Alguns se tornam servidores fiéis, dedicando se a mim, não por medo de castigo, mas por amor. Mas seu amor ainda é interesseiro: gostam de mim por vantagens pessoais, à procura das consolações que acham em mim. Trata-se de um amor imperfeito. Sabes quando se manifesta essa imperfeição? No momento em que tais pessoas se vêem privadas da consolação experimentada em mim. Do mesmo tipo é o amor que têm pelo próximo: um amor imperfeito, que não basta, que é passageiro, vai diminuindo e muitas vezes se extingue. Chega a desaparecer, quando retiro destas pessoas as satisfações espirituais e permito dificuldades e oposições, no intuito de provar-lhes a virtude.
Minha intenção seria leva-las a um perfeito autoconhecimento, à consciência do próprio nada, a perceber a própria incapacidade frente à graça. Na realidade, no momento da provação, não me procuram, recusam-se a reconhecer-me como benfeitor, não procuram somente a mim com verdadeira humildade. Eis a razão por que concedo e depois retiro as consolações, deixando intacto o estado de graça.
Mas diante disso, estas pessoas desanimam, impacientam-se. Algumas vezes abandonam seus exercícios espirituais; muitas outras, fingindo virtude, dizem a si mesmas: "Esta prática para nada serve" - só porque se vêm carentes de fervor espiritual. Agem imperfeitamente, como pessoa que ainda não se desprendeu totalmente do egoísmo que lhe venda os olhos da fé. Quem se livra do egoísmo entende que tudo procede de mim, que nenhuma folha da árvore cai sem a minha permissão (Mt 6,28) que tudo concedo ou permito a fim de santificar os homens, isto é, para que atinjam a finalidade para a qual os criei. Seria preciso que vissem e compreendessem o seguinte: nada mais desejo que o seu bem no sangue do meu Filho unigênito, com o qual foram purificados. Em tal sangue podem reconhecer meu plano, ou seja, que para dar-lhes a vida eterna eu os criei à minha imagem e semelhança e, depois, no sangue de Jesus, os recriei como filhos adotivos através da graça. Infelizmente, são imperfeitos e somente procuram seus interesses e deixam de amar os outros.
Os primeiros (18.1.1) arrefecem por medo de sofrimentos; estes, os segundos, deixam de fazer bem aos outros e decaem no seu amor por ausência de interesses pessoais e consolação interior. O motivo é porque o homem, sem amor altruísta, ama a si mesmo segundo a imperfeição com que me ama, isto é, à procura de interesse próprio.
Se tais pessoas não se derem conta de tal imperfeição, se não aspirarem ao amor perfeito, impossível será que não voltem atrás. Para quem deseja chegar à vida eterna, o altruísmo no amor é indispensável. Para se adquirir a vida interminável, não basta evitar o pecado por medo de castigos ou ser virtuoso por interesses; é mister evitar o pecado porque ele me ofende, e praticar a virtude porque ela é amor por mim.
Quanto afirmado constitui a maneira geral da vocação ao amor. Começa-se pela imperfeição. Mas ocorre que haja passagem da imperfeição à perfeição (no amor): seja nesta vida, praticando a virtude com um coração desinteressado e liberal a meu respeito, seja mediante o reconhecimento da própria imperfeição na hora da morte, com o propósito - no caso de que continuasse a altruisticamente.
Foi com semelhante amor, imperfeito, que (São) Pedro amou o doce e bondoso Jesus, gozando de sua afável companhia (durante a vida pública); mas quando chegou o tempo da dificuldade, ele esmoreceu, fugiu, renegou, por medo de sofrer. Os que vão por este caminho, do amor servil e interesseiro, caem em muitos inconvenientes. Seria preciso que se elevassem e se comportassem como filhos, servindo-me desinteressadamente. Todavia, eu remunero os homens por todo esforço e dou a cada um de acordo com seu estado (espiritual) e boa vontade.