16.1 - AS FACULDADES COMO DEGRAUS COMUNS

16.1 - AS FACULDADES COMO DEGRAUS COMUNS

 

Então Deus Pai, cheio de bondade, olhou para o desejo santo e a fome daquela serva e lhe disse: - Filha querida, não desprezo os santos desejos dos homens; gosto até de realiza-los. Vou mostrar e explicar quanto pedes. Queres que eu te fale detalhadamente sobre os três degraus e diga-te como hão de agir os pecadores para abandonar o rio do pecado e atingir a ponte. Já me ocupei deste assunto antes quando falei da ilusão e cegueira dos maus, esses "mártires" do demônio que vivem na certeza do inferno. Mostrei que recompensa recebem por suas más ações (14.5) e fiz ver como deveriam comportar-se (14.14). Todavia, para atender ao teu pedido, vou dar maiores explicações.

 

Já sabes que todos os males procedem do egoísmo (2.7); é ele que obscurece a razão, na qual se encontra a iluminação da fé. Quem perde uma dessas duas luzes, perde ambas. Ao criar o homem à minha imagem e semelhança, dei-lhe a memória, a inteligência e a vontade. Entre elas, a mais nobre é a inteligência. Embora seja movida pela vontade, é a inteligência que alimenta a vontade. Por sua vez, a vontade fornece à memória a recordação de mim e de meus favores. Essa recordação dará à pessoa solicitude e gratidão. Como vês, uma faculdade reabastece a outra, nutrindo o homem na vida da graça.

 

Não vive o homem sem amor; ele sempre procura algo para amar. Criei por amor, criei-o no amor. Assim, a vontade move a inteligência, quase dizendo-lhe: "Quero amar; o amor é meu sustento". Desperta-se então a inteligência e responde: " Se queres amar, vou dar-te o bem para que o ames"! Reflete ela sobre a dignidade humana e sobre a indignidade proveniente do pecado. Na dignidade enxerga a bondade e o amor com que criei o homem; na indignidade percebe a misericórdia, graças à qual dou-lhe o tempo (de arrepender-se) e o liberto do mal. Diante dessas realidades, a vontade se alimenta de amor: sente o desejo santo, despreza a sensualidade, torna-se humilde e paciente, concebe interiormente as virtudes, pratica-as mais ou menos perfeitamente no próximo, de acordo com a perfeição atingida. Mas disso falarei depois (18).

 

Em sentido inverso, se o apetite sensível procura os bens materiais, a eles orienta-se a inteligência; e quando a mesma toma como objeto os bens passageiros, surgem o egoísmo, o desprezo pelas virtudes, o apego ao vício e, como consequência, o orgulho e a impaciência. Por sua vez, a memória encher-se-á com tais elementos, fornecidos pelo afeto sensual, obscurecendo-se a inteligência, que não mais vê senão aparências de bem. Tais aparências ficam sendo, então, a única claridade mediante a qual a inteligência olha e a vontade ama todo objeto de prazer. Sem estas aparências, o homem não pecaria, pois, como tendência inata, ele só pode desejar o bem. Peca, porque o mal toma colorações de bem. A inteligência não mais discerne ou reconhece a Verdade; por cegueira, engana-se e procura o bem e a satisfação onde eles não estão. Já afirmei antes (14.11) que os prazeres mundanos são espinhos venenosos; engana-se a inteligência ao considerá-los, a vontade ao amá-los, a memória ao retê-los. Comporta-se a inteligência como uma ladra, apoderando-se do alheio; igualmente a memória, conservando a se contínua lembrança de realidades distantes de mim. Com tudo isso, a alma priva da minha graça.

 

É muito estreita a união destas três faculdades. Quando uma delas me ofende, as outras também o fazem. Como disse (16.1), uma apresenta à outra o bem ou o mal, conforme agrada ao livre arbítrio. Este se acha na vontade e a move como quer, em conformidade ou não com a razão. Possuís a razão - sempre unida a mim, a menos que o livre arbítrio a afaste mediante um amor desordenado - e tendes em vós uma lei perversa, que luta contra o espírito. Tendes, então, duas partes em vós mesmos: A sensualidade e a razão. A sensualidade foi dada ao homem como servidora, a fim de que as virtudes sejam exercidas e provadas através do corpo. O homem é livre, já que meu Filho o libertou com seu sangue. Ninguém pode dominar a pessoa humana quanto à vontade, pois ela possui o livre arbítrio. Este se identifica com a vontade, concorda com ela. Fica, pois, o livre arbítrio entre a sensualidade e a razão, e inclina-se ora de um lado, ora de outro, conforme preferir.

 

Quando a pessoa tenta livremente "congregar" as três faculdades em mim, na maneira explicada, todas as atividades espirituais e corporais humanas ficam unificadas. O livre arbítrio se afasta da sensualidade, tende para o lado da razão e eu me coloco no centro das faculdades, realizando a palavra do meu Filho: "Quando dois ou três se reunirem em meu nome, estarei no meio deles"(Mt 18,20). Realmente, como te disse (10.1) ninguém pode vir a mim senão por meio de Cristo. Esta a razão pela qual fiz dele uma ponte com três degraus. Esses degraus, como declarei (18.), representam três estados (espirituais) do homem.

 

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