesse uma grande autoridade. Depois,
	sentia pena, ia buscá-lo pela mão e vinha com o mesmo bom humor,
	como se nada tivesse acontecido. Se alguma das outras crianças
	porfiava em tirar-lhe alguma coisa que lhe pertencesse, dizia:
	– Deixa lá! A mim que me importa?
	Recordo que chegou, um dia, a minha casa com um lenço do
	bolso, com Nossa Senhora de Nazaré pintada, que dessa praia
	acabavam de lhe trazer. Mostrou-mo com grande alegria e toda
	aquela criançada o veio admirar. De mão em mão, a poucos ins-
	(4) A mãe do Francisco e o pai de Lúcia eram irmãos.
	tantes, o lenço desapareceu. Procurou-se, mas não se encontrava. Pouco depois, descobri-o no bolso dum outro pequeno. Quis-lho
	tirar, mas ele porfiava que era dele, que também Iho tinham trazido
	da praia. Então, o Francisco, para acabar com a contenda, aproximou-se, dizendo:
	– Deixa-o lá! A mim que me importa o lenço?
	Parece-me que, se houvesse crescido, o seu defeito principal
	seria o de não-te-rales.
	Quando, aos 7 anos, comecei a pastorear o meu rebanho, ele
	pareceu ficar indiferente. Lá ia, à noite, esperar-me com a sua
	irmãzinha, mas parecia ir mais para lhe fazer a vontade que por
	amizade. Iam esperar-me no pátio de meus pais. E enquanto a
	Jacinta corria a meu encontro, logo que sentia os chocalhos do
	rebanho, ele esperava-me sentado nuns degraus de pedra que
	havia em frente da porta de casa. Depois, lá ia connosco, para a
	velha eira, a brincar, enquanto esperávamos que Nossa Senhora e
	os Anjos acendessem as Suas candeias. Animava-se também a
	contá-las, mas nada o encantava tanto como o lindo nascer e
	pôr-do-sol. Enquanto deste se avistava algum raio, não investigava se já havia alguma candeia acesa.
	– Nenhuma candeia é tão bonita como a de Nosso Senhor –
	dizia ele à Jacinta que gostava mais da de Nossa Senhora, porque, dizia ela, não faz doer a vista.
	E entusiasmado seguia com a vista todos os raios que,
	dardejando nos vidros das casas das aldeias vizinhas ou nas gotas de água espalhadas nas árvores e matos da serra, (os) faziam
	brilhar como outras tantas estrelas, a seu ver mil vezes mais bonitas que as dos Anjos.
	Quando, com tanta insistência, pediu à mãe que o deixasse ir
	com o seu rebanho para andar comigo, era mais bem por fazer a
	vontade à Jacinta que gostava mais dele que de seu irmão João.
	Um dia que a mãe, já pouco contente, lhe negava essa licença,
	respondeu com a sua paz natural:
	– A mim, minha Mãe, pouco me importa. A Jacinta é que quer
	que eu vá.
	Em outra ocasião, confirmou isto mesmo. Veio a minha casa
	uma das minhas antigas companheiras convidar-me para ir com
	ela, pois tinha, para esse dia, uma boa pastagem. Como o dia se
	apresentava fosco, fui a casa de minha tia perguntar se ia o Fran-
	cisco com a Jacinta ou se ia seu irmão João, porque, no caso de ir
	este último, preferia a companhia da outra antiga companheira.
	Minha tia tinha já decidido que, aquele dia, por estar de chuva, ia
	o João. Mas o Francisco quis ir ainda junto da mãe fazer uma nova
	insistência. Ao receber um não, seco e sacudido, respondeu:
	– A mim, tanto me dá. A Jacinta é que tem mais pena.
		Vou, pois, começar, Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo, por escrever
	
		o que o bom Deus me queira fazer lembrar do Francisco. Espero
	
		que Nosso Senhor lhe faça conhecer, no Céu, o que a seu respeito
	
		escrevo na terra, para que, junto de Jesus e Maria, interceda por
	
		mim, em especial nestes dias.
	
		A amizade que me unia ao Francisco era apenas a de parentesco (4) e a que consigo traziam as graças que o Céu se dignava
	
		conceder-nos.
	
		O Francisco não parecia irmão da Jacinta senão nas feições
	
		do rosto e na prática da virtude. Não era, como ela, caprichoso e
	
		vivo; era, ao contrário, de natural pacífico e condescendente.
	
		Quando, nos nossos (jogos) e brincadeiras, algum se empenhava em negar-lhe os seus direitos por ter ganhado, cedia sem
	
		resistência, limitando-se a dizer apenas:
	
		– Pensas que ganhaste tu? Pois sim! A mim isso não me importa.
	
		Não manifestava, como a Jacinta, a paixão pela dança; gostava mais de tocar o pifarito, enquanto os outros dançavam.
	
		Nos jogos, era bastante animado, mas poucos gostavam de
	
		jogar com ele, porque perdia quase sempre. Eu mesma confesso
	
		que simpatizava pouco com ele, porque o seu natural pacifico
	
		excitava, por vezes, os nervos da minha demasiada vivacidade.
	
		Às vezes, pegava-lhe por um braço, obrigava-o a sentar-se no chão
	
		ou em alguma pedra, mandava-lhe que estivesse quieto e ele
	
		obedecia-me, como se eu tivesse uma grande autoridade. Depois,
	
		sentia pena, ia buscá-lo pela mão e vinha com o mesmo bom humor,
	
		como se nada tivesse acontecido. Se alguma das outras crianças
	
		porfiava em tirar-lhe alguma coisa que lhe pertencesse, dizia:
	
		– Deixa lá! A mim que me importa?
	
		Recordo que chegou, um dia, a minha casa com um lenço do
	
		bolso, com Nossa Senhora de Nazaré pintada, que dessa praia
	
		acabavam de lhe trazer. Mostrou-mo com grande alegria e toda
	
		aquela criançada o veio admirar. De mão em mão, a poucos ins-
	
		tantes, o lenço desapareceu. Procurou-se, mas não se encontrava. Pouco depois, descobri-o no bolso dum outro pequeno. Quis-lho
	
		tirar, mas ele porfiava que era dele, que também Iho tinham trazido
	
		da praia. Então, o Francisco, para acabar com a contenda, aproximou-se, dizendo:
	
		– Deixa-o lá! A mim que me importa o lenço?
	
		Parece-me que, se houvesse crescido, o seu defeito principal
	
		seria o de não-te-rales.
	
		Quando, aos 7 anos, comecei a pastorear o meu rebanho, ele
	
		pareceu ficar indiferente. Lá ia, à noite, esperar-me com a sua
	
		irmãzinha, mas parecia ir mais para lhe fazer a vontade que por
	
		amizade. Iam esperar-me no pátio de meus pais. E enquanto a
	
		Jacinta corria a meu encontro, logo que sentia os chocalhos do
	
		rebanho, ele esperava-me sentado nuns degraus de pedra que
	
		havia em frente da porta de casa. Depois, lá ia connosco, para a
	
		velha eira, a brincar, enquanto esperávamos que Nossa Senhora e
	
		os Anjos acendessem as Suas candeias. Animava-se também a
	
		contá-las, mas nada o encantava tanto como o lindo nascer e
	
		pôr-do-sol. Enquanto deste se avistava algum raio, não investigava se já havia alguma candeia acesa.
	
		– Nenhuma candeia é tão bonita como a de Nosso Senhor –
	
		dizia ele à Jacinta que gostava mais da de Nossa Senhora, porque, dizia ela, não faz doer a vista.
	
		E entusiasmado seguia com a vista todos os raios que,
	
		dardejando nos vidros das casas das aldeias vizinhas ou nas gotas de água espalhadas nas árvores e matos da serra, (os) faziam
	
		brilhar como outras tantas estrelas, a seu ver mil vezes mais bonitas que as dos Anjos.
	
		Quando, com tanta insistência, pediu à mãe que o deixasse ir
	
		com o seu rebanho para andar comigo, era mais bem por fazer a
	
		vontade à Jacinta que gostava mais dele que de seu irmão João.
	
		Um dia que a mãe, já pouco contente, lhe negava essa licença,
	
		respondeu com a sua paz natural:
	
		– A mim, minha Mãe, pouco me importa. A Jacinta é que quer
	
		que eu vá.
	
		Em outra ocasião, confirmou isto mesmo. Veio a minha casa
	
		uma das minhas antigas companheiras convidar-me para ir com
	
		ela, pois tinha, para esse dia, uma boa pastagem. Como o dia se
	
		apresentava fosco, fui a casa de minha tia perguntar se ia o Fran-
	
		cisco com a Jacinta ou se ia seu irmão João, porque, no caso de ir
	
		este último, preferia a companhia da outra antiga companheira.
	
		Minha tia tinha já decidido que, aquele dia, por estar de chuva, ia
	
		o João. Mas o Francisco quis ir ainda junto da mãe fazer uma nova
	
		insistência. Ao receber um não, seco e sacudido, respondeu:
	
		– A mim, tanto me dá. A Jacinta é que tem mais pena.
	(4) A mãe do Francisco e o pai de Lúcia eram irmãos.
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