ATITUDE DO CONCÍLIO PERANTE ESSES PROBLEMAS
46. Depois de ter exposto a dignidade da pessoa humana, bem como a missão individual e social que está chamada a realizar no mundo, o Concílio dirige agora a atenção de todos, à luz do Evangelho e da experiência humana, para algumas necessidades mais urgentes do nosso tempo, que profundamente afectam a humanidade.
Entre as muitas questões que hoje a todos preocupam, importa relevar particularmente as seguintes: o matrimónio e a família, a cultura humana, a vida económico-social e política, a comunidade internacional e a paz. Sobre cada uma delas devem resplandecer os princípios e as luzes que provêm de Cristo e que dirigirão os cristãos e iluminarão todos os homens na busca da solução para tantos e tão complexos problemas.
CAPÍTULO I
A PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DO MATRIMÓNIO E DA FAMÍLIA
O MATRIMÓNIO E A FAMÍLIA NO MUNDO ACTUAL
47. O bem-estar da pessoa e da sociedade humana e cristã está intimamente ligado com uma favorável situação da comunidade conjugal e familiar. Por esse motivo, os cristãos, juntamente com todos os que têm em grande apreço esta comunidade, alegram-se sinceramente com os vários factores que fazem aumentar entre os homens a estima desta comunidade de amor e o respeito pela vida e que auxiliam os cônjuges e os pais na sua sublime missão. Esperam daí ainda melhores resultados e esforçam-se por os ampliar.
Porém, a dignidade desta instituição não resplandece em toda a parte com igual brilho. Encontra-se obscurecida pela poligamia, pela epidemia do divórcio, pelo chamado amor livre e outras deformações. Além disso, o amor conjugal é muitas vezes profanado pelo egoísmo, amor do prazer e por práticas ilícitas contra a geração. E as actuais condições económicas, socio-psicológicas e civis introduzem ainda na família não pequenas perturbações. Finalmente, em certas partes do globo, verificam-se, com inquietação, os problemas postos pelo aumento demográfico. Com tudo isto, angustiam-se as consciências. Mas o vigor e a solidez da instituição matrimonial e familiar também nisto se manifestam: as profundas transformações da sociedade contemporânea, apesar das dificuldades a que dão origem, muito frequentemente revelam de diversos modos a verdadeira natureza de tal instituição.
Por tal motivo, o Concílio, esclarecendo alguns pontos da doutrina da Igreja, deseja ilustrar e robustecer os cristãos e todos os homens que se esforçam por proteger e fomentar a nativa dignidade do estado matrimonial e o seu alto e sagrado valor.
A SANTIDADE DO MATRIMÓNIO E DA FAMÍLIA
48. A íntima comunidade da vida e do amor conjugal, fundada pelo Criador e dotada de leis próprias, é instituída por meio da aliança matrimonial, eu seja pelo irrevogável consentimento pessoal. Deste modo, por meio do acto humano com o qual os cônjuges mùtuamente se dão e recebem um ao outro, nasce uma instituição também à face da sociedade, confirmada pela lei divina. Em vista do bem tanto dos esposos e da prole como da sociedade, este sagrado vínculo não está ao arbítrio da vontade humana. O próprio Deus é o autor do matrimónio, o qual possui diversos bens e fins, todos eles da máxima importância, quer para a propagação do género humano, quer para o proveito pessoal e sorte eterna de cada um dos membros da família, quer mesmo, finalmente, para a dignidade, estabilidade, paz e prosperidade de toda a família humana. Por sua própria índole, a instituição matrimonial e o amor conjugal estão ordenados para a procriação e educação da prole, que constituem como que a sua coroa. O homem e a mulher, que, pela aliança conjugal «já não são dois, mas uma só carne» (Mt. 19, 6), prestam-se recíproca ajuda e serviço com a íntima união das suas pessoas e actividades, tomam consciência da própria unidade e cada vez mais a realizam. Esta união íntima, já que é o dom recíproco de duas pessoas, exige, do mesmo modo que o bem dos filhos, a inteira fidelidade dos cônjuges e a indissolubilidade da sua união.
Cristo Senhor abençoou copiosamente este amor de múltiplos aspectos, nascido da fonte divina da caridade e constituído à imagem da sua própria união com a Igreja. E assim como outrora Deus veio ao encontro do seu povo com uma aliança de amor e fidelidade, assim agora o Salvador dos homens e esposo da Igreja vem ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento do matrimónio. E permanece com eles, para que, assim como Ele amou a Igreja e se entregou por ela, de igual modo os cônjuges, dando-se um ao outro, se amem com perpétua fidelidade. O autêntico amor conjugal é assumido no amor divino, e dirigido e enriquecido pela força redentora de Cristo e pela acção salvadora da Igreja, para que, assim, os esposos caminhem eficazmente para Deus e sejam ajudados e fortalecidos na sua missão sublime de pai e mãe. Por este motivo, os esposos cristãos são fortalecidos e como que consagrados em ordem aos deveres do seu estado por meio de um sacramento especial; cumprindo, graças à força deste, a própria missão conjugal e familiar, penetrados do espírito de Cristo que impregna toda a sua vida de fé, esperança e caridade, avançam sempre mais na própria perfeição e mútua santificação e cooperam assim juntos para a glorificação de Deus.
Precedidos assim pelo exemplo e oração familiar dos pais, tanto os filhos como todos os que vivem no círculo familiar encontrarão mais fàcilmente o caminho da existência humana, da salvação e da santidade. Quanto aos esposos, revestidos com a dignidade e o encargo da paternidade e maternidade, cumprirão diligentemente o seu dever de educação, sobretudo religiosa, que a eles cabe em primeiro lugar. Os filhos, como membros vivos dá família, contribuem a seu modo para a santificação dos pais. Corresponderão, com a sua gratidão, piedade filial e confiança aos benefícios recebidos dos pais e assisti-los-ão, como bons filhos, nas dificuldades e na solidão da velhice. A viuvez, corajosamente assumida na sequência da vocação conjugal, por todos deve ser respeitada. Cada família comunicará generosamente com as outras as próprias riquezas espirituais. Por isso, a família cristã, nascida de um matrimónio que é imagem e participação da aliança de amor entre Cristo e a Igreja, manifestará a todos a presença viva do Salvador no mundo e a autêntica natureza da Igreja, quer por meio do amor dos esposos, quer pela sua generosa fecundidade, unidade e fidelidade, quer pela amável cooperação de todos os seus membros.
O AMOR CONJUGAL
49. A Palavra de Deus convida repetidas vezes os noivos a alimentar e robustecer o seu noivado com um amor casto, e os esposos a sua união com um amor indiviso. E também muitos dos nossos contemporâneos têm em grande apreço o verdadeiro amor entre marido e mulher, manifestado de diversas maneiras, de acordo com os honestos costumes dos povos e dos tempos. Esse amor, dado que é eminentemente humano - pois vai de pessoa a pessoa com um afecto voluntário - compreende o bem de toda a pessoa e, por conseguinte, pode conferir especial dignidade às manifestações do corpo e do espírito, enobrecendo-as como elementos e sinais peculiares do amor conjugal. E o Senhor dignou-se sanar, aperfeiçoar e elevar este amor com um dom especial de graça e caridade. Unindo o humano e o divino, esse amor leva os esposos ao livre e recíproco dom de si mesmos, que se manifesta com a ternura do afecto e, com as obras, e penetra toda a sua vida; e aperfeiçoa-se e aumenta pela sua própria generosa actuação. Ele transcende, por isso, de longe a mera inclinação erótica, a qual, fomentada egoìsticamente, rápida e miseràvelmente se desvanece.
Este amor tem a sua expressão e realização peculiar no acto próprio do matrimónio. São, portanto, honestos e dignos os actos pelos quais os esposos se unem em intimidade e pureza; realizados de modo autênticamente humano, exprimem e alimentam a mútua entrega pela qual se enriquecem um ao outro na alegria e gratidão. Esse amor, ratificado pela promessa de ambos e, sobretudo, sancionado pelo sacramento de Cristo, é indissolùvelmente fiel, de corpo e de espírito, na prosperidade e na adversidade; exclui, por isso, toda e qualquer espécie de adultério e divórcio. A unidade do matrimónio, confirmada pelo Senhor, manifesta-se também claramente na igual dignidade da mulher e do homem que se deve reconhecer no mútuo e pleno amor. Mas, para cumprir com perseverança os deveres desta vocação cristã, requere-se uma virtude notável; por este motivo, hão-de os esposos, fortalecidos pela graça para levarem uma vida de santidade, cultivar assiduamente e impetrar com a oração a fortaleza do próprio amor, a magnanimidade e o espírito de sacrifício.
O autêntico amor conjugal será mais apreciado, e formar-se-á a seu respeito uma sã opinião pública, se os esposos cristãos derem um testemunho eminente de fidelidade e harmonia e de solicitude na educação dos filhos e se participarem na necessária renovação cultural, psicológica e social em favor do casamento e da família. Os jovens devem ser conveniente e oportunamente instruídos, sobretudo no seio da própria família, acerca da dignidade, missão e exercício do amor conjugal. Deste modo, educados na castidade, poderão, chegada a idade conveniente, entrar no casamento depois dum noivado puro.
A FECUNDIDADE DO MATRIMÔNIO
50. O matrimónio e o amor conjugal ordenam-se por sua própria natureza à geração e educação da prole. Os filhos são, sem dúvida, o maior dom do matrimónio e contribuem muito para o bem dos próprios pais. O mesmo Deus que disse «não é bom que o homem esteja só» (Gén. 2,88) e que «desde a origem fez o homem varão e mulher» (Mt. 19,14), querendo comunicar-lhe uma participação especial na Sua obra criadora, abençoou o homem e a mulher dizendo: «sede fecundos e multiplicai-vos» (Gén. 1,28). Por isso, o autêntico cultivo do amor conjugal, e toda a vida familiar que dele nasce, sem pôr de lado os outros fins do matrimónio, tendem a que os esposos, com fortaleza de ânimo, estejam dispostos a colaborar com o amor do criador e salvador, que por meio deles aumenta cada dia mais e enriquece a sua família.
Os esposos sabem que no dever de transmitir e educar a vida humana - dever que deve ser considerado como a sua missão específica - eles são os cooperadores do amor de Deus criador e como que os seus intérpretes. Desempenhar-se-ão, portanto, desta missão com a sua responsabilidade humana e cristã; com um respeito cheio de docilidade para com Deus, de comum acordo e com esforço comum, formarão rectamente a própria consciência, tendo em conta o seu bem próprio e o dos filhos já nascidos ou que prevêem virão a nascer, sabendo ver as condições de tempo e da própria situação e tendo, finalmente, em consideração o bem da comunidade familiar, da sociedade temporal e da própria Igreja. São os próprios esposos que, em última instância, devem diante de Deus tomar esta decisão. Mas, no seu modo de proceder, tenham os esposos consciência de que não podem agir arbitràriamente, mas que sempre se devem guiar pela consciência, que se deve conformar com a lei divina, e ser dóceis ao magistério dia Igreja, que autenticamente a interpreta à luz do Evangelho. Essa lei divina manifesta a plena significação do amor conjugal, protege-o e estimula-o para a sua perfeição autenticamente humana. Assim, os esposos cristãos, confiados na divina Providência e cultivando o espírito de sacrifício, dão glória ao Criador e caminham para a perfeição em Cristo quando se desempenham do seu dever de procriar com responsabilidade generosa, humana e cristã. Entre os esposos que deste modo satisfazem à missão que Deus lhes confiou, devem ser especialmente lembrados aqueles que, de comum acordo e com prudência, aceitam com grandeza de ânimo educar uma prole numerosa.
No entanto, o matrimónio não foi instituído só em ordem à procriação da prole. A própria natureza da aliança indissolúvel entre as pessoas e o bem da prole exigem que o mútuo amor dos esposos se exprima convenientemente, aumente e chegue à maturidade. E por isso, mesmo que faltem os filhos, tantas vezes ardentemente desejados, o matrimónio conserva o seu valor e indissolubilidade, como comunidade e comunhão de toda a vida.
O AMOR CONJUGAL E O RESPEITO PELA VIDA HUMANA
51. O Concílio não ignora que os esposos, na sua vontade de conduzir harmònicamente a própria vida conjugal, encontram frequentes dificuldades em certas circunstâncias da vida actual; que se podem encontrar em situações em que, pelo menos temporàriamente, não lhes é possível aumentar o número de filhos e em que só dificilmente se mantêm a fidelidade do amor e a plena comunidade de vida. Mas quando se suspende a intimidade da vida conjugal, não raro se põe em risco a fidelidade e se compromete o bem da prole; porque, nesse caso, ficam ameaçadas tanto a educação dos filhos como a coragem necessária para ter mais filhos.
Não falta quem se atreva a dar soluções imorais a estes problemas, sem recuar sequer perante o homicídio. Mas a Igreja recorda que não pode haver verdadeira incompatibilidade entre as leis divinas que regem a transmissão da vida e o desenvolvimento do autêntico amor conjugal.
Com efeito, Deus, senhor da vida, confiou aos homens, para que estes desempenhassem dum modo digno dos mesmos homens, o nobre encargo de conservar a vida. Esta deve, pois, ser salvaguardada, com extrema solicitude, desde o primeiro momento da concepção; o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis. A índole sexual humana e o poder gerador do homem, eles superam de modo admirável o que se encontra nos graus inferiores da vida; daqui se segue que os mesmos actos específicos da vida conjugal, realizados segundo a autêntica dignidade humana, devem ser objecto de grande respeito. Quando se trata, portanto, de conciliar o amor conjugal com a transmissão responsável da vida, a moralidade do comportamento não depende apenas da sinceridade da intenção e da apreciação dos motivos; deve também determinar-se por critérios objectivos, tomados da natureza da pessoa e dos seus actos; critérios que respeitem, num contexto de autêntico amor, o sentido da mútua doação e da procriação humana. Tudo isto só é possível se se cultivar sinceramente a virtude da castidade conjugal. Segundo estes princípios, não é lícito aos filhos da Igreja adoptar, na regulação dos nascimentos, caminhos que o magistério, explicitando a lei divina, reprova.
Todos, finalmente, tenham bem presente que a vida humana e a missão de a transmitir não se limitam a este mundo, nem podem ser medidas ou compreendidas ùnicamente em função dele, mas que estão sempre relacionadas com o eterno destino do homem.
O PROGRESSO E A PROMOÇÃO DO MATRIMÓNIO E DA FAMÍLIA
52. A família é como que uma escola de valorização humana. Para que esteja em condições de alcançar a plenitude da sua vida e missão, exige, porém, a benévola comunhão de almas e o comum acordo dos esposos, e a diligente cooperação dos pais na educação dos filhos. A presença activa do pai contribui poderosamente para a formação destes; mas é preciso assegurar também a assistência ao lar por parte da mãe, da qual os filhos, sobretudo os mais pequenos, têm tanta necessidade; sem descurar, aliás, a legítima promoção social da mulher. Os filhos sejam educados de tal modo que, chegados à idade adulta, sejam capazes de seguir com inteira responsabilidade a sua vocação, incluindo a sagrada, e escolher um estado de vida; e, se casarem, possam constituir uma família própria, em condições morais, sociais e económicas favoráveis. Compete aos pais ou tutores guiar os jovens na constituição da família com prudentes conselhos que eles devem ouvir de bom grado; mas evitem cuidadosamente forçá-los, directa ou indirectamente, a casar-se ou a escolher o cônjuge.
A família - na qual se congregam as diferentes gerações que reciprocamente se ajudam a alcançar uma sabedoria mais plena e a conciliar os direitos pessoais com as outras exigências da vida social - constitui assim o fundamento da sociedade. E por esta razão, todos aqueles que têm alguma influência nas comunidades e grupos sociais, devem contribuís eficazmente para a promoção do matrimónio e da família. A autoridade civil há-de considerar como um dever sagrado reconhecer, proteger e favorecer a sua verdadeira natureza, assegurar a moralidade pública e fomentar a prosperidade doméstica. Deve salvaguardar-se o direito de os pais gerarem e educarem os filhos no seio da família. Protejam-se também e ajudem-se convenientemente, por meio duma previdente legislação e com iniciativas várias, aqueles que por infelicidade não beneficiam duma família.
Os cristãos, resgatando o tempo presente, e distinguindo o que é eterno das formas mutáveis, promovam com empenho o bem do matrimónio e da família, com o testemunho da própria vida e cooperando com os homens de boa vontade; deste modo, superando as dificuldades, proverão às necessidades e vantagens da família, de acordo com os novos tempos. Para alcançar este fim, muito ajudarão o sentir cristão dos fiéis, a rectidão de consciência moral dos homens, bem como o saber e competência dos que se dedicam às ciências sagradas.
Os cientistas, particularmente os especialistas nas ciências biológicas, médicas, sociais e psicológicas, podem prestar um grande serviço para bem do matrimónio e da família se, juntando os seus esforços, procurarem esclarecer mais profundamente as condições que favorecem a honesta regulação da procriação humana.
Cabe aos sacerdotes, devidamente informados acerca das realidades familiares, auxiliar a vocação dos esposos na sua vida conjugal e familiar por vários meios pastorais, com a pregação da palavra de Deus, o culto litúrgico e outras ajudas espirituais; devem ainda fortalecê-los, com bondade e paciência, nas suas dificuldades e reconfortá-los com a caridade, para que assim se formem famílias verdadeiramente irradiantes.
As diferentes obras, sobretudo as associações de famílias, procurem fortalecer com a doutrina e a acção os jovens e os esposos, especialmente os casados de há pouco, e formá-los para a vida familiar, social e apostólica.
Finalmente, os próprios esposos, feitos à imagem de Deus e estabelecidos numa ordem verdadeiramente pessoal, estejam unidos em comunhão de afecto e de pensamento e com mútua santidade de modo que, seguindo a Cristo, princípio da vida, se tornem, pela fidelidade do seu amor, através das alegrias e sacrifícios da sua vocação, testemunhas daquele mistério de amor que Deus revelou ao mundo com a sua morte e ressurreição.
CAPÍTULO II
A CONVENIENTE PROMOÇÃO DO PROGRESSO CULTURAL
A CULTURA E A SUA RELAÇÃO COM O HOMEM
53. É próprio da pessoa humana necessitar da cultura, isto é, de desenvolver os bens e valores da natureza, para chegar a uma autêntica e plena realização. Por isso, sempre que se trata da vida humana, natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas.
A palavra «cultura» indica, em geral, todas as coisas por meio das quais o homem apura e desenvolve as múltiplas capacidades do seu espírito e do seu corpo; se esforça por dominar, pelo estudo e pelo trabalho, o próprio mundo; torna mais humana, com o progresso dos costumes e das instituições, a vida social, quer na família quer na comunidade civil; e, finalmente, no decorrer do tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas suas obras, para que sejam de proveito a muitos e até à inteira humanidade, as suas grandes experiências espirituais e as suas aspirações.
Daqui se segue que a cultura humana implica necessàriamente um aspecto histórico e social e que o termo «cultura» assume frequentemente um sentido sociológico e etnológico. É neste sentido que se fala da pluralidade das culturas. Com efeito, diferentes modos de usar das coisas, de trabalhar e de se exprimir, de praticar a religião e de formar os costumes, de estabelecer leis e instituições jurídicas, de desenvolver as ciências e as artes e de cultivar a beleza, dão origem a diferentes estilos de vida e diversas escalas de valores. E assim, a partir dos usos tradicionais, se constitui o património de cada comunidade humana. Define-se também por este modo o meio histórico determinado no qual se integra o homem raça ou época, e do qual tira os bens necessários para a promoção da civilização.
SECÇÃO 1
CONDIÇÕES DA CULTURA NO MUNDO ACTUAL
NOVOS ESTILOS DE VIDA
54. As condições de vida do homem moderno sofreram tão profunda transformação no campo social e cultural, que é lícito falar duma nova era da história humana. Novos caminhos se abrem assim ao progresso e difusão da cultura, preparados pelo imenso avanço das ciências naturais, humanas e sociais, pelo desenvolvimento das técnicas e pelo progresso no aperfeiçoamento e coordenação dos meios de comunicação. Daqui provêm algumas notas características da cultura actual: as chamadas ciências exactas desenvolvem grandemente o sentido crítico; as recentes investigações psicológicas explicam profundamente a actividade humana; as disciplinas históricas contribuem muito para considerar as coisas sob o seu aspecto mutável e evolutivo; as maneiras de viver e os costumes tornam-se cada vez mais uniformes; a industrialização, a urbanização e outras causas que favorecem a vida comunitária, criam novas formas de cultura de que resultam novas maneiras de sentir e de agir e de utilizar o tempo livre; o aumento de intercâmbio entre os vários povos e grupos sociais revela mais amplamente a todos e a cada um os tesouros das várias formas de cultura, preparando-se deste modo, progressivamente, um tipo mais universal de cultura humana, a qual tanto mais favorecerá e expressará a unidade do género humano, quanto melhor souber respeitar as peculiaridades das diversas culturas.
O HOMEM, AUTOR DA CULTURA
55. Cresce cada vez mais o número dos homens e mulheres, de qualquer grupo ou nação, que têm consciência de serem os artífices e autores da cultura da própria comunidade. Aumenta também cada dia mais no mundo inteiro o sentido da autonomia e responsabilidade, o qual é de máxima importância para a maturidade espiritual e moral do género humano. O que aparece ainda mais claramente, se tivermos diante dos olhos a unificação do mundo e o encargo que nos incumbe de construirmos, na verdade e na justiça, um mundo melhor. Somos assim testemunhas do nascer de um novo humanismo, no qual o homem se define antes de mais pela sua responsabilidade com relação aos seus irmãos e à história.
ANTINOMIAS DA CULTURA ACTUAL E ACTUAÇÃO DO HOMEM
56. Nestas condições, não é de admirar que o homem, sentindo a responsabilidade que tem na promoção da cultura, alimente mais dilatadas esperanças, e ao mesmo tempo encare com inquietação as múltiplas antinomias existentes e que ele tem de resolver.
Que se deve fazer para que os frequentes contactos entre culturas, que deveriam levar os diferentes grupos e culturas a um diálogo verdadeiro e fecundo, não perturbem a vida das comunidades, ou subvertam a sabedoria dos antigos, ou ponham em perigo o génio próprio de cada povo?
Como fomentar o dinamismo e expansão da nova cultura, sem deixar perder a fidelidade viva à herança tradicional? Problema que se põe com particular acuidade quando se trata de harmonizar uma cultura nascida dum grande progresso das ciências e da técnica com a que se alimenta dos estudos clássicos das diversas tradições.
Como conciliar a rápida e progressiva especialização das várias disciplinas com a necessidade de construir a sua síntese e ainda de conservar no homem as capacidades de contemplação e admiração que conduzem à sabedoria?
Que fazer para que todos os homens participem dos bens culturais, uma vez que a cultura das elites é cada vez mais elevada e complexa? Enfim, como reconhecer a legitimidade da autonomia que a cultura reclama, sem cair num humanismo meramente terreno ou até hostil à religião?
É preciso, que, no meio de todas estas antinomias, a cultura humana progrida hoje de tal modo, que desenvolva harmónica e integralmente a pessoa humana e ajude os homens no desempenho das tarefas a que todos, e sobretudo os cristãos, estão chamados, fraternalmente unidos numa única família humana.
SECÇÃO 2
ALGUNS PRINCÍPIOS PARA A CONVENIENTE PROMOÇÃO DA CULTURA
FÉ E CULTURA
57. Os cristãos, peregrinos da cidade celestial, devem buscar e saborear as coisas do alto. Mas, com isso, de modo algum diminui, antes aumenta a importância do seu dever de colaborar com todos os outros homens na edificação dum mundo mais humano. E, na verdade, o mistério da fé cristã fornece-lhes valiosos estímulos e ajudas para cumprirem mais intensamente essa missão e sobretudo para descobrirem o pleno significado de tal actividade, assinalando assim o lugar privilegiado da cultura na vocação integral do homem.
Quando o homem, usando as suas mãos ou recorrendo à técnica, trabalha a terra para que ela produza frutos e se torne habitação digna para toda a humanidade, ou quando participa conscientemente na vida social dos diversos grupos, está a dar realização à vontade que Deus manifestou no começo dos tempos, de que dominasse a terra e completasse a obra da criação, ao mesmo tempo que se vai aperfeiçoando a si mesmo; cumpre igualmente o mandamento de Cristo, de se consagrar ao serviço de seus irmãos.
Além disso, dedicando-se às várias disciplinas da história, filosofia, ciências matemáticas e naturais, e cultivando as artes, pode o homem ajudar muito a família humana a elevar-se a concepções mais sublimes da verdade, do bem e da beleza e a um juízo de valor universal, e ser assim luminosamente esclarecida por aquela admirável sabedoria, que desde a eternidade estava junto de Deus, dispondo com Ele todas as coisas, e encontrando as suas delícias em estar com os filhos dos homens.
Pelo mesmo facto, o espírito do homem, mais liberto da escravidão das coisas, pode mais fàcilmente levantar-se ao culto e contemplação do Criador. Mais ainda, dispõe-se assim, sob o impulso da graça, a reconhecer o Verbo de Deus, o qual antes de se fazer homem para tudo salvar e em si recapitular, já «estava no mundo», como «verdadeira luz que ilumina todo o homem» (Jo. 1, 9-10).
O progresso hodierno das ciências e das técnicas que, em virtude do seu próprio método, não penetram até às causas últimas das coisas, pode sem dúvida dar aso a certo fenomenismo e agnosticismo, sempre que o método de investigação de que usam estas disciplinas se arvora indevidamente em norma suprema de toda a investigação da verdade. É mesmo de temer que o homem, fiando-se demasiadamente nas descobertas actuais, julgue que se basta a si mesmo e já não procure coisas mais altas.
Estas deploráveis manifestações não são, porém, consequências necessárias da cultura actual, nem nos devem fazer cair na tentação de desconhecer os seus valores positivos. Tais são, entre outros: o gosto das ciências e a exacta objectividade nas investigações científicas; a necessidade de colaborar com os outros nas equipas técnicas; o sentido de solidariedade internacional; a consciência cada vez mais nítida da responsabilidade que os sábios têm de ajudar e até de proteger os homens; a vontade de tornar as condições de vida melhores para todos e especialmente para aqueles que sofrem da privação de responsabilidade ou de pobreza cultural. Tudo isto pode constituir uma certa preparação para a recepção da mensagem evangélica, preparação que pode ser informada com a caridade divina por Aquele que veio para salvar o mundo.
A MENSAGEM DE CRISTO E A CULTURA HUMANA
58. Múltiplos laços existem entre a mensagem da salvação e a cultura humana. Deus, com efeito, revelando-se ao seu povo até à plena manifestação de Si mesmo no Filho encarnado, falou segundo a cultura própria de cada época.
Do mesmo modo, a Igreja, vivendo no decurso dos tempos em diversos condicionalismos, empregou os recursos das diversas culturas para fazer chegar a todas as gentes a mensagem de Cristo, para a explicar, investigar e penetrar mais profundamente e para lhe dar melhor expressão na celebração da Liturgia e na vida da multiforme comunidade dos fiéis.
Mas, por outro lado, tendo sido enviada aos homens de todos os tempos e lugares, a Igreja não está exclusiva e indissolùvelmente ligada . a nenhuma raça ou nação, a nenhum género de vida particular, a nenhuma tradição, antiga ou moderna. Aderindo à própria tradição e, ao mesmo tempo, consciente da sua missão universal, é capaz de entrar em comunicação com as diversas formas de cultura, com o que se enriquecem tanto a própria Igreja como essas várias culturas.
O Evangelho de Cristo renova continuamente a vida e cultura do homem decaído, e combate e elimina os erros e males nascidos da permanente sedução e ameaça do pecado. Purifica sem cessar e eleva os costumes dos povos. Fecunda como que por dentro, com os tesouros do alto, as qualidades de espírito e os dotes de todos os povos e tempos; fortifica-os, aperfeiçoa-os e restaura-os em Cristo. Deste modo, a Igreja, só com realizar a própria missão, já com isso mesmo estimula e ajuda a civilização, e com a sua actividade, incluindo a litúrgica, educa a interior liberdade do homem.
HARMONIA ENTRE AS DIVERSAS ORDENS HUMANAS E CULTURAIS
59. Pelas razões aduzidas, a Igreja lembra a todos que a cultura deve orientar-se para a perfeição integral da pessoa humana, para o bem da comunidade e de toda a sociedade. Por isso, é necessário cultivar o espírito de modo a desenvolver-lhe a. capacidade de admirar, de intuir, de contemplar, de formar um juízo pessoal e de cultivar o sentido religioso, moral e social.
Pois a cultura, uma vez que deriva imediatamente da natureza racional e social do homem, tem uma constante necessidade de justa liberdade e de legítima autonomia, de agir segundo os seus próprios princípios para se desenvolver. Com razão, pois, exige ser respeitada e goza duma certa inviolabilidade, salvaguardados, evidentemente, os direitos da pessoa e da comunidade, particular ou universal, dentro dos limites do bem comum.
O sagrado Concílio, recordando o que ensinou o primeiro Concílio do Vaticano, declara que existem «duas ordens de conhecimento» distintas, a da fé e a da razão, e que a Igreja de modo algum proíbe que «as artes e disciplinas humanas usem de princípios e métodos próprios nos seus campos respectivos»; «reconhecendo esta justa liberdade», afirma por isso a legítima autonomia da cultura humana e sobretudo das ciências.
Tudo isto requer também que, salvaguardados a ordem moral e o bem comum, o homem possa investigar livremente a verdade, expor e divulgar a sua opinião e dedicar-se a qualquer arte; isto postula, finalmente, que seja informado com verdade dos acontecimentos públicos.
À autoridade pública pertence, não determinar o carácter próprio das formas de cultura mas favorecer as condições e as ajudas necessárias para o desenvolvimento cultural de todos, mesmo das minorias de alguma nação. Deve, por isso, insistir-se, antes de mais, para que a cultura, desviando-se do seu fim, não seja obrigada a servir as forças políticas ou económicas.
SECÇÃO 3
ALGUNS DEVERES MAIS URGENTES DOS CRISTÃOS
COM RELAÇÃO À CULTURA
RECONHECIMENTO DO DIREITO DO HOMEM À CULTURA
60. Dado que hoje há a possibilidade de libertar muitos homens da miséria da ignorância, é dever muito próprio do nosso tempo, principalmente para os cristãos, trabalhar enèrgicamente para que, tanto no campo económico como no político, no nacional como no internacional, se estabeleçam os princípios fundamentais segundo os quais se reconheça e se actue em toda a parte efectivamente o direito de todos à cultura correspondente à dignidade humana, sem discriminação de raça, sexo, nação, religião ou situação social. Pelo que a todos se deve suficiente abundância dos bens culturais, sobretudo daqueles que constituem a chamada educação de base, a fim de que muitos, por causa do analfabetismo e da privação duma actividade responsável, não se vejam impedidos de contribuir para o bem comum de modo verdadeiramente humano.
Deve tender-se, portanto, para que todos os que são disso capazes tenham a possibilidade de seguir estudos superiores; de modo que subam na sociedade às funções, cargos e serviços correspondentes às próprias aptidões ou à competência que adquirirem. Deste modo, todos os homens e todos os agrupamentos sociais poderão chegar ao pleno desenvolvimento da sua vida cultural, segundo as qualidades e tradições próprias de cada um.
É preciso, além disso, trabalhar muito para que todos tomem consciência, não só do direito à cultura, mas também do dever que têm de se cultivar e de ajudar os outros nesse campo. Existem, com efeito, por vezes, condições de vida e de trabalho que impedem as aspirações culturais dos povos e destroem neles o desejo da cultura. Isto vale especialmente para os camponeses e trabalhadores, aos quais se devem proporcionar condições de trabalho tais que não impeçam mas antes ajudem a sua cultura humana. As mulheres trabalham já em quase todos os sectores de actividade; mas convém que possam exercer plenamente a sua participação, segundo a própria índole. Será um dever para todos reconhecer e fomentar a necessária e específica participação das mulheres na vida cultural.
EDUCAÇÃO CULTURAL INTEGRAL DO HOMEM
61. É mais difícil hoje do que outrora fazer uma síntese dos vários ramos do saber e das artes. Porque ao mesmo tempo que aumenta a multidão e diversidade dos elementos que constituem a cultura, diminui para cada homem a possibilidade de os compreender e organizar; a figura do «homem universal» desaparece assim cada vez mais. No entanto, cada homem continua a ter o dever de salvaguardar a integridade da pessoa humana, na qual sobressaem os valores da inteligência, da vontade, da consciência e da fraternidade, valores que se fundam em Deus Criador e por Cristo foram admiràvelmente restaurados e elevados.
A família é, prioritàriamente, como que a mãe e a fonte da educação: nela, os filhos, rodeados de amor, aprendem mais fàcilmente a recta ordem das coisas, enquanto que as formas aprovadas da cultura vão penetrando como que naturalmente na alma dos adolescentes, à medida que vão crescendo.
Para esta mesma educação existem nas sociedades hodiernas, sobretudo graças à crescente difusão de livros e aos novos meios de comunicação cultural e social, possibilidades que podem favorecer a universalização da cultura. Com efeito, com a diminuição generalizada do tempo de trabalho, crescem progressivamente para muitos homens as facilidades para tal. Os tempos livres sejam bem empregados, para descanso do espírito e saúde da alma e do corpo, ora com actividades e estudos livremente escolhidos, ora com viagens a outras regiões (turismo), com as quais sé educa o espírito e os homens se enriquecem com o conhecimento mútuo, ora também com exercícios e manifestações desportivas, que contribuem para manter o equilíbrio psíquico, mesmo na comunidade, e para estabelecer relações fraternas entre os homens de todas as condições e nações, ou de raças diversas . Colaborem, portanto, os cristãos, a fim de que as manifestações e actividades culturais colectivas, características do nosso tempo, sejam penetradas de espírito humano e cristão.
Mas todas estas vantagens não conseguirão levar o homem à educação cultural integral se, ao mesmo tempo, não se tiver o cuidado de investigar o significado profundo da cultura e da ciência para a pessoa humana.
HARMONIA ENTRE A CULTURA HUMANA E A FORMAÇÃO CRISTÃ
62. Ainda que a Igreja muito tem contribuído para o progresso cultural, mostra, contudo, a experiência que, devido a causas contingentes, a harmonia da cultura com a doutrina nem sempre se realiza sem dificuldades.
Tais dificuldades não são necessàriamente danosas para a vida da fé; antes, podem levar o espírito a uma compreensão mais exacta e mais profunda da mesma fé. Efectivamente, as recentes investigações e descobertas das ciências, da história e da filosofia, levantam novos problemas, que implicam consequências também para a vida e exigem dos teólogos novos estudos. Além disso, os teólogos são convidados a buscar constantemente, de acordo com os métodos e exigências próprias do conhecimento teológico, a forma mais adequada de comunicar a doutrina aos homens do seu tempo; porque uma coisa é o depósito da fé ou as suas verdades, outra o modo como elas se enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido e significado. Na actividade pastoral, conheçam-se e apliquem-se suficientemente, não apenas os princípios teológicos, mas também os dados das ciências profanas, principalmente da psicologia e sociologia, para que assim os fiéis sejam conduzidos a uma vida de fé mais pura e adulta.
A literatura e as artes são também, segundo a maneira que lhes é própria, de grande importância para a vida da Igreja. Procuram elas dar expressão à natureza do homem, aos seus problemas e à experiência das suas tentativas para conhecer-se e aperfeiçoar-se a si mesmo e ao mundo; e tentam identificar a sua situação na história e no universo, dar a conhecer as suas misérias e alegrias, necessidades e energias, e desvendar um futuro melhor. Conseguem assim elevar a vida humana, que exprimem sob muito diferentes formas, segundo os tempos e lugares.
Por conseguinte, deve trabalhar-se por que os artistas se sintam compreendidos, na sua actividade, pela Igreja e que, gozando duma conveniente liberdade, tenham mais facilidade de contactos com a comunidade cristã. A Igreja deve também reconhecer as novas formas artísticas, que segundo o génio próprio das várias nações e regiões se adaptam às exigências dos nossos contemporâneos. Sejam admitidas nos templos quando, com linguagem conveniente e conforme às exigências litúrgicas, levantam o espírito a Deus.
Deste modo, o conhecimento de Deus é mais perfeitamente manifestado; a pregação evangélica torna-se mais compreensível ao espírito dos homens e aparece como integrada nas suas condições normais de vida.
Vivam, pois, os fiéis em estreita união com os demais homens do seu tempo e procurem compreender perfeitamente o seu modo de pensar e sentir, qual se exprime pela cultura. Saibam conciliar os conhecimentos das novas ciências e doutrinas e últimas descobertas com os costumes e doutrina cristã, a fim de que a prática religiosa e a rectidão moral acompanhem neles o conhecimento científico e o progresso técnico e sejam capazes de apreciar e interpretar todas as coisas com autêntico sentido cristão.
Os que se dedicam às ciências teológicas nos Seminários e Universidades, procurem colaborar com os especialistas doutros ramos do saber, pondo em comum trabalhos e conhecimentos. A investigação teológica deve simultâneamente procurar um profundo conhecimento da verdade revelada e não descurar a ligação com o seu tempo, para que assim possa ajudar os homens formados nas diversas matérias a alcançar um conhecimento mais completo da fé. Esta colaboração ajudará muitíssimo a formação dos ministros sagrados. Estes poderão assim expor de maneira mais adequada aos homens do nosso tempo a doutrina da Igreja acerca de Deus, do homem e do mundo; e a sua palavra por eles melhor acolhida. É, mesmo de desejar que muitos leigos adquiram uma conveniente formação nas disciplinas sagradas e que muitos deles se consagrem expressamente a cultivar e aprofundar estes estudos. E para que possam desempenhar bem a sua tarefa, deve reconhecer-se aos fiéis, clérigos ou leigos, uma justa liberdade de investigação, de pensamento e de expressão da própria opinião, com humildade e fortaleza, nos domínios da sua competência.
CAPÍTULO III
A VIDA ECONÓMICO-SOCIAL
ALGUNS ASPECTOS DA VIDA ECONÓMICA ACTUAL
63. Também na vida económica e social se devem respeitar e promover a dignidade e a vocação integral da pessoa humana e o bem de toda a sociedade. Com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social.
A economia actual, de modo semelhante ao que sucede noutros campos da vida social, é caracterizada por um crescente domínio do homem sobre a natureza, pela multiplicação e intensificação das relações e mútua dependência entre os cidadãos, grupos e nações e, finalmente, por mais frequentes intervenções do poder político. Ao mesmo tempo, o progresso das técnicas de produção e do intercâmbio de bens e serviços fizeram da economia um instrumento capaz de prover mais satisfatòriamente às acrescidas necessidades da família humana.
Mas não faltam motivos de inquietação. Não poucos homens, com efeito, sobretudo nos países econòmicamente desenvolvidos, parecem dominados pela realidade económica; toda a sua vida está penetrada por um certo espírito economístico tanto nas nações favoráveis à economia colectiva como nas outras. No preciso momento em que o progresso da vida económica permite mitigar as desigualdades sociais, se for dirigido e organizado de modo racional e humano, vemo-lo muitas vezes levar ao agravamento das mesmas desigualdades e até em algumas partes a uma regressão dos socialmente débeis e ao desprezo dos pobres. Enquanto multidões imensas carecem ainda do estritamente necessário, alguns, mesmo nas regiões menos desenvolvidas, vivem na opulência e na dissipação. Coexistem o luxo e a miséria. Enquanto um pequeno número dispõe dum grande poder de decisão, muitos estão quase inteiramente privados da possibilidade de agir por própria iniciativa e responsabilidade, e vivem e trabalham em condições indignas da pessoa humana.
Semelhantes desequilíbrios se verificam tanto entre a agricultura, a indústria e os serviços como entre as diferentes regiões do mesmo país. A oposição entre as econòmicamente mais desenvolvidas e as outras torna-se cada vez mais grave e pode pôr em risco a própria paz mundial.
Os nossos contemporâneos têm uma consciência cada vez mais viva destas desigualdades, pois estão convencidos de que as maiores possibilidades técnicas e económicas de que disfruta o mundo actual podem e devem corrigir este funesto estado de coisas. Mas, para tanto, requerem-se muitas reformas na vida económico-social. e uma mudança de mentalidade e de hábitos por parte de todos. Com esse fim, a Igreja, no decurso dos séculos e sobretudo nos últimos tempos, formulou e proclamou à luz do Evangelho os princípios de justiça e equidade, postulados pela recta razão tanto na vida individual e social como na internacional. O sagrado Concílio quer confirmar estes princípios, tendo em conta as condições actuais e dar algumas orientações, tendo presentes antes de mais as exigências do progresso económico.
SECÇÃO 1
O DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO
DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO AO SERVIÇO DO HOMEM
64. Hoje, mais do que nunca, para fazer frente ao aumento populacional e satisfazer às crescentes aspirações do género humano, com razão se faz um esforço por aumentar a produção agrícola e industrial e a prestação de serviços. Deve, por isso, favorecer-se o progresso técnico, o espírito de inventiva, a criação e ampliação dos empreendimentos, a adaptação dos métodos e os esforços valorosos de todos os que participam na produção; numa palavra, todos os factores que contribuem para tal desenvolvimento. Mas a finalidade fundamental da produção não é o mero aumento dos produtos, nem o lucro ou o poderio, mas o serviço do homem; do homem integral, isto é, tendo em conta a ordem das suas necessidades materiais e as exigências da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa; de qualquer homem ou grupo de homens, de qualquer raça ou região do mundo. A actividade económica, regulando-se pelos métodos e leis próprias, deve, portanto, exercer-se dentro dos limites da ordem moral, para que assim se cumpra o desígnio de Deus sobre o homem.
O CONTROLE DO DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO
65. O desenvolvimento económico deve permanecer sob a direcção do homem; nem se deve deixar entregue só ao arbítrio de alguns poucos indivíduos ou grupos economicamente mais fortes ou só da comunidade política ou de algumas nações mais poderosas. Pelo contrário, é necessário que, em todos os níveis, tenha parte na sua direcção o maior número possível de homens, ou todas as nações, se se trata de relações internacionais. De igual modo, é necessário que as iniciativas dos indivíduos e das associações livres sejam coordenadas e organizadas harmònicamente com a actividade dos poderes públicos.
O desenvolvimento não se deve abandonar ao simples curso quase mecânico da actividade económica, ou à autoridade pública sòmente. Devem, por isso, denunciar-se como erróneas tanto as doutrinas que, a pretexto duma falsa liberdade, se opõem às necessárias reformas, como as que sacrificam os direitos fundamentais dos indivíduos e das associações à organização colectiva da produção.
Lembrem-se, de resto, os cidadãos, ser direito e dever seu, que o poder civil deve reconhecer, contribuir, na medida das próprias possibilidades, para o verdadeiro desenvolvimento da sua comunidade. Sobretudo nas regiões economicamente menos desenvolvidas, onde é urgente o emprego de todos os recursos disponíveis, fazem correr grave risco ao bem comum todos aqueles que conservam improdutivas as suas riquezas ou, salvo o direito pessoal de emigração, privam a própria comunidade dos meios materiais ou espirituais de que necessita.
A REMOÇÃO DAS DESIGUALDADES ECONÓMICO-SOCIAIS
66. Para satisfazer às exigências da justiça e da equidade, é necessário esforçar-se enèrgicamente para que, respeitando os direitos das pessoas e a índole própria de cada povo, se eliminem o mais depressa possível as grandes e por vezes crescentes desigualdades económicas actualmente existentes, acompanhadas da discriminação individual e social. De igual modo, tendo em conta as especiais dificuldades da agricultura em muitas regiões, quer na produção quer na comercialização dos produtos, é preciso ajudar os agricultores no aumento e venda da produção, na introdução das necessárias transformações e inovações e na obtenção dum justo rendimento; para que não continuem a ser, como muitas vezes acontece, cidadãos de segunda categoria. Quanto aos agricultores, sobretudo os jovens, dediquem-se com empenho a desenvolver a própria competência profissional, sem a qual é impossível o progresso da agricultura.
É também exigência da justiça e da equidade que a mobilidade, necessária para o progresso económico, seja regulada de tal maneira que a vida dos indivíduos e das famílias não se torne insegura e precária. Deve, portanto, evitar-se cuidadosamente toda e qualquer espécie de discriminação quanto às condições de remuneração ou de trabalho com relação aos trabalhadores oriundos de outro país ou região, que contribuem com o seu trabalho para o desenvolvimento económico da nação ou da província. Além disso, todos, e antes de mais os poderes públicos, devem tratá-los como pessoas, e não como simples instrumentos de produção, ajudá-los para que possam trazer para junto de si a própria família e arranjar conveniente habitação, e favorecer a sua integração na vida social do povo ou da região que os acolhe. Todavia, na medida do possível, criem-se fontes de trabalho nas suas próprias regiões.
Nas economias hoje em transformação, bem como nas novas formas de sociedade industrial, nas quais, por exemplo, a automação se vai impondo, deve ter-se o cuidado de que se proporcione a cada um trabalho suficiente e adaptado, juntamente com a possibilidade duma conveniente formação técnica e profissional; e garantam-se o sustento e a dignidade humana sobretudo àqueles que, por causa de doença ou de idade, têm maiores dificuldades.
SECÇÃO 2
ALGUNS PRINCÍPIOS ORIENTADORES DE TODA A VIDA ECONÓMICO-SOCIAL
TRABALHO, CONDIÇÕES DE TRABALHO, DESCANSO
67. O trabalho humano, que se exerce na produção e na troca dos bens económicos e na prestação de serviços, sobreleva aos demais factores da vida económica, que apenas têm valor de instrumentos.
Este trabalho, empreendido por conta própria ou ao serviço de outrem, procede imediatamente da pessoa, a qual como que marca com o seu zelo as coisas da natureza, e as sujeita ao seu domínio. É com o seu trabalho que o homem sustenta de ordinário a própria vida e a dos seus; por meio dele se une e serve aos seus irmãos, pode exercitar uma caridade autêntica e colaborar no acabamento da criação divina. Mais ainda: sabemos que, oferecendo a Deus o seu trabalho, o homem se associa à obra redentora de Cristo, o qual conferiu ao trabalho uma dignidade sublime, trabalhando com as suas próprias mãos em Nazaré. Daí nasce para cada um o dever de trabalhar fielmente, e também o direito ao trabalho; à sociedade cabe, por sua parte, ajudar em quanto possa, segundo as circunstâncias vigentes, os cidadãos para que possam encontrar oportunidade de trabalho suficiente. Finalmente, tendo em conta as funções e produtividade de cada um, bem como a situação da empresa e o bem comum, o trabalho deve ser remunerado de maneira a dar ao homem a possibilidade de cultivar dignamente a própria vida material, social, cultural e espiritual e a dos seus.
Dado que a actividade económica é, na maior parte dos casos, fruto do trabalho associado dos homens, é injusto e desumano organizá-la e dispô-la de tal modo que isso resulte em prejuízo para qualquer dos que trabalham.
Ora, é demasiado frequente, mesmo em nossos dias, que os trabalhadores estão de algum modo escravizados à própria actividade. Isto não encontra justificação alguma nas pretensas leis económicas. É preciso, portanto, adaptar todo o processo do trabalho produtivo às necessidades da pessoa e às formas de vida; primeiro que tudo da doméstica, especialmente no que se refere às mães, e tendo sempre em conta o sexo e a idade. Proporcione-se, além disso, aos trabalhadores a possibilidade de desenvolver, na execução do próprio trabalho, as suas qualidades e personalidade. Ao mesmo tempo que aplicam responsàvelmente a esta execução o seu tempo e forças, gozem, porém, todos de suficiente descanso e tempo livre para atender à vida familiar, cultural, social e religiosa. Tenham mesmo oportunidade de desenvolver livremente as energias e capacidades que talvez pouco possam exercitar no seu trabalho profissional.
PARTICIPAÇÃO NA EMPRESA E NO CONJUNTO DA ECONOMIA.
CONFLITOS DE TRABALHO
68. Nas empresas económicas, são pessoas as que se associam, isto é homens livres e autónomos, criados à imagem de Deus. Por isso, tendo em conta as funções de cada um -proprietários, empresários, dirigentes ou operários - e salva a necessária unidade de direcção, promova-se, segundo modalidades a determinar convenientemente, a participação activa de todos na gestão das empresas. E dado que frequentemente não é ao nível da empresa mas num mais alto de instituições superiores que se tomam as decisões económicas e sociais de que depende o futuro dos trabalhadores e de seus filhos, eles devem participar também no estabelecimento dessas decisões, por si ou por delegados livremente eleitos.
Entre os direitos fundamentais da pessoa humana deve contar-se o de os trabalhadores criarem livremente associações que os possam representar autênticamente e contribuir para a recta ordenação da vida económica; e ainda o direito de participar, livremente, sem risco de represálias, na actividade das mesmas. Graças a esta ordenada participação, junta com uma progressiva formação económica e social, aumentará cada vez mais em todos a consciência da própria função e dever; ela os levará a sentirem-se associados, segundo as próprias possibilidades e aptidões, a todo o trabalho de desenvolvimento económico e social e à realização do bem comum universal.
Quando, porém, surgem conflitos económico-sociais, devem fazer-se esforços para que se chegue a uma solução pacífica dos mesmos. Mas ainda que, antes de mais, se deva recorrer ao sincero diálogo entre as partes, toda via, a greve pode ainda constituir, mesmo nas actuais circunstâncias, um meio necessário, embora extremo, para defender os próprios direitos e alcançar as justas reivindicações dos trabalhadores. Mas procure-se retomar o mais depressa possível o caminho da negociação e do diálogo da conciliação.
OS BENS DA TERRA, DESTINADOS A TODOS
69. Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a justiça, secundada pela caridade. Sejam quais forem as formas de propriedade, conforme as legítimas instituições dos povos e segundo as diferentes e mutáveis circunstâncias, deve-se sempre atender a este destino universal dos bens. Por esta razão, quem usa desses bens, não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar não só a si mas também aos outros. De resto, todos têm o direito de ter uma parte de bens suficientes para si e suas famílias. Assim pensaram os Padres e Doutores da Igreja, ensinando que os homens têm obrigação de auxiliar os pobres e não apenas com os bens supérfluos. Aquele, porém, que se encontra em extrema necessidade, tem direito de tomar, dos bens dos outros, o que necessita. Sendo tão numerosos os que no mundo padecem fome, o sagrado Concílio insiste com todos, indivíduos e autoridades, para que, recordados daquela palavra dos Padres - «alimenta o que padece fome, porque, se o não alimentaste, mataste-o» - repartam realmente e distribuam os seus bens, procurando sobretudo prover esses indivíduos e povos daqueles auxílios que lhes permitam ajudar-se e desenvolver-se a si mesmos.
Nas sociedades econòmicamente menos desenvolvidas, o destino comum dos bens é frequentes vezes parcialmente atendido graças a costumes e tradições próprias da comunidade, que asseguram a cada membro os bens indispensáveis. Mas deve evitar-se considerar certos costumes como absolutamente imutáveis, se já não correspondem às exigências do tempo actual; por outro lado, não se proceda imprudentemente contra os costumes honestos, que, uma vez convenientemente adaptados às circunstâncias actuais, continuam a ser muito úteis. De modo análogo, nas nações muito desenvolvidas econòmicamente, um conjunto de instituições sociais de previdência e seguro pode constituir uma realidade parcial do destino comum dos bens. Deve prosseguir-se o desenvolvimento dos serviços familiares e sociais, sobretudo daqueles que atendem à cultura e educação. Na organização de todas estas instituições, porém, deve atender-se a que os cidadãos não sejam levados a uma certa passividade com relação à sociedade ou à irresponsabilidade e recusa de serviço.
INVERSÕES E POLÍTICA MONETÁRIA
70. Os investimentos, por sua parte, devem tender a assegurar suficientes empregos e rendimentos, tanto para a população actual como para a de amanhã. Todos os que decidem destes investimentos e da organização da vida económica - indivíduos, grupos ou poderes públicos - devem ter presentes estes fins e reconhecer a grave obrigação que têm de vigiar para que assegurem os requisitos necessários a uma vida digna dos indivíduos e de toda a comunidade; e, ainda, de prever o futuro e garantir um são equilíbrio entre as necessidades do consumo hodierno, individual e colectivo, e as exigências de investimentos para a geração futura. Tenham-se sempre também em conta as necessidades urgentes das nações ou regiões econòmicamente menos desenvolvidas. Em matéria de política monetária, evite-se prejudicar o bem quer da própria nação quer das outras. E tomem-se providências para que os econòmicamente débeis não sofram injusto prejuízo com a desvalorização da moeda.
ACESSO À PROPRIEDADE E DOMÍNIO PRIVADO. PROBLEMAS DOS LATIFÚNDIOS
71. Dado que a propriedade e as outras formas de domínio privado dos bens externos contribuem para a expressão da pessoa e lhe dão ocasião de exercer a própria função na sociedade e na economia, é de grande importância que se fomente o acesso dos indivíduos e grupos a um certo domínio desses bens.
A propriedade privada ou um certo domínio sobre os bens externos asseguram a cada um a indispensável esfera de autonomia pessoal e familiar, e devem ser considerados como que uma extensão da liberdade humana. Finalmente, como estimulam o exercício da responsabilidade, constituem uma das condições das liberdades civis.
As formas desse domínio ou propriedade são actualmente variadas e cada dia se diversificam mais. Mas todas continuam a ser, apesar dos fundos sociais e dos direitos e serviços assegurados pela sociedade, um factor não desprezível de segurança. O que se deve dizer não só dos bens materiais, mas também dos imateriais, como é a capacidade profissional.
No entanto, o direito à propriedade privada não é incompatível com as várias formas legítimas de direito de propriedade pública. Quanto à apropriação pública dos bens, ela só pode ser levada a cabo pela legítima autoridade, segundo as exigências e dentro dos limites do bem comum, e mediante uma compensação equitativa. Compete, além disso, à autoridade pública impedir o abuso da propriedade privada em detrimento do bem comum.
De resto, a mesma propriedade privada é de índole social, fundada na lei do destino comum dos bens. O desprezo deste carácter social foi muitas vezes ocasião de cobiças e de graves desordens, chegando mesmo a fornecer um pretexto para os que contestam esse próprio direito.
Em bastantes regiões econòmicamente pouco desenvolvidas, existem grandes e até vastíssimas propriedades rústicas, fracamente cultivadas ou até deixadas totalmente incultas com intentos lucrativos, enquanto a maior parte do povo não tem terras ou apenas possui pequenos campos e, por outro lado, o aumento da produção agrícola apresenta um evidente carácter de urgência. Não raro, os que são contratados a trabalhar pelos proprietários ou exploram, em regime de arrendamento, uma parte das propriedades, apenas recebem um salário ou um rendimento indigno de um homem, carecem de habitação decente e são explorados pelos intermediários. Desprovidos de qualquer segurança, vivem num tal regime de dependência pessoal que perdem quase por completo a capacidade de iniciativa e responsabilidade e lhes está vedada toda e qualquer promoção cultural ou participação na vida social e política. Impõem-se, portanto, reformas necessárias, segundo os vários casos: para aumentar os rendimentos, corrigir as condições de trabalho, reforçar a segurança do emprego, estimular a iniciativa e, mesmo, para distribuir terras não suficientemente cultivadas àqueles que as possam tornar produtivas. Neste último caso, devem assegurar-se os bens e meios necessários, sobretudo de educação e possibilidades duma adequada organização cooperativa. Sempre, porém, que o bem comum exigir a expropriação, a compensação deve ser equitativamente calculada, tendo em conta todas as circunstâncias.
A ACTIVIDADE ECONÓMICO-SOCIAL E O REINO DE CRISTO
72. Os cristãos que desempenham parte activa no actual desenvolvimento económico-social e lutam pela justiça e pela caridade, estejam convencidos de que podem contribuir muito para o bem da humanidade e paz dó mundo. Em todas estas actividades, quer sòzinhos quer associados, sejam exemplo para todos. Adquirindo a competência e experiência absolutamente indispensáveis, respeitem a devida hierarquia entre as actividades terrenas, fiéis a Cristo e ao seu Evangelho, de maneira que toda a sua vida, tanto individual como social, seja penetrada do espírito das bem-aventuranças, e especialmente do espírito de pobreza. Todo aquele que, obedecendo a Cristo, busca primeiramente o reino de Deus, recebe daí um amor mais forte e mais puro, para ajudar os seus irmãos e realizar, sob o impulso da caridade, a obra da justiça.
CAPÍTULO IV
A VIDA DA COMUNIDADE POLÍTICA
A VIDA POLÍTICA ACTUAL
73. Profundas transformações se verificam nos nossos dias também nas estruturas e instituições dos povos, em consequência da sua evolução cultural, económica e social; pois todas estas transformações têm uma grande influência na vida da comunidade política, especialmente no que se refere aos direitos e deveres de cada um no exercício da liberdade cívica, na promoção do bem comum e na estruturação das relações dos cidadãos entre si e com o poder público.
A consciência mais sentida da dignidade humana dá origem em diversas regiões do mundo ao desejo de instaurar uma ordem político-jurídica em que os direitos da pessoa na vida pública sejam melhor assegurados, tais como os direitos de livre reunião e associação, de expressão das próprias opiniões e de profissão privada e pública da religião. A salvaguarda dos direitos da pessoa é, com efeito, uma condição necessária para que os cidadãos, quer individualmente quer em grupo, possam participar activamente na vida e gestão da coisa pública.
Paralelamente com o progresso cultural, económico e social, cresce em muitos o desejo de tomar maior parte na organização da comunidade política. Aumenta na consciência de muitos o empenho em assegurar os direitos das minorias, sem esquecer de resto os seus deveres para com a comunidade política; cresce, além disso, cada dia o respeito pelos homens que professam uma opinião ou religião diferente; e estabelece-se ao mesmo tempo uma colaboração mais ampla, a fim de que todos os cidadãos, e não apenas alguns privilegiados, possam gozar realmente dós direitos da pessoa.
Condenam-se, pelo contrário, todas as formas políticas, existentes em algumas regiões, que impedem a liberdade civil ou religiosa, multiplicam as vítimas das paixões e dos crimes políticos e desviam do bem comum o exercício da autoridade, em benefício de alguma facção ou dos próprios governantes.
Para estabelecer uma vida política verdadeiramente humana, nada melhor do que fomentar sentimentos interiores de justiça e benevolência e serviço do bem comum e reforçar as convicções fundamentais acerca da verdadeira natureza da comunidade política, bem como do fim, recto exercício e limites da autoridade.
NATUREZA E FIM DA COMUNIDADE POLÍTICA
74. Os indivíduos, as famílias e os diferentes grupos que constituem a sociedade civil, têm consciência da própria insuficiência para realizar uma vida plenamente humana e percebem a necessidade duma comunidade mais ampla, no seio da qual todos conjuguem diàriamente as próprias forças para cada vez melhor promoverem o bem comum. E por esta razão constituem, segundo diversas formas, a comunidade política. A comunidade política existe, portanto, em vista do bem comum; nele encontra a sua completa justificação e significado e dele deriva o seu direito natural e próprio. Quanto ao bem comum, ele compreende o conjunto das condições de vida social que permitem aos indivíduos, famílias e associações alcançar mais plena e fàcilmente a própria perfeição.
Porém, os homens que se reunem na comunidade política são muitos e diferentes, e podem legitimamente divergir de opinião. E assim, para impedir que a comunidade política se desagregue ao seguir cada um o próprio parecer, requere-se uma autoridade que faça convergir para o bem comum as energias de todos os cidadãos; não duma maneira mecânica ou despótica, mas sobretudo como força moral, que se apoia na liberdade e na consciência do próprio dever e sentido de responsabilidade.
Resulta, portanto, claro que a comunidade política e a autoridade pública se fundam na natureza humana e que, por conseguinte, pertencem à ordem estabelecida por Deus, embora a determinação do regime político e a designação dos governantes se deixem à livre vontade dos cidadãos.
Segue-se também que o exercício da autoridade política, seja na comunidade como tal, seja nos organismos representativos, se deve sempre desenvolver e actuar dentro dos limites da ordem. moral, em vista do bem comum, dinâmicamente concebido, de acordo com a ordem jurídica legitimamente estabelecida ou a estabelecer. Nestas condições, os cidadãos têm obrigação moral de obedecer. Daqui a responsabilidade, dignidade e importância dos que governam.
Mas quando a autoridade pública, excedendo os limites da própria competência, oprime os cidadãos, estes não se recusem às exigências objectivas do bem comum; mas é-lhes lícito, dentro dos limites traçados pela lei natural e pelo Evangelho, defender os próprios direitos e os dos seus concidadãos, contra o abuso desta autoridade.
Os modos concretos como a comunidade política organiza a própria estrutura e o equilíbrio dos poderes públicos, podem variar, segundo a diferente índole e o progresso histórico dos povos; mas devem sempre ordenar-se à formação de homens cultos, pacíficos e benévolos para com todos, em proveito de toda a família humana.
A COLABORAÇÃO DE TODOS NA VIDA POLÍTICA
75. É plenamente conforme com a natureza do homem que se encontrem estruturas jurídico-políticas nas quais todos os cidadãos tenham a possibilidade efectiva de participar livre e activamente, dum modo cada vez mais perfeito e sem qualquer discriminação, tanto no estabelecimento das bases jurídicas da comunidade política, como na gestão da coisa pública e na determinação do campo e fim das várias instituições e na escolha dos governantes. Todos os cidadãos se lembrem, portanto, do direito e simultâneamente do dever que têm de fazer uso do seu voto livre em vista da promoção do bem comum. A Igreja louva e aprecia o trabalho de quantos se dedicam ao bem da nação e tomam sobre si o peso de tal cargo, em serviço dos homens.
Para que a cooperação responsável dos cidadãos leve a felizes resultados na vida pública de todos os dias, é necessário que haja uma ordem jurídica positiva, que estabeleça convenientemente divisão das funções e dos orgãos da autoridade pública e ao mesmo tempo protecção do direito eficaz e plenamente independente de quem quer que seja. Juntamente com os deveres a que todos os cidadãos estão obrigados, sejam reconhecidos, assegurados e fomentados os direitos das pessoas, famílias e grupos sociais, bem como o exercício dos mesmos. Entre aqueles, é preciso recordar o dever de prestar à nação os serviços materiais e pessoais que são requeridos pelo bem comum. Os governantes tenham o cuidado de não impedir as associações familiares, sociais ou culturais e os corpos ou organismos intermédios, nem os privem da sua actividade legítima e eficaz; pelo contrário, procurem de bom grado promovê-la ordenadamente. Evitem, por isso, os cidadãos quer individual quer associativamente, conceder à autoridade um poder excessivo, nem lhe peçam, de modo inoportuno, demasiadas vantagens e facilidades, de modo a que se diminua a responsabilidade das pessoas, famílias e grupos sociais.
A crescente complexidade das actuais circunstâncias força com frequência o poder público a intervir nos assuntos sociais, económicos e culturais, com o fim de introduzir condições mais favoráveis em que os cidadãos e grupos possam livremente e com mais eficácia promover o bem humano integral. As relações entre a socialização e a autonomia e desenvolvimento pessoais podem conceber-se diferentemente, conforme a diversidade das regiões e o grau de desenvolvimento dos povos. Mas quando, por exigência do bem comum, se limitar temporàriamente o exercício dos direitos, restabeleça-se quanto antes a liberdade, logo que mudem as circunstâncias. É, porém, desumano que a autoridade política assuma formas totalitárias ou ditatoriais, que lesam os direitos das pessoas ou dos grupos sociais.
Os cidadãos cultivem com magnanimidade e lealdade o amor da pátria, mas sem estreiteza de espírito, de maneira que, ao mesmo tempo, tenham sempre presente o bem de toda a família humana, que resulta das várias ligações entre as raças, povos e nações.
Todos os cristãos tenham consciência da sua vocação especial e própria na comunidade política; por ela são obrigados a dar exemplo de sentida responsabilidade e dedicação pelo bem comum, de maneira a mostrarem também com factos como se harmonizam a autoridade e a liberdade, a iniciativa pessoal e a solidariedade do inteiro corpo social, a oportuna unidade com a proveitosa diversidade. Reconheçam as legítimas opiniões, divergentes entre si, acerca da organização da ordem temporal, e respeitem os cidadãos e grupos que as defendem honestamente. Os partidos políticos devem promover o que julgam ser exigido pelo bem comum, sem que jamais seja lícito antepor o próprio interesse ao bem comum.
Deve atender-se cuidadosamente à educação cívica e política, hoje tão necessária à população e sobretudo aos jovens, para que todos os cidadãos possam participar na vida da comunidade política. Os que são ou podem tornar-se aptos para exercer a difícil e muito nobre arte da política, preparem-se para ela; e procurem exercê-la sem pensar no interesse próprio ou em vantagens materiais. Procedam com inteireza e prudência contra a injustiça e a opressão, contra o arbitrário domínio de uma pessoa ou de um partido, e contra a intolerância. E dediquem-se com sinceridade e equidade, mais ainda, com caridade e fortaleza política, ao bem de todos.
A COMUNIDADE POLÍTICA E A IGREJA
76. E de grande importância, sobretudo onde existe uma sociedade pluralística, que se tenha uma concepção exacta das relações entre a comunidade política e a Igreja, e, ainda, que se distingam claramente as actividades que os fiéis, isoladamente ou em grupo, desempenham em próprio nome como cidadãos guiados pela sua consciência de cristãos, e aquelas que exercitam em nome da Igreja e em união com os seus pastores.
A Igreja que, em razão da sua missão e competência, de modo algum se confunde com a sociedade nem está ligada a qualquer sistema político determinado, é ao mesmo tempo o sinal e salvaguarda da transcendência da pessoa humana.
No domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são independentes e autónomas. Mas, embora por títulos diversos, ambas servem a vocação pessoal e social dos mesmos homens. E tanto mais eficazmente exercitarão este serviço para bem de todos, quanto melhor cultivarem entre si uma sã cooperação, tendo igualmente em conta as circunstâncias de lugar e tempo. Porque o homem não se limita à ordem temporal sòmente; vivendo na história humana, fundada sobre o amor do Redentor, ela contribui para que se difundam mais amplamente, nas nações e entre as nações, a justiça e a caridade. Pregando a verdade evangélica e iluminando com a sua doutrina e o testemunho dos cristãos todos os campos da actividade humana, ela respeita e promove também a liberdade e responsabilidade política dos cidadãos.
Os Apóstolos e os sucessores dos mesmos, com os seus cooperadores, enviados para anunciar aos homens Cristo, salvador do mundo, têm por sustentáculo do seu apostolado o poder de Deus, o qual muitas vezes manifesta a força do Evangelho na fraqueza das suas testemunhas. É preciso, pois, que todos os que se consagram ao ministério da palavra de Deus utilizem os caminhos e meios próprios do Evangelho, tantas vezes diferentes dos meios da cidade terrena.
É certo que as coisas terrenas e as que, na condição humana, transcendem este mundo, se encontram intimamente ligadas; a própria Igreja usa das coisas temporais, na medida em que a sua missão o exige. Mas ela não coloca a sua esperança nos privilégios que lhe oferece a autoridade civil; mais ainda, ela renunciará ao exercício de alguns direitos legitimamente adquiridos, quando verificar que o seu uso põe em causa a sinceridade do seu testemunho ou que novas condições de vida exigem outras disposições. Porém, sempre lhe deve ser permitido pregar com verdadeira liberdade a fé; ensinar a sua doutrina acerca da sociedade; exercer sem entraves a própria missão entre os homens; e pronunciar o seu juízo moral mesmo acerca das realidades políticas, sempre que os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigirem e utilizando todos e só aqueles meios que são conformes com o Evangelho e, segundo a variedade dos tempos e circunstâncias, são para o bem de todos.
Aderindo fielmente ao Evangelho e realizando a sua missão no mundo, a Igreja -a quem pertence fomentar e elevar tudo o que de verdadeiro, bom e belo se encontra na comunidade dos homens - consolida, para glória de Deus, a paz entre os homens.
CAPÍTULO V
A PROMOÇÃO DA PAZ E A COMUNIDADE INTERNACIONAL
NECESSIDADE E DESEJOS ACTUAIS DA PAZ
77. Nestes nossos tempos, em que as dores e angústias derivadas da guerra ou da sua ameaça ainda oprimem tão duramente os homens, a família humana chegou a uma hora decisiva no seu processo de maturação. Progressivamente unificada, e por toda a parte mais consciente da própria unidade, não pode levar a cabo a tarefa que lhe incumbe de construir um mundo mais humano para todos os homens, a não ser que todos se orientem com espírito renovado à verdadeira paz. A mensagem evangélica, tão em harmonia com os mais altos desejos e aspirações do género humano, brilha assim com novo esplendor nos tempos de hoje, ao proclamar felizes os construtores da paz «porque serão chamados filhos de Deus» (Mt. 5,9). Por isso, o Concílio, explicando a verdadeira e nobilíssima natureza da paz, e uma vez condenada a desumanidade da guerra, quer apelar ardentemente para que os cristãos, com a ajuda de Cristo, autor da paz, colaborem com todos os homens no estabelecimento da paz na justiça e no amor e na preparação dos instrumentos da mesma paz.
NATUREZA DA PAZ E SUA CONSECUÇÃO
78. A paz não é ausência de guerra; nem se reduz ao estabelecimento do equilíbrio entre as forças adversas, nem resulta duma dominação despótica. Com toda a exactidão e propriedade ela é chamada «obra da justiça» (Is. 32, 7). É um fruto da ordem que o divino Criador estabeleceu para a sociedade humana, e que deve ser realizada pelos homens, sempre anelantes por uma mais perfeita justiça. Com efeito, o bem comum do género humano é regido, primária e fundamentalmente, pela lei eterna; mas, quanto às suas exigências concretas, está sujeito a constantes mudanças, com o decorrer do tempo. Por esta razão, a paz nunca se alcança duma vez para sempre, antes deve estar constantemente a ser edificada. Além disso, como a vontade humana é fraca e ferida pelo pecado, a busca da paz exige o constante domínio das paixões de cada um e a vigilância da autoridade legítima. Mas tudo isto não basta. Esta paz não se pode alcançar na terra a não ser que se assegure o bem das pessoas e que os homens compartilhem entre si livre e confiadamente as riquezas do seu espírito criador. Absolutamente necessárias para a edificação da paz são ainda a vontade firme de respeitar a dignidade dos outros homens e povos e a prática assídua da fraternidade. A paz é assim também fruto do amor, o qual vai além do que a justiça consegue alcançar. A paz terrena, nascida do amor do próximo, é imagem e efeito da paz de Cristo, vinda do Pai. Pois o próprio Filho encarnado, príncipe da paz, reconciliou com Deus, pela cruz, todos os homens; restabelecendo a unidade de todos num só povo e num só corpo, extinguiu o ódio e, exaltado na ressurreição, derramou nos corações o Espírito de amor.
Todos os cristãos são, por isso, insistentemente chamados a que «praticando a verdade na caridade» (Ef. 4, 15), se unam com os homens verdadeiramente pacíficos para implorarem e edificarem a paz.
Levados pelo mesmo espírito, não podemos deixar de louvar aqueles que, renunciando à violência na reivindicação dos próprios direitos, recorrem a meios de defesa que estão também ao alcance dos mais fracos — sempre que isto se possa fazer sem lesar os direitos e obrigações de outros ou da comunidade.
Na medida em que os homens são pecadores, o perigo da guerra ameaça-os e continuará a ameaça-los até à vinda de Cristo; mas na medida em que, unidos em caridade, superam o pecado, superadas ficam também as lutas, até que se realize aquela palavra: «com as espadas forjarão arados e foices com as lanças. Nenhum povo levantará a espada contra outro e jamais se exercitarão para a guerra» (Is. 2, 4).
SECÇÃO 1
EVITAR A GUERRA
REFREAR A CRUELDADE DAS GUERRAS
79. Apesar de as últimas guerras terem trazido tão grandes danos materiais e morais, ainda todos os dias a guerra leva por diante as suas devastações em alguma parte da terra. Mais ainda, o emprego de armas científicas de todo o género para fazer a guerra, ameaça, dada a selvajaria daquelas, levar os combatentes a uma barbárie muito pior que a de outros tempos. Além disso, a complexidade da actual situação e o intrincado dos relações entre países tornam possível o prolongar-se de guerras mais ou menos larvadas, pelo recurso a novos métodos insidiosos e subversivos. Em muitos casos, o recurso aos métodos do terrorismo é considerado como uma nova forma de guerra.
Tendo diante dos olhos este estado de prostração da humanidade, o Concílio quer, antes de mais, recordar o valor permanente do direito natural internacional e dos seus princípios universais. A. própria consciência da humanidade afirma cada vez com maior força estes princípios. As acções que lhes são deliberadamente contrárias, bem como as ordens que as mandam executar, são portanto, criminosas; nem a obediência cega pode desculpar os que as cumprem. Entre tais actos devem-se contar, antes de mais, aqueles com que se leva metòdicamente a cabo o extermínio de toda uma raça, nação ou minoria étnica. Tais acções devem ser veementemente condenadas como horríveis crimes e louvada no mais alto grau a coragem de quantos não temem resistir abertamente aos que as querem impor.
Existem diversas convenções internacionais relativas à guerra assinadas por bastantes nações, e que visam a tornar menos desumanas as actividades bélicas e suas consequências; tais, por exemplo, as que se referem à sorte dos soldados feridos ou prisioneiros, e outras semelhantes. Estes acordos devem ser observados. Mais ainda, todos, sobretudo os poderes públicos e os peritos nestas matérias, têm obrigação de procurar aperfeiçoa-los quanto lhes for
possível, de maneira a que sejam capazes de melhor e mais eficazmente refrearem a crueldade das guerras. Parece, além disso, justo que as leis tenham em conta com humanidade o caso daqueles que, por motivo de consciência, recusam combater, contanto que aceitem outra forma de servir a comunidade humana.
Na realidade, a guerra não foi eliminada do mundo dos homens. E enquanto existir o perigo de guerra e não houver uma autoridade internacional competente e dotada dos convenientes meios, não se pode negar aos governos, depois de esgotados todos os recursos de negociações pacíficas, o direito de legítima defesa. Cabe assim aos governantes e aos demais que participam na responsabilidade dos negócios públicos, o dever de assegurar a defesa das populações que lhes estão confiadas, tratando com toda a seriedade um assunto tão sério. Mas uma coisa é utilizar a força militar para defender justamente as populações, outra coisa é querer subjugar as outras nações. O poderio bélico não legitima qualquer uso militar ou político que dele se faça. Nem, finalmente, uma vez começada lamentàvelmente a guerra, já tudo se torna lícito entre as partes beligerantes.
Aqueles que se dedicam ao serviço da pátria no exército, considerem-se servidores da segurança e da liberdade dos povos; na medida em que se desempenham como convém desta tarefa, contribuem verdadeiramente para o estabelecimento da paz.
A GUERRA TOTAL
80. Com o incremento das armas científicas, tem aumentado desmesuradamente o horror e maldade da guerra. Pois, com o emprego de tais armas, as acções bélicas podem causar enormes e indiscriminadas destruições, que desse modo já vão muito além dos limites da legítima defesa. Mais ainda: se se empregasse integralmente o material existente nos arsenais das grandes potências, resultaria daí o quase total e recíproco extermínio de ambos os adversários, sem falar nas inúmeras devastações provocadas no mundo e nos funestos efeitos que do uso de tais armas se seguiriam.
Tudo isto nos força a considerar a guerra com um espírito inteiramente novo. Saibam os homens de hoje que darão grave conta das suas actividades bélicas. Pois das suas decisões actuais dependerá em grande parte o curso dos tempos futuros.
Tendo em atenção todas estas coisas, e fazendo suas as condenações da guerra total já anteriormente pronunciadas pelos Sumos Pontífices, este sagrado Concílio declara:
Toda a acção bélica que tende indiscriminadamente à destruição de cidades inteiras ou vastas regiões e seus habitantes é um crime contra Deus e o próprio homem, que se deve condenar com firmeza e sem hesitação.
O perigo peculiar da guerra hodierna está em que ela fornece, por assim dizer, a oportunidade de cometer tais crimes àqueles que estão de posse das modernas armas científicas; e, por uma consequência quase fatal, pode impelir as vontades dos homens às mais atrozes decisões. Para que tal nunca venha a suceder, os Bispos de todo o mundo, reunidos, imploram a todos, sobretudo aos governantes e chefes militares, que ponderem sem cessar a sua tão grande responsabilidade perante Deus e a humanidade.
A CORRIDA AOS ARMAMENTOS
81. É verdade que não se acumulam as armas científicas só com o fim de serem empregadas na guerra. Com efeito, dado que se pensa que a solidez defensiva de cada parte depende da sua capacidade de resposta fulminante, esta acumulação de armas, que aumenta de ano para ano, serve, paradoxalmente, para dissuadir possíveis inimigos. Muitos pensam que este é hoje o meio mais eficaz para assegurar uma certa paz entre as nações.
Seja o que for deste meio de dissuasão, convençam-se os homens de que a corrida aos armamentos, a que se entregam muitas nações, não é caminho seguro para uma firme manutenção da paz; e de que o pretenso equilíbrio daí resultante não é uma paz segura nem verdadeira. Corre-se o perigo de que, com isso, em vez de se eliminarem as causas da guerra, antes se agravem progressivamente. E enquanto se dilapidam riquezas imensas no constante fabrico de novas armas, torna-se impossível dar remédio suficiente a tantas misérias de que sofre o mundo actualmente. Mais do que sanar verdadeiramente e plenamente as discórdias entre as nações, o que se consegue é contagiar com elas outras partes do mundo. É preciso escolher outros caminhos, partindo da reforma das mentalidades, para eliminar este escândalo e poder-se restituir ao mundo, liberto da angústia que o oprime, uma paz verdadeira.
Por tal razão, de novo se deve declarar que a corrida aos armamentos é um terrível flagelo para a humanidade e prejudica os pobres dum modo intolerável. E é muito de temer, se ela continuar, que um dia provoque as exterminadoras calamidades de que já presentemente prepara os meios.
Advertidos pelas calamidades que o género humano tornou possíveis, aproveitemos o tempo de que ainda dispomos para, tornados mais conscientes da própria responsabilidade, encontrarmos os caminhos que tornem possível resolver os nossos conflitos dum modo mais digno de homens. A providência divina instantemente nos pede que nos libertemos da antiga servidão da guerra. Se nos recusamos a fazer este esforço, não sabemos aonde nos levará o funesto caminho por onde enveredámos.
PROSCRIÇÃO TOTAL DA GUERRA E ACÇÃO INTERNACIONAL PARA A EVITAR
82. É, portanto, claro, que nos devemos esforçar por todos os meios por preparar os tempos em que, por comum acordo das nações, se possa interditar absolutamente qualquer espécie de guerra. Isto exige, certamente, a criação duma autoridade pública mundial, por todos reconhecida e com poder suficiente para que fiquem garantidos a todos a segurança, o cumprimento da justiça e o respeito dos direitos. Porém, antes que esta desejável autoridade possa ser instituída, é necessário que os supremos organismos internacionais se dediquem com toda a energia a buscar os meios mais aptos para conseguir a segurança comum. Já que a paz deve antes nascer da confiança mútua do que ser imposta pelo terror das armas, todos devem trabalhar por que se ponha, finalmente, um termo à corrida aos armamentos e por que se inicie progressivamente e com garantias reais e eficazes, a redução dos mesmos armamentos, não unilateral evidentemente, mas simultânea e segundo o que for estatuído.
Entretanto, não se devem subestimar as tentativas já feitas ou ainda em curso para afastar o perigo da guerra. Procure-se antes ajudar a boa vontade de muitos que, carregados com as ingentes preocupações dos seus altos ofícios, mas movidos do seriíssimo dever que os obriga, se esforçam por eliminar a guerra de que têm horror, embora não possam prescindir da complexidade objectiva das situações. E dirijam-se a Deus instantes preces, para que lhes dê a força necessária para empreender com perseverança e levar a cabo com fortaleza esta obra de imenso amor dos homens, de construir virilmente a paz. Hoje em dia, isto exige certamente deles que alarguem o espírito mais além das fronteiras da própria nação, deponham o egoísmo nacional e a ambição de dominar sobre os outros países, fomentem um grande respeito por toda a humanidade, que já avança tão laboriosamente para uma maior unidade.
As sondagens até agora diligente e incansàvelmente levadas a cabo acerca dos problemas da paz e desarmamento, e as reuniões internacionais que trataram deste assunto, devem ser consideradas como os primeiros passos para a solução de tão graves problemas e devem no futuro promover-se ainda com. mais empenho, para obter resultados práticos. No entanto, evitem os homens entregar-se apenas aos esforços de alguns, sem se preocuparem com a própria mentalidade. Pois os governantes, responsáveis pelo bem comum da própria nação e ao mesmo tempo promotores do bem de todo o mundo, dependem muito das opiniões e sentimentos das populações. Nada aproveitarão com dedicar-se à edificação da paz, enquanto os sentimentos de hostilidade, desprezo e desconfiança, os ódios raciais e os preconceitos ideológicos dividirem os homens e os opuserem uns aos outros. Daqui a enorme necessidade duma renovação na educação das mentalidades e na orientação da opinião publica. Aqueles que se consagram à obra de educação, sobretudo da juventude, ou que formam a opinião pública, considerem como gravíssimo dever o procurar formar as mentalidades de todos para novos sentimentos pacíficos. Todos nós temos, com efeito, de reformar o nosso coração, com os olhos postos no mundo inteiro e naquelas tarefas que podemos realizar juntos para o progresso da humanidade.
Não nos engane uma falsa esperança. A não ser que, pondo de parte inimizades e ódios, se celebrem no futuro pactos sólidos e honestos acerca dá paz universal, a humanidade, que já agora corre grave risco, chegará talvez desgraçadamente, apesar da sua admirável ciência, àquela hora em que não conhecerá outra paz além da horrível tranquilidade da morte. Mas, ao mesmo tempo que isto afirma, a Igreja de Cristo, no meio das angústias do tempo actual, não deixa de esperar firmemente. A nossa época quer ela propor, uma e outra vez, oportuna e importunamente, a mensagem do Apóstolo: «eis agora o tempo favorável» para a conversão dos corações, «eis agora os dias da salvação (5).
SECÇÃO 2
CONSTRUÇÃO DA COMUNIDADE INTERNACIONAL
CAUSAS E REMÉDIOS DAS DISCÓRDIAS
83. Para edificar a paz, é preciso, antes de mais, eliminar as causas das discórdias entre os homens, que são as que alimentam as guerras, sobretudo as injustiças. Muitas delas provêm das excessivas desigualdades económicas e do atraso em lhes dar remédios necessários. Outras, porém, nascem do espírito de dominação e do desprezo das pessoas; e, se buscamos causas mais profundas, da inveja, desconfiança e soberba humanas, bem como de outras paixões egoístas. Como o homem não pode suportar tantas desordens, delas provém que, mesmo sem haver guerra, o mundo está continuamente envenenado com as contendas e violências entre os homens. E como se verificam os mesmos males nas relações entre as nações, é absolutamente necessário, para os vencer ou prevenir, e para reprimir as violências desenfreadas, que os organismos internacionais cooperem e se coordenem melhor e que se fomentem incansàvelmente as organizações que promovem a paz.
A COMUNIDADE DAS NAÇÕES E INSTITUIÇÕES INTERNACIONAIS
84. Para que o bem comum universal se procure convenientemente e se alcance com eficácia, torna-se já necessário, dado o aumento crescente de estreitos laços de mútua dependência entre todos os cidadãos e entre todos os povos do mundo, que a comunidade dos povos se dê a si mesma uma estrutura à altura das tarefas actuais, sobretudo relativamente àquelas numerosas regiões que ainda padecem intolerável indigência.
Para obter tais fins, as instituições da comunidade internacional devem prover, cada uma por sua parte, às diversas necessidades dos homens, no domínio da vida social - a que pertencem a alimentação, saúde, educação, trabalho - como em certas circunstâncias particulares, que podem surgir aqui ou ali, tais como a necessidade geral de favorecer o progresso das nações em vias de desenvolvimento, de obviar às necessidades dos refugiados dispersos por todo o mundo, ou ainda de ajudar os emigrantes e suas famílias.
As instituições internacionais, mundiais ou regionais, já existentes, são beneméritas do género humano. Aparecem como as primeiras tentativas para lançar os fundamentos internacionais da inteira comunidade humana, a fim de se resolverem os gravíssimos problemas dos nossos tempos, se promover o progresso em todo o mundo e se prevenir qualquer forma de guerra. A Igreja alegra-se com o espírito de verdadeira fraternidade que em todos estes campos floresce entre cristãos e não-cristãos, e tende a intensificar os esforços por remediar tão grande miséria.
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL NO CAMPO ECONÓMICO
85. A unificação actual do género humano requer também uma cooperação internacional mais ampla no campo económico. Com efeito, embora quase todos os povos se tenham tornado independentes, estão ainda longe de se encontrarem livres de excessivas desigualdades ou de qualquer forma de dependência indevida, ou ao abrigo de graves dificuldades internas.
O crescimento dum país depende dos recursos humanos e financeiros. Em cada nação, os cidadãos devem ser preparados pela educação e formação profissional, para desempenharem as diversas funções da vida económica e social. Para tal, requere-se a ajuda de peritos estrangeiros; estes, ao darem tal ajuda, não procedam como dominadores, mas como auxiliares e cooperadores. Não será possível prestar o auxílio material às nações em desenvolvimento, se não se mudarem profundamente no mundo as estruturas do comércio actual. Os países desenvolvidos prestar-lhes-ão ainda ajuda sob outras formas, tais como dons, empréstimos ou investimentos financeiros; os quais se devem prestar generosamente e sem cobiça, por uma das parte, e receber com inteira honestidade, pela outra.
Para se estabelecer uma autêntica ordem económica internacional, é preciso abolir o apetite de lucros excessivos, as ambições nacionais, o desejo de domínio político, os cálculos de ordem militar bem como as manobras para propagar e impor ideologias. Apresentam-se muitos sistemas económicos e sociais; é de desejar que os especialistas encontrem neles as bases comuns dum são comércio mundial; o que mais fàcilmente se conseguirá, se cada um renunciar aos próprios preconceitos e se mostrar disposto a um diálogo sincero.
ALGUMAS NORMAS OPORTUNAS
86. Para tal cooperação, parecem oportunas as seguintes normas:
a) As nações em desenvolvimento ponham todo o empenho em procurar firmemente que a finalidade expressa do seu progresso seja a plena perfeição humana dos cidadãos. Lembrem-se que o progresso se origina e cresce, antes de mais, com o trabalho e engenho das populações, pois deve apoiar-se não apenas nos auxílios estrangeiros, mas sobretudo no desenvolvimento dos próprios recursos e no cultivo das qualidades e tradições próprias. Neste ponto, devem sobressair aqueles que têm maior influência nos outros.
b) É dever muito grave dos povos desenvolvidos ajudar os que estão em vias de desenvolvimento a realizar as tarefas referidas. Levem, portanto, a cabo, em si mesmos, as adaptações psicológicas e materiais que são necessárias para estabelecer esta cooperação internacional. E assim, nas negociações com as nações mais fracas e pobres, atendam com muito cuidado ao bem das mesmas; pois elas necessitam, para seu sustento, dos lucros alcançados com a venda dos bens que produzem.
c) Cabe à comunidade internacional coordenar e estimular o desenvolvimento de modo a que os recursos a isso destinados sejam utilizados com o máximo de eficácia e total equidade. Também a ela pertence, sempre dentro do respeito pelo princípio de subsidiariedade, regular as relações económicas no mundo inteiro de modo que se desenvolvam segundo a justiça.
Criem-se instituições aptas para promover e regular o comércio internacional, sobretudo com as nações menos desenvolvidas, e para compensar as deficiências que ainda perduram, nascidas da excessiva desigualdade de poder entre as nações. Esta ordenação, acompanhada de ajudas técnicas, culturais e financeiras, deve proporcionar às nações em vias de desenvolvimento os meios necessários para poderem conseguir convenientemente o progresso da própria economia.
d) Em muitos casos, é urgente necessidade rever as estruturas económicas e sociais. Mas evitem-se as soluções técnicas prematuramente propostas, sobretudo aquelas que, trazendo ao homem vantagens materiais, são opostas à sua natureza espiritual e ao seu progresso. Com efeito, «o homem não vive só de pão, mas também de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt. 4, 4). E qualquer parcela da família humana leva em si mesma e nas suas melhores tradições uma parte do tesouro espiritual confiado por Deus à humanidade, mesmo que muitos desconheçam a origem donde procede.
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL NO QUE SE REFERE AO INCREMENTO DEMOGRÁFICO
87. A cooperação internacional é especialmente necessária no caso, actualmente bastante frequente, daqueles povos que, além de muitas outras dificuldades, sofrem especialmente da que deriva dum rápido aumento da população. É urgentemente necessário que, por meio duma plena e intensa cooperação de todos, e sobretudo das nações mais ricas, se investigue o modo de tornar possível preparar e fazer chegar a toda a humanidade o que é preciso para a subsistência e conveniente educação dos homens. Mas alguns povos poderiam melhorar muito as suas condições de vida se, devidamente instruídos, passassem dos métodos arcaicos de exploração agrícola para as técnicas modernas, aplicando-as com a devida prudência à própria situação, instaurando, além disso, uma melhor ordem social e procedendo a uma distribuição mais justa da propriedade das terras.
Com relação ao problema da população, na própria nação e dentro dos limites da própria competência, tem o governo direitos e deveres; assim, por exemplo, no que se refere à legislação social e familiar, ao êxodo das populações agrícolas para as cidades, à informação acerca da situação e necessidades nacionais. Dado que hoje este problema preocupa intensamente os espíritos, é também de desejar que especialistas católicos, sobretudo nas Universidades, prossigam e ampliem diligentemente os estudos e iniciativas sobre estas matérias.
Visto que muitos afirmam que o aumento da população do globo, ou ao menos de algumas nações, deve ser absoluta e radicalmente diminuído por todos os meios e por qualquer espécie de intervenção da autoridade pública, o Concílio exorta todos a que evitem as soluções, promovidas privada ou pùblicamente ou até por vezes impostas, que sejam contrárias à lei moral. Porque, segundo o inalienável direito ao casamento e procriação da prole, a decisão acerca do número de filhos depende do recto juízo dos pais e de modo algum se pode entregar ao da autoridade pública. Mas como o juízo dos pais pressupõe uma consciência bem formada, é de grande importância que todos tenham a possibilidade de cultivar uma responsabilidade recta e autênticamente humana, que tenha em conta a lei divina, consideradas as circunstâncias objectivas e temporais; isto exige, porém, que por toda a parte melhorem as condições pedagógicas e sociais e, antes de mais, que seja dada uma formação religiosa ou, pelo menos, uma íntegra educação moral. Sejam também as populações judiciosamente informadas acerca dos progressos científicos alcançados na investigação dos métodos que ajudam os esposos na determinação do número de filhos, cuja segurança esteja bem comprovada e de que conste claramente a legitimidade moral.
O DEVER DOS CRISTÃOS NA AJUDA INTERNACIONAL
88. Os cristãos cooperem de bom grado e de todo o coração na construção da ordem internacional com verdadeiro respeito pelas liberdades legítimas e na amigável fraternidade de todos; e tanto mais quanto é verdade que a maior parte do mundo ainda sofre tanta necessidade, de maneira que, nos pobres, o próprio Cristo como que apela em alta voz para a caridade dos seus discípulos. Não se dê aos homens o escândalo de haver algumas nações, geralmente de maioria cristã, na abundância, enquanto outras não têm sequer o necessário para viver e são atormentadas pela fome, pela doença e por toda a espécie de misérias. Pois o espírito de pobreza e de caridade são a glória e o testemunho da Igreja de Cristo.
São, por isso, de louvar e devem ser ajudados os cristãos, sobretudo jovens, que se oferecem espontâneamente para ir em ajuda dos outros homens e povos. Mais ainda: cabe a todo o Povo de Deus, precedido pela palavra e exemplo dos Bispos, aliviar, quanto lhe for possível, as misérias deste tempo; e isto, como era. o antigo uso da Igreja, não sòmente com o supérfluo, mas também com o necessário.
Sem cair numa organização rígida e uniforme, deve, no entanto, o modo de recolher e distribuir estes socorros ser regulado com uma certa ordem, nas dioceses, nações e em todo o mundo; e onde parecer oportuno, conjugando a actividade dos católicos com a dos outros irmãos cristãos. Porque o espírito de caridade, longe de se opor a um exercício providente e ordenado da actividade social e caritativa, antes o exige. Pelo que é necessário que os que pretendem dedicar-se ao serviço das nações em vias de desenvolvimento, recebam conveniente formação em instituições adequadas.
A PRESENÇA EFICAZ DA IGREJA NA COMUNIDADE INTERNACIONAL
89. Quando a Igreja, em virtude da sua missão divina, prega a todos os homens o Evangelho e lhes dispensa os tesouros da graça, contribui para a consolidação da paz em todo o mundo e para estabelecer um sólido fundamento para a fraterna comunidade dos homens e dos povos, a saber: o conhecimento da lei divina e natural. É, portanto, absolutamente necessário que a Igreja esteja presente na comunidade das nações, para fomentar e estimular a cooperação entre os homens; tanto por meio das suas instituições públicas como graças à inteira e sincera colaboração de todos os cristãos, inspirada apenas pelo desejo de servir a todos.
O que se alcançará mais eficazmente se os fiéis, conscientes da própria responsabilidade humana e cristã, procurarem já no seu meio de vida despertar a vontade de cooperar prontamente com a comunidade internacional. Dedique-se especial cuidado em formar neste ponto a juventude, tanto na educação religiosa como na cívica.
A COOPERAÇÃO DOS CRISTÃOS NAS INSTITUIÇÕES INTERNACIONAIS
90. Uma das melhores formas de actuação internacional dos cristãos consiste certamente na cooperação que, isoladamente ou em grupo, prestam nas próprias instituições criadas ou a criar para o desenvolvimento da cooperação entre as nações. Também podem contribuir muito para a edificação da comunidade dos povos, na paz e fraternidade, as várias associações católicas internacionais, as quais devem ser consolidadas, com o aumento de colaboradores bem formados, e dos meios de que necessitam e com uma conveniente coordenação de forças. Nos tempos actuais, com efeito, tanto a eficácia da acção como a necessidade do diálogo reclamam empreendimentos colectivos. Essas associações contribuem, além disso, não pouco também para desenvolver o sentido de universalidade, muito próprio dos católicos, e para formar a consciência da solidariedade e responsabilidade verdadeiramente universais.
Finalmente, é de desejar que os católicos, para bem cumprirem a sua missão na comunidade internacional, procurem cooperar activa e positivamente quer com os irmãos separados que com eles professam a caridade evangélica, quer com todos os homens que anelam verdadeiramente pela paz.
Perante as imensas desgraças que ainda hoje torturam a maior parte da humanidade, e para fomentar por toda a parte a justiça e ao mesmo tempo o amor de Cristo para com os pobres, o Concílio, por sua parte, julga muito oportuna a criação de algum organismo da Igreja universal, incumbido de estimular a comunidade católica na promoção do progresso das regiões necessitadas e da justiça social entre as nações.
CONCLUSÃO
DEVER DOS FIÉIS E DAS IGREJAS PARTICULARES
91. Tudo o que, tirado dos tesouros da doutrina da Igreja, é proposto por este sagrado Concílio, pretende ajudar todos os homens do nosso tempo, quer acreditem em Deus, quer não O conheçam explicitamente, a que, conhecendo mais claramente a sua vocação integral, tornem o mundo mais conforme à sublime dignidade do homem, aspirem a uma fraternidade universal mais profundamente fundada e, impelidos pelo amor, correspondam com um esforço generoso e comum às urgentes exigências da nossa era.
Certamente, perante a imensa diversidade de situações e de formas de cultura existentes no mundo, esta proposição de doutrina reveste intencionalmente, em muitos pontos, apenas um carácter genérico; mais ainda: embora formule uma doutrina aceite na Igreja, todavia, como se trata frequentemente de realidades sujeitas a constante transformação, deve ainda ser continuada e ampliada. Confiamos, porém, que muito do que enunciámos apoiados na palavra de Deus e no espírito do Evangelho, poderá proporcionar a todos uma ajuda válida, sobretudo depois de os cristãos terem levado a cabo, sob a direcção dos pastores, a adaptação a cada povo e mentalidade.
DIÁLOGO ENTRE TODOS OS HOMENS
92. Em virtude da sua missão de iluminar o mundo inteiro com a mensagem de Cristo e de reunir sob um só Espírito todos os homens, de qualquer nação, raça ou cultura, a Igreja constitui um sinal daquela fraternidade que torna possível e fortalece o diálogo sincero.
Isto exige, em primeiro lugar, que, reconhecendo toda a legítima diversidade, promovamos na própria Igreja a mútua estima, respeito e concórdia, em ordem a estabelecer entre todos os que formam o Povo de Deus, pastores ou fiéis, um diálogo cada vez mais fecundo. Porque o que une entre si os fiéis é bem mais forte do que o que os divide: haja unidade no necessário, liberdade no que é duvidoso, e em tudo caridade.
Abraçamos também em espírito os irmãos que ainda não vivem em plena comunhão connosco, e as suas comunidades, com os quais estamos unidos na confissão do Pai, Filho e Espírito Santo, e pelo vínculo da caridade, lembrados de que a unidade dos cristãos é hoje esperada e desejada mesmo por muitos que não crêem em Cristo. Com efeito, quanto mais esta unidade progredir na verdade e na caridade, pela poderosa acção do Espírito Santo, tanto mais será para o mundo um presságio de unidade e de paz. Unamos, pois, as nossas forças e, cada dia mais fiéis ao Evangelho, procuremos, por modos cada vez mais eficazes para alcançar este fim tão alto, cooperar fraternalmente no serviço da família humana, chamada, em Cristo, a tornar-se a família dos filhos de Deus.
Voltamos também o nosso pensamento para todos os que reconhecem Deus e guardam nas suas tradições preciosos elementos religiosos e humanos, desejando que um diálogo franco nos leve a todos a receber com fidelidade os impulsos do Espírito e a segui-los com entusiasmo.
Por nossa parte, o desejo de um tal diálogo, guiado apenas pelo amor pela verdade e com a necessária prudência, não exclui ninguém; nem aqueles que cultivam os altos valores do espírito humano, sem ainda conhecerem o seu autor; nem aqueles que se opõem à Igreja, e de várias maneiras a perseguem. Como Deus Pai é o princípio e o fim de todos eles, todos somos chamados a ser irmãos. Por isso, chamados pela mesma vocação humana e divina, podemos e devemos cooperar pacificamente, sem violência nem engano, na edificação do mundo na verdadeira paz.
A EDIFICAÇÃO DO MUNDO E A SUA ORIENTAÇÃO PARA DEUS
93. Lembrados da palavra do Senhor: «nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros» (Jo. 13, 35), os cristãos nada podem desejar mais ardentemente do que servir sempre com maior generosidade e eficácia os homens do mundo de hoje. E assim, fiéis ao Evangelho e graças à sua força, unidos a quantos amam e promovem a justiça, têm a realizar aqui na terra uma obra imensa, da qual prestarão contas Aquele que a todos julgará no último dia. Nem todos os que dizem «Senhor, Senhor» entrarão no reino dos céus, mas aqueles que cumprem a vontade do Pai (2) e põem sèriamente mãos a obra. Ora, a vontade do Pai é que reconheçamos e amemos efectivamente em todos os homens a Cristo, por palavra e por obras, dando assim testemunho da verdade e comunicando aos outros o mistério do amor do Pai celeste. Deste modo, em toda a terra, os homens serão estimulados à esperança viva, dom do Espírito Santo, para que finalmente sejam recebidos na paz e felicidade infinitas, na pátria que refulge com a glória do Senhor.
«Aquele que, em virtude do poder que actua em nós, é capaz de fazer que superabundemos para além do que pedimos ou pensamos, a Ele seja dada a glória na Igreja e em Cristo Jesus, por todos os séculos dos séculos. Amém» (Ef. 3, 20-21).
Roma, 7 de Dezembro de 1965
PAPA PAULO VI