INTRODUÇÃO DO OPÚSCULO III

INTRODUÇÃO DO OPÚSCULO III

 

Diz Santo Agostinho não haver coisa mais útil para conseguir a salvação eterna do que pensar todos os dias nos tormentos que Jesus sofreu por nosso amor (Ad Frat. in er. serm. 32). E já Orígenes tinha escrito que o pecado não poderia certamente imperar na alma que meditasse continuamente na morte de seu Salvador (Lib. 6 in Rm 6). Além disso, revelou o Senhor a um santo anacoreta não haver exercício mais apropriado para acender num coração o amor divino, do que meditar na paixão de nosso Redentor. Por essa razão dizia o Pe. Baltasar Álvarez que a ignorância dos tesouros que possuímos em Jesus, na sua paixão, era a ruína dos cristãos, e por isso repetia a seus penitentes que não pensassem ter feito coisa alguma se não tivessem ainda conseguido ter sempre fixo no seu coração a Jesus crucificado. As chagas de Jesus, dizia São Boaventura (Stim. div. am. p. I, c. 1), ferem os corações mais duros e inflamam as almas mais frias.

 

 

Ora, como adverte sabiamente um douto escritor (Pe. Croiset, Exerc. Mart. t. 3), não há coisa melhor para nos descobrir os tesouros recônditos na paixão de Jesus Cristo, do que a simples narração dessa mesma paixão. Basta para inflamar uma alma fiel no amor divino a narração feita pelos santos evangelhos e considerar com olhos cristãos tudo o que o Salvador sofreu nos principais teatros de sua paixão, isto é, no horto das Oliveiras, na cidade de Jerusalém e no monte Calvário. São belas e boas as muitas considerações feitas e escritas por autores piedosos sobre a paixão de Jesus; mas certamente faz maior impressão a um cristão uma só palavra das sagradas Escrituras do que cem ou mil considerações e revelações escritas ou feitas a algumas pessoas devotas, pois as criaturas nos afiançam que tudo o que elas nos referem é certo e tem uma certeza de fé divina. Para tal fim quis, em benefício e para consolação das almas que amam a Jesus Cristo, pôr em ordem e referir simplesmente (ajuntando apenas algumas breves reflexões e afetos) o que nos dizem da paixão de Jesus os sagrados evangelistas, os quais nos oferecem matéria de

meditação para cem e até mil anos, capaz de inflamar ao mesmo tempo os nossos corações em amor para com nosso amantíssimo Redentor.

 

 

Ó Deus, como é possível que uma alma, que tem fé e considera as dores e ignomínias que Jesus Cristo sofreu por nós, não arda de amor por ele e não tome firmes resoluções de fazer-se santa para não ser ingrata para com um Deus tão amoroso? É preciso fé; do contrário, se a fé não nos desse certeza, quem poderia aceitar o que um Deus fez em verdade por nós: “Ele se aniquilou a si mesmo, tomando a forma de escravo” (Fl 2,7). Quem poderia crer que Jesus é o mesmo ser supremo que é adorado no céu, vendo-o nascer num estábulo? quem o vê fugindo para o Egito, para livrar-se das mãos de Herodes, crerá que ele é onipotente? Quem o vê a agonizar de tristeza, no horto, o julgará felicíssimo? Vê-lo preso a uma coluna, pen¬dente de um patíbulo e crê-lo Senhor do universo?

 

Que espanto ver um rei que se fizesse verme, que se arrastasse pelo chão, que habitasse numa cova de barro e daí desse leis, crias¬se ministros e governasse o reino. Ó santa fé, revelai o que é Jesus Cristo, quem é esse homem que parece tão vil como todos os outros homens: “O Verbo se fez carne” (Jo 1,14). S. João nos atesta que ele é Verbo eterno, é o Unigênito de Deus. E qual foi a vida que passou na terra esse Homem-Deus? Ei-la, referida por Isaías: “Nós o vimos… desprezado e como o último dos homens, como o varão das dores” (Is 53,2-3). Ele quis ser o homem das dores e não houve um instante em que ele estivesse livre de dores. Foi o homem das dores e o homem dos desprezos. Desprezado e como o último dos homens, sim porque Jesus foi o mais desprezado e maltratado, como se fosse o último e o mais vil de todos os homens. Um Deus preso por esbirros como um malfeitor! Um Deus flagelado como um escravo! Um Deus tratado como rei da burla! Um Deus morre pendente num lenho infame!! Que impressões não devem causar estes prodígios, em quem tem fé? E que desejo não deverão infundir de padecer por Jesus Cristo? Dizia São Francisco de Sales:

 

 

“As chamas do Redentor são outras tantas bocas que nos ensinam como devemos padecer por ele. Esta é a ciência dos santos, sofrer constantemente por Jesus, e assim tornaram-se depressa santos. E como não nos abrasaremos em amor, à vista das chagas que se encontram no seio do Redentor? que ventura podermos ser abrasados pelo mesmo fogo em que se abrasa o nosso Deus, e que alegria de sermos unidos a Deus pelas cadeias de amor”.

 

Mas, por que então tantos fiéis contemplam Jesus Cristo na cruz com olhos indiferentes? Assistem até na semana santa à comemoração de sua morte, mas sem nenhum sentimento de ternura ou gratidão, como se se tratasse de uma coisa irreal ou que nada tivesse conosco? Talvez não saibam ou não creiam no que dizem os evangelhos da paixão de Jesus Cristo? Respondo e digo que muito bem o sabem e crêem, mas não refletem nisso. Pois quem o crê e nisso pensa não poderá deixar de se abrasar no amor de um Deus que tanto padeceu e morreu por seu amor. “A caridade de Cristo nos impele” (2 Cor 5,14), escreve o apóstolo. Quer dizer que na paixão do Senhor não devemos considerar tanto as dores e os desprezos que ele padeceu, como o amor com que os suportou, pois se Jesus quis sofrer tanto, não foi unicamente para salvar-nos, já que para isso bastava uma simples oração sua, mas para nos patentear o amor que nos consagra e assim ganhar os nossos corações. E de fato, se uma alma pensa neste amor de Jesus Cristo, não poderá deixar de amá-lo: “A caridade de Cristo nos impele”, ela se sentirá presa e obrigada quase por força a dedicar-lhe todo o seu afeto. Por esta razão Jesus Cristo morreu por nós todos, para que não vivamos mais para nós, mas exclusivamente para esse amantíssimo Redentor, que por nós sacrificou sua vida divina.

 

Oh! felizes de vós, almas amantes, diz Isaías, que meditais continuamente na paixão de Jesus: “Tirareis com alegria águas das fontes do Salvador” (Is 12,3). Vós tirareis águas perenes de amor e confiança dessas fontes felizes que são as chagas de vosso Salvador. E como poderá duvidar ainda da divina misericórdia qualquer pecador, por enorme que seja, se ele se arrepende de suas culpas, à vista de Jesus crucificado, sabendo que o Padre eterno carregou sobre esse seu Filho dileto todos os nossos pecados, para que ele satisfizesse por nós? “O Senhor carregou sobre ele a iniqüidade de todos nós” (Is 53,6). Como poderemos temer, ajunta São Paulo, que Deus nos negue alguma graça depois de haver-nos dado seu próprio Filho? “O qual não poupou nem ainda seu próprio Filho, mas entregou-o por nós todos, como não nos deu também com ele todas as coisas? (Rm 8,32).

 

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