EVANGELIUM VITAE
EVANGELIUM VITAE
OPÇÃO DESTE SITE:


1. O Evangelho da vida está no centro da mensagem de Jesus. Amorosamente acolhido cada dia pela Igreja, há-de ser fiel e corajosamente anunciado como boa nova aos homens de todos os tempos e culturas.
Na aurora da salvação, é proclamado como feliz notícia o nascimento de um menino: « Anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor » (Lc 2, 10-11). O motivo imediato que faz irradiar esta « grande alegria » é, sem dúvida, o nascimento do Salvador; mas, no Natal, manifesta-se também o sentido pleno de todo o nascimento humano, pelo que a alegria messiânica se revela fundamento e plenitude da alegria por cada criança que nasce (cf. Jo 16, 21).
Ao apresentar o núcleo central da sua missão redentora, Jesus diz: « Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância » (Jo 10, 10). Ele fala daquela vida « nova » e « eterna » que consiste na comunhão com o Pai, à qual todo o homem é gratuitamente chamado no Filho, por obra do Espírito Santificador. Mas é precisamente em tal « vida » que todos os aspectos e momentos da vida do homem adquirem pleno significado.
O VALOR INCOMPARÁVEL DA PESSOA HUMANA
2. O homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende muito para além das dimensões da sua existência terrena, porque consiste na participação da própria vida de Deus.
A sublimidade desta vocação sobrenatural revela a grandeza e o valor precioso da vida humana, inclusive já na sua fase temporal. Com efeito, a vida temporal é condição basilar, momento inicial e parte integrante do processo global e unitário da existência humana: um processo que, para além de toda a expectativa e merecimento, fica iluminado pela promessa e renovado pelo dom da vida divina, que alcançará a sua plena realização na eternidade (cf. 1 Jo 3, 1-2). Ao mesmo tempo, porém, o próprio chamamento sobrenatural sublinha a relatividade da vida terrena do homem e da mulher. Na verdade, esta vida não é realidade « última », mas « penúltima »; trata-se, em todo o caso, de uma realidade sagrada que nos é confiada para a guardarmos com sentido de responsabilidade e levarmos à perfeição no amor pelo dom de nós mesmos a Deus e aos irmãos.
A Igreja sabe que este Evangelho da vida, recebido do seu Senhor, encontra um eco profundo e persuasivo no coração de cada pessoa, crente e até não crente, porque se ele supera infinitamente as suas aspirações, também lhes corresponde de maneira admirável. Mesmo por entre dificuldades e incertezas, todo o homem sinceramente aberto à verdade e ao bem pode, pela luz da razão e com o secreto influxo da graça, chegar a reconhecer, na lei natural inscrita no coração (cf. Rm 2, 14-15), o valor sagrado da vida humana desde o seu início até ao seu termo, e afirmar o direito que todo o ser humano tem de ver plenamente respeitado este seu bem primário. Sobre o reconhecimento de tal direito é que se funda a convivência humana e a própria comunidade política.
De modo particular, devem defender e promover este direito os crentes em Cristo, conscientes daquela verdade maravilhosa, recordada pelo Concílio Vaticano II: « Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ». De facto, neste acontecimento da salvação, revela-se à humanidade não só o amor infinito de Deus que « amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único » (Jo 3, 16), mas também o valor incomparável de cada pessoa humana.
A Igreja, perscrutando assiduamente o mistério da Redenção, descobre com assombro incessante este valor, e sente-se chamada a anunciar aos homens de todos os tempos este « evangelho », fonte de esperança invencível e de alegria verdadeira para cada época da história. O Evangelho do amor de Deus pelo homem, o Evangelho da dignidade da pessoa e o Evangelho da vida são um único e indivisível Evangelho.
É por este motivo que o homem, o homem vivo, constitui o primeiro e fundamental caminho da Igreja.
AS NOVAS AMEAÇAS À VIDA HUMANA
3. Precisamente por causa do mistério do Verbo de Deus que Se fez carne (cf. Jo 1, 14), cada homem está confiado à solicitude materna da Igreja. Por isso, qualquer ameaça à dignidade e à vida do homem não pode deixar de se repercutir no próprio coração da Igreja, é impossível não a tocar no centro da sua fé na encarnação redentora do Filho de Deus, não pode passar sem a interpelar na sua missão de anunciar o Evangelho da vida pelo mundo inteiro a toda a criatura (cf. Mc 16, 15).
Hoje, este anúncio torna-se particularmente urgente pela impressionante multiplicação e agravamento das ameaças à vida das pessoas e dos povos, sobretudo quando ela é débil e indefesa. Às antigas e dolorosas chagas da miséria, da fome, das epidemias, da violência e das guerras, vêm-se juntar outras com modalidades inéditas e dimensões inquietantes.
Já o Concílio Vaticano II, numa página de dramática actualidade, deplorou fortemente os múltiplos crimes e atentados contra a vida humana. À distância de trinta anos e fazendo minhas as palavras da Assembleia Conciliar, uma vez mais e com idêntica força os deploro em nome da Igreja inteira, com a certeza de interpretar o sentimento autêntico de toda a consciência recta: « Tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador ».
4. Infelizmente, este panorama inquietante, longe de diminuir, tem vindo a dilatar-se: com as perspectivas abertas pelo progresso científico e tecnológico, nascem outras formas de atentados à dignidade do ser humano, enquanto se delineia e consolida uma nova situação cultural que dá aos crimes contra a vida um aspecto inédito e — se é possível — ainda mais iníquo, suscitando novas e graves preocupações: amplos sectores da opinião pública justificam alguns crimes contra a vida em nome dos direitos da liberdade individual e, sobre tal pressuposto, pretendem não só a sua impunidade mas ainda a própria autorização da parte do Estado para os praticar com absoluta liberdade e, mais, com a colaboração gratuita dos Serviços de Saúde.
Ora, tudo isto provoca uma profunda alteração na maneira de considerar a vida e as relações entre os homens. O facto de as legislações de muitos países, afastando-se quiçá dos próprios princípios basilares das suas Constituições, terem consentido em não punir ou mesmo até reconhecer a plena legitimidade de tais acções contra a vida, é conjuntamente sintoma preocupante e causa não marginal de uma grave derrocada moral: opções, outrora consideradas unanimamente criminosas e rejeitadas pelo senso moral comum, tornam-se pouco a pouco socialmente respeitáveis. A própria medicina que, por vocação, se orienta para a defesa e cuidado da vida humana, em alguns dos seus sectores vai-se prestando em escala cada vez maior a realizar tais actos contra a pessoa, e, deste modo, deforma o seu rosto, contradiz-se a si mesma e humilha a dignidade de quantos a exercem. Em semelhante contexto cultural e legal, os graves problemas demográficos, sociais ou familiares — que incidem sobre numerosos povos do mundo e exigem a atenção responsável e operante das comunidades nacionais e internacionais —, encontram-se também sujeitos a soluções falsas e ilusórias, em contraste com a verdade e o bem das pessoas e das nações.
O resultado de tudo isto é dramático: se é muitíssimo grave e preocupante o fenómeno da eliminação de tantas vidas humanas nascentes ou encaminhadas para o seu ocaso, não o é menos o facto de à própria consciência, ofuscada por tão vastos condicionalismos, lhe custar cada vez mais a perceber a distinção entre o bem e o mal, precisamente naquilo que toca o fundamental valor da vida humana.
EM COMUNHÃO COM TODOS OS BISPOS DO MUNDO
5. Ao problema das ameaças à vida humana no nosso tempo, foi dedicado o Consistório Extraordinário dos Cardeais, realizado em Roma de 4 a 7 de Abril de 1991. Depois de amplo e profundo debate do problema e dos desafios postos à família humana inteira e, de modo particular, à Comunidade cristã, os Cardeais, com voto unânime, pediram-me que reafirmasse, com a autoridade do Sucessor de Pedro, o valor da vida humana e a sua inviolabilidade, à luz das circunstâncias actuais e dos atentados que hoje a ameaçam.
Acolhendo tal pedido, no Pentecostes de 1991 escrevi uma carta pessoal a cada Irmão no Episcopado para que, em espírito de colegialidade, me oferecesse a sua colaboração com vista à elaboração de um específico documento. Agradeço profundamente a todos os Bispos que responderam, fornecendo-me preciosas informações, sugestões e propostas. Deram também assim testemunho da sua participação concorde e convicta na missão doutrinal e pastoral da Igreja acerca do Evangelho da vida.
Nessa mesma carta, que fora enviada poucos dias depois da celebração do centenário da Encíclica Rerum novarum, chamava a atenção de todos para esta singular analogia: « Como há um século, oprimida nos seus direitos fundamentais era a classe operária, e a Igreja com grande coragem tomou a sua defesa, proclamando os sacrossantos direitos da pessoa do trabalhador, assim agora, quando outra categoria de pessoas é oprimida no direito fundamental à vida, a Igreja sente que deve, com igual coragem, dar voz a quem a não tem. O seu é sempre o grito evangélico em defesa dos pobres do mundo, de quantos estão ameaçados, desprezados e oprimidos nos seus direitos humanos ».
Espezinhada no direito fundamental à vida, é hoje uma grande multidão de seres humanos débeis e indefesos, como o são, em particular, as crianças ainda não nascidas. Se, ao findar do século passado, não fora consentido à Igreja calar perante as injustiças então reinantes, menos ainda pode ela calar hoje, quando às injustiças sociais do passado — infelizmente ainda não superadas — se vêm somar, em tantas partes do mundo, injustiças e opressões ainda mais graves, mesmo se disfarçadas em elementos de progresso com vista à organização de uma nova ordem mundial.
A presente Encíclica, fruto da colaboração do Episcopado de cada país do mundo, quer ser uma reafirmação precisa e firme do valor da vida humana e da sua inviolabilidade, e, conjuntamente, um ardente apelo dirigido em nome de Deus a todos e cada um: respeita, defende, ama e serve a vida, cada vida humana! Unicamente por esta estrada, encontrarás justiça, progresso, verdadeira liberdade, paz e felicidade!
Cheguem estas palavras a todos os filhos e filhas da Igreja! Cheguem a todas as pessoas de boa vontade, solícitas pelo bem de cada homem e mulher e pelo destino da sociedade inteira!
6. Em profunda comunhão com cada irmão e irmã na fé e animado por sincera amizade para com todos, quero meditar de novo e anunciar o Evangelho da vida, clara luz que ilumina as consciências, esplendor de verdade que cura o olhar ofuscado, fonte inexaurível de constância e coragem para enfrentar os desafios sempre novos que encontramos no nosso caminho.
Tendo no pensamento a rica experiência vivida durante o Ano da Família, e quase completando idealmente a Carta que dirigi « a cada família concreta de cada região da terra », olho com renovada confiança para todas as comunidades domésticas e faço votos por que renasça ou se reforce, em todos e aos diversos níveis, o compromisso de apoiarem a família, para que também hoje — mesmo no meio de numerosas dificuldades e graves ameaças — ela se conserve sempre, segundo o desígnio de Deus, como « santuário da vida ».
A todos os membros da Igreja, povo da vida e pela vida, dirijo o mais premente convite para que, juntos, possamos dar novos sinais de esperança a este nosso mundo, esforçando-nos por que cresçam a justiça e a solidariedade e se afirme uma nova cultura da vida humana, para a edificação de uma autêntica civilização da verdade e do amor.

AS ACTUAIS AMEAÇAS À VIDA HUMANA
EVANGELIUM VITAE´
« CAIM LEVANTOU A MÃO CONTRA O IRMÃO ABEL E MATOU-O » (GN 4, 8): NA RAIZ DA VIOLÊNCIA CONTRA A VIDA
« QUE FIZESTE? » (GN 4, 10): O ECLIPSE DO VALOR DA VIDA
« SOU, PORVENTURA, GUARDA DO MEU IRMÃO? » (GN 4, 9): UMA NOÇÃO PERVERSA DE LIBERDADE
« OBRIGADO A OCULTAR-ME LONGE DA TUA FACE » (GN 4, 14): O ECLIPSE DO SENTIDO DE DEUS E DO HOMEM
« APROXIMASTE-VOS DO SANGUE DE ASPERSÃO » (CF. HEB 12, 22.24): SINAIS DE ESPERANÇA E CONVITE AO COMPROMISSO

A MENSAGEM CRISTÃ SOBRE A VIDA
EVANGELIUM VITAE´´
« A VIDA MANIFESTOU-SE, NÓS VIMO-LA » (1 JO 1, 2): O OLHAR VOLTADO PARA CRISTO, « O VERBO DA VIDA »
« O SENHOR É A MINHA FORÇA E A MINHA GLÓRIA, FOI ELE QUEM ME SALVOU » (EX 15, 2): A VIDA É SEMPRE UM BEM
« PELA FÉ NO NOME DE JESUS, ESTE HOMEM RECOBROU AS FORÇAS » (ACT 3, 16): NA PRECARIEDADE DA EXISTÊNCIA HUMANA, JESUS REALIZA PLENAMENTE O SENTIDO DA VIDA
« CHAMADOS (...) A SER CONFORMES À IMAGEM DO SEU FILHO » (RM 8, 28-29): A GLÓRIA DE DEUS RESPLANDECE NO ROSTO DO HOMEM
« QUEM CRÊ EM MIM, AINDA QUE ESTEJA MORTO VIVERÁ » (JO 11, 26): O DOM DA VIDA ETERNA
« A CADA UM, PEDIREI CONTAS DO SEU IRMÃO » (CF. GN 9, 5): VENERAÇÃO E AMOR PELA VIDA DOS OUTROS
« CRESCEI E MULTIPLICAI-VOS, ENCHEI E DOMINAI A TERRA » (GN 1, 28): AS RESPONSABILIDADES DO HOMEM PELA VIDA
« VÓS É QUE PLASMASTES O MEU INTERIOR » (SAL 139 138, 13): A DIGNIDADE DA CRIANÇA AINDA NÃO NASCIDA
« CONFIEI MESMO QUANDO DISSE: "SOU UM HOMEM DE TODO INFELIZ" » (SAL 116 115, 10): A VIDA NA VELHICE E NO SOFRIMENTO
« TODOS OS QUE A SEGUIREM ALCANÇARÃO A VIDA » (BAR 4, 1): DA LEI DO SINAI AO DOM DO ESPÍRITO
EVANGELIUM VITAE´´´
« HÃO-DE OLHAR PARA AQUELE QUE TRESPASSARAM » (JO 19, 37): NA ÁRVORE DA CRUZ, CUMPRE-SE O EVANGELHO DA VIDA

A LEI SANTA DE DEUS
EVANGELIUM VITAE´´´´
« SE QUERES ENTRAR NA VIDA ETERNA, CUMPRE OS MANDAMENTOS » (MT 19, 17): EVANGELHO E MANDAMENTO
« AO HOMEM, PEDIREI CONTAS DA VIDA DO HOMEM » (GN 9, 5): A VIDA HUMANA É SAGRADA E INVIOLÁVEL
« VOSSOS OLHOS CONTEMPLARAM-ME AINDA EM EMBRIÃO » (SAL 139 138, 16): O CRIME ABOMINÁVEL DO ABORTO
« SÓ EU É QUE DOU A VIDA E DOU A MORTE » (DT 32, 39): O DRAMA DA EUTANÁSIA
« IMPORTA MAIS OBEDECER A DEUS DO QUE AOS HOMENS » (ACT 5, 29): A LEI CIVIL E A LEI MORAL
« AMARÁS AO TEU PRÓXIMO COMO A TI MESMO » (LC 10, 27): « PROMOVE » A VIDA

POR UMA NOVA CULTURA DA VIDA HUMANA
EVANGELIUM VITAE´´´´´
« VÓS SOIS O POVO ADQUIRIDO POR DEUS, PARA PROCLAMARDES AS SUAS OBRAS MARAVILHOSAS » (1 PED 2, 9): O POVO DA VIDA E PELA VIDA
« O QUE VIMOS E OUVIMOS, ISSO VOS ANUNCIAMOS » (1 JO 1, 3): ANUNCIAR O EVANGELHO DA VIDA
« EU VOS LOUVO PORQUE ME FIZESTES COMO UM PRODÍGIO » (SAL 139 138, 14): CELEBRAR O EVANGELHO DA VIDA
« DE QUE APROVEITARÁ, IRMÃOS, A ALGUÉM DIZER QUE TEM FÉ SE NÃO TIVER OBRAS? » (TG 2, 14): SERVIR O EVANGELHO DA VIDA
« OS FILHOS SÃO BÊNÇÃOS DO SENHOR; OS FRUTOS DO VENTRE, UM MIMO DO SENHOR » (SAL 127 126, 3): A FAMÍLIA « SANTUÁRIO DA VIDA »
« COMPORTAI-VOS COMO FILHOS DA LUZ » (EF 5, 8): PARA REALIZAR UMA VIRAGEM CULTURAL
« ESCREVEMO-VOS ESTAS COISAS PARA QUE A VOSSA ALEGRIA SEJA COMPLETA » (1 JO 1, 4): O EVANGELHO DA VIDA É PARA BEM DA CIDADE DOS HOMENS

102. Chegados ao termo desta Encíclica, espontaneamente o olhar volta a fixar-se no Senhor Jesus, o « Menino nascido para nós » (cf. Is 9, 5), a fim de n'Ele contemplar « a Vida » que « se manifestou » (1 Jo 1, 2). No mistério deste nascimento, realiza-se o encontro de Deus com o homem e tem início o caminho do Filho de Deus sobre a terra, caminho esse que culminará com o dom da vida na Cruz: com a sua morte, Ele vencerá a morte e tornar-Se-á para a humanidade princípio de vida nova.
Quem esteve a acolher « a vida » em nome e proveito de todos, foi Maria, a Virgem Mãe, a qual, por isso mesmo, mantém laços pessoais estreitíssimos com o Evangelho da vida. O consentimento de Maria, na Anunciação, e a sua maternidade situam-se na própria fonte do mistério daquela vida, que Cristo veio dar aos homens (cf. Jo 10, 10). Através do acolhimento e carinho que Ela prestou à vida do Verbo feito carne, a vida do homem foi salva da condenação à morte definitiva e eterna.
Por isso, « como a Igreja, de que é figura, Maria é a Mãe de todos os que renascem para a vida. Ela é verdadeiramente a Mãe da Vida que faz viver todos os homens; ao gerar a Vida, gerou de certo modo todos aqueles que haviam de viver dessa Vida ».
Ao contemplar a maternidade de Maria, a Igreja descobre o sentido da própria maternidade e o modo como é chamada a exprimi-la. Ao mesmo tempo, a experiência materna da Igreja entreabre uma perspectiva mais profunda para compreender a experiência de Maria, qual modelo incomparável de acolhimento e cuidado da vida.
« APARECEU UM GRANDE SINAL NO CÉU: UMA MULHER REVESTIDA DE SOL » (AP 12, 1): A MATERNIDADE DE MARIA E DA IGREJA
103. A relação recíproca entre Maria e o mistério da Igreja manifesta-se claramente no « grande sinal » descrito no Apocalipse: « Apareceu um grande sinal no céu: uma mulher revestida de Sol, tendo a Lua debaixo dos seus pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça » (12, 1). Neste sinal, a Igreja reconhece uma imagem do próprio mistério: apesar de imersa na história, ela está consciente de a transcender, porquanto constitui na terra « o germe e o princípio » do Reino de Deus. Tal mistério, a Igreja vê-o realizado, de modo pleno e exemplar, em Maria. É Ela a mulher gloriosa, na qual o desígnio de Deus se pôde actuar com a máxima perfeição.
Aquela « mulher revestida de Sol » — assinala o Livro do Apocalipse — « estava grávida » (12, 2). A Igreja está plenamente consciente de trazer em si o Salvador do mundo, Cristo Senhor, e de ser chamada a dá-Lo ao mundo, regenerando os homens para a própria vida de Deus. Mas não pode esquecer que esta sua missão tornou-se possível pela maternidade de Maria, que concebeu e deu à luz Aquele que é « Deus de Deus », « Deus verdadeiro de Deus verdadeiro ». Maria é verdadeiramente a Mãe de Deus, a Theotokos, em cuja maternidade é exaltada, até ao grau supremo, a vocação à maternidade inscrita por Deus em cada mulher. Assim Maria apresenta-se como modelo para a Igreja, chamada a ser a « nova Eva », mãe dos crentes, mãe dos « viventes » (cf. Gn 3, 20).
A maternidade espiritual da Igreja só se realiza — também disto está ciente a Igreja — no meio das ânsias e « dores de parto » (Ap 12, 2), isto é, em perene tensão com as forças do mal, que continuam a sulcar o mundo e a dominar o coração dos homens, que opõem resistência a Cristo: « N'Ele estava a Vida e a Vida era a luz dos homens; a luz resplandece nas trevas, mas as trevas não a acolheram » (Jo 1, 4-5).
À semelhança da Igreja, também Maria teve de viver a sua maternidade sob o signo do sofrimento: « Este Menino está aqui (...) para ser sinal de contradição; uma espada trespassará a tua alma, a fim de se revelarem os pensamentos de muitos corações » (Lc 2, 34-35). Nas palavras que Simeão dirige a Maria, já no alvorecer da existência do Salvador, está sinteticamente representada aquela rejeição de Jesus — e com Ele a rejeição de Maria —, que culmina no Calvário. « Junto da cruz de Jesus » (Jo 19, 25), Maria participa no dom que o Filho faz de Si mesmo: oferece Jesus, dá-O, gera-O definitivamente para nós. O « sim » do dia da Anunciação amadurece plenamente no dia da Cruz, quando chega para Maria o tempo de acolher e gerar como filho cada homem feito discípulo, derramando sobre ele o amor redentor do Filho: « Então Jesus, ao ver sua mãe e junto dela, o discípulo que Ele amava, Jesus disse a sua mãe: "Mulher, eis aí o teu filho" » (Jo 19, 26).
« O DRAGÃO DETEVE-SE DIANTE DA MULHER (...) PARA LHE DEVORAR O FILHO QUE ESTAVA PARA NASCER » (AP 12, 4): A VIDA AMEAÇADA PELAS FORÇAS DO MAL
104. No Livro do Apocalipse, o « grande sinal » da « mulher » (12, 1) é acompanhado por « outro sinal no céu »: « um grande dragão vermelho » (12, 3), que representa Satanás, potência pessoal maléfica, e conjuntamente todas as forças do mal que agem na história e contrariam a missão da Igreja.
Também nisto, Maria ilumina a Comunidade dos Crentes: de facto, a hostilidade das forças do mal é uma obstinada oposição que, antes de tocar os discípulos de Jesus, se dirige contra a sua Mãe. Para salvar a vida do Filho daqueles que O temem como se fosse uma perigosa ameaça, Maria tem de fugir com José e o Menino para o Egipto (cf. Mt 2, 13-15).
Assim, Maria ajuda a Igreja a tomar consciência de que a vida está sempre no centro de uma grande luta entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. O dragão queria devorar « o filho que estava para nascer » (Ap 12, 4), figura de Cristo, que Maria gera na « plenitude dos tempos » (Gal 4, 4) e que a Igreja deve continuamente oferecer aos homens nas sucessivas épocas da história. Mas é também, de algum modo, figura de cada homem, de cada criança, sobretudo de cada criatura débil e ameaçada, porque — como recorda o Concílio — « pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ». Precisamente na « carne » de cada homem, Cristo continua a revelar-Se e a entrar em comunhão connosco, pelo que a rejeição da vida do homem, nas suas diversas formas, é realmente rejeição de Cristo. Esta é a verdade fascinante mas exigente, que Cristo nos manifesta e que a sua Igreja incansavelmente propõe: « Quem receber um menino como este, em meu nome, é a Mim que recebe » (Mt 18, 5); « Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes » (Mt 25, 40).
« NÃO MAIS HAVERÁ MORTE » (AP 21, 4): O ESPLENDOR DA RESSURREIÇÃO
105. A anunciação do anjo a Maria está inserida no meio destas expressões tranquilizadoras: « Não tenhas receio, Maria » e « Nada é impossível a Deus » (Lc 1, 30.37). Na verdade, toda a existência da Virgem Mãe está envolvida pela certeza de que Deus está com Ela e A acompanha com a sua benevolência providente. O mesmo se passa também com a existência da Igreja que encontra « um refúgio » (cf. Ap 12, 6) no deserto, lugar da provação mas também da manifestação do amor de Deus pelo seu povo (cf. Os 2, 16). Maria é uma mensagem de viva consolação para a Igreja na sua luta contra a morte. Ao mostrar-nos o seu Filho, assegura-nos que n'Ele as forças da morte já foram vencidas: « Morte e vida combateram, mas o Príncipe da vida reina vivo após a morte ».
O Cordeiro imolado vive com os sinais da paixão, no esplendor da ressurreição. Só Ele domina todos os acontecimentos da história: abre os seus « selos » (cf. Ap 5, 1-10) e consolida, no tempo e para além dele, o poder da vida sobre a morte. Na « nova Jerusalém », ou seja, no mundo novo para o qual tende a história dos homens, « não mais haverá morte, nem pranto, nem gritos, nem dor, por que as primeiras coisas passaram » (Ap 21, 4).
Como povo peregrino, povo da vida e pela vida, enquanto caminhamos confiantes para « um novo céu e uma nova terra » (Ap 21, 1), voltamos o olhar para Aquela que é para nós « sinal de esperança segura e consolação ».
Ó Maria,
aurora do mundo novo,
Mãe dos viventes,
confiamo-Vos a causa da vida:
olhai, Mãe,
para o número sem fim
de crianças a quem é impedido nascer,
de pobres para quem se torna difícil viver,
de homens e mulheres
vítimas de inumana violência,
de idosos e doentes assassinados
pela indiferença
ou por uma presunta compaixão.
Fazei com que todos aqueles que crêem
no vosso Filho
saibam anunciar com desassombro e amor
aos homens do nosso tempo
o Evangelho da vida.
Alcançai-lhes a graça de o acolher
como um dom sempre novo,
a alegria de o celebrar com gratidão
em toda a sua existência,
e a coragem para o testemunhar
com laboriosa tenacidade,
para construírem,
juntamente com todos os homens
de boa vontade,
a civilização da verdade e do amor,
para louvor e glória de Deus Criador
e amante da vida.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 25 de Março, solenidade da Anunciação do Senhor, do ano 1995, décimo sétimo de Pontificado.
IOANNES PAULUS PP. II
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