VERITATIS SPLENDOR

VERITATIS SPLENDOR

OPÇÃO DESTE SITE:

Veneráveis Irmãos no Episcopado,

saúde e Bênção Apostólica!

 

O ESPLENDOR DA VERDADE brilha em todas as obras do Criador, particularmente no homem criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26): a verdade ilumina a inteligência e modela a liberdade do homem, que, deste modo, é levado a conhecer e a amar o Senhor. Por isso, reza o salmista: «Fazei brilhar sobre nós, Senhor, a luz da vossa face» (Sal 4, 7).

 

JESUS CRISTO, LUZ VERDADEIRA QUE A TODO O HOMEM ILUMINA

 

1. Chamados à salvação pela fé em Jesus Cristo, «luz verdadeira que a todo o homem ilumina» (Jo 1, 9), os homens tornam-se «luz no Senhor» e «filhos da luz» (Ef 5, 8) e santificam-se pela «obediência à verdade» (1 Pd 1, 22).

 

Esta obediência nem sempre é fácil. Na sequência daquele misterioso pecado de origem, cometido por instigação de Satanás, que é «mentiroso e pai da mentira» (Jo 8, 44), o homem é continuamente tentado a desviar o seu olhar do Deus vivo e verdadeiro para o dirigir aos ídolos (cf. 1 Ts 1, 9), trocando «a verdade de Deus pela mentira» (Rm 1, 25); então também a sua capacidade para conhecer a verdade fica ofuscada, e enfraquecida a sua vontade para se submeter a ela. E assim, abandonando-se ao relativismo e ao cepticismo (cf. Jo 18, 38), ele vai à procura de uma ilusória liberdade fora da própria verdade.

 

Mas nenhuma sombra de erro e de pecado pode eliminar totalmente do homem a luz de Deus Criador. Nas profundezas do seu coração, permanece sempre a nostalgia da verdade absoluta e a sede de chegar à plenitude do seu conhecimento. Prova-o, de modo eloquente, a incansável pesquisa do homem em todas as áreas e sectores. Demonstra-o ainda mais a sua busca do sentido da vida. O progresso da ciência e da técnica, esplêndido testemunho da capacidade da inteligência e da tenacidade dos homens, não dispensa a humanidade de pôr-se as questões religiosas últimas, mas antes, estimula-a a enfrentar as lutas mais dolorosas e decisivas, que são as do coração e da consciência moral.

 

2. Nenhum homem pode esquivar-se às perguntas fundamentais: Que devo fazer? Como discernir o bem do mal? A resposta somente é possível graças ao esplendor da verdade que brilha no íntimo do espírito humano, como atesta o salmista: «Muitos dizem: "Quem nos fará ver o bem?" Fazei brilhar sobre nós, Senhor, a luz da vossa face» (Sal 4, 7).

 

A luz da face de Deus resplandece em toda a sua beleza no rosto de Jesus Cristo, «imagem do Deus invisível» (Col 1, 15), «resplendor da sua glória» (Heb 1, 3), «cheio de graça e de verdade» (Jo 1, 14): Ele é «o caminho, a verdade e a vida» (Jo 14, 6). Por isso, a resposta decisiva a cada interrogação do homem, e particularmente às suas questões religiosas e morais, é dada por Jesus Cristo, mais, é o próprio Jesus Cristo, como lembra o Concílio Vaticano II: «Na realidade, o mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo Encarnado. Efectivamente, Adão, o primeiro homem, era figura do que havia de vir, Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na mesma revelação do mistério do Pai e do seu amor, manifesta perfeitamente o homem ao próprio homem e descobre-lhe a sublimidade da sua vocação». Jesus Cristo, «luz dos povos», ilumina a face da sua Igreja, que Ele envia pelo mundo inteiro a anunciar o Evangelho a toda criatura (cf. Mc 16, 15). Assim a Igreja, Povo de Deus no meio das nações, ao mesmo tempo que permanece atenta aos novos desafios da história e aos esforços que os homens realizam na procura do sentido da vida, oferece a todos a resposta que provém da verdade de Jesus Cristo e do seu Evangelho. Na Igreja, permanece sempre viva a consciência do seu «dever de investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho, para que assim possa responder, de modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente e da futura e da relação entre ambas».

 

3. Os Pastores da Igreja, em comunhão com o Sucessor de Pedro, estão solidários com os fiéis neste esforço, acompanham e guiam-nos com o seu magistério, encontrando expressões sempre novas de amor e misericórdia para se dirigirem não só aos crentes, mas a todos os homens de boa vontade. O Concílio Vaticano II permanece um testemunho extraordinário desta atitude da Igreja que, «perita em humanidade», se põe ao serviço de cada homem e do mundo inteiro.

 

A Igreja sabe que a instância moral atinge em profundidade cada homem, compromete a todos, inclusive aqueles que não conhecem Cristo e o Seu Evangelho, ou nem mesmo a Deus. Ela sabe que precisamente sobre o caminho da vida moral se abre para todos a via da salvação, como claramente o recordou o Concílio Vaticano II ao escrever: «Aqueles que ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também eles podem alcançar a salvação eterna». E acrescenta: «Nem a divina Providência nega os auxílios necessários à salvação àqueles que, sem culpa, não chegaram ainda ao conhecimento explícito de Deus e se esforçam, não sem o auxílio da graça, por levar uma vida recta. Tudo o que de bom e verdadeiro neles há, é considerado pela Igreja como preparação para receberem o Evangelho, dado por Aquele que ilumina todos os homens, para que possuam finalmente a vida».

 

O OBJECTO DA PRESENTE ENCÍCLICA

 

4. Sempre, mas sobretudo ao longo dos dois últimos séculos, os Sumos Pontífices, quer pessoalmente quer em conjunto com o Colégio Episcopal, desenvolveram e propuseram um ensinamento moral relativo aos múltiplos e diferentes âmbitos da vida humana. Em nome e com a autoridade de Jesus Cristo, eles exortaram, denunciaram, explicaram; fiéis à sua missão, nas lutas a favor do homem, confirmaram, ampararam, consolaram; com a garantia da assistência do Espírito da verdade, contribuíram para uma melhor compreensão das exigências morais nos âmbitos da sexualidade humana, da família, da vida social, económica e política. O seu ensinamento constitui um contínuo aprofundamento do conhecimento moral, dentro da tradição da Igreja e da história da humanidade.

 

Hoje, porém, parece necessário reflectir sobre o conjunto do ensinamento moral da Igreja, com a finalidade concreta de evocar algumas verdades fundamentais da doutrina católica que, no actual contexto, correm o risco de serem deformadas ou negadas. De facto, formou-se uma nova situação dentro da própria comunidade cristã, que experimentou a difusão de múltiplas dúvidas e objecções de ordem humana e psicológica, social e cultural, religiosa e até mesmo teológica, a propósito dos ensinamentos morais da Igreja. Não se trata já de contestações parciais e ocasionais, mas de uma discussão global e sistemática do património moral, baseada sobre determinadas concepções antropológicas e éticas. Na sua raiz, está a influência, mais ou menos velada de correntes de pensamento que acabam por desarraigar a liberdade humana da sua relação essencial e constitutiva com a verdade. Rejeita-se, assim, a doutrina tradicional sobre a lei natural, sobre a universalidade e a permanente validade dos seus preceitos; consideram-se simplesmente inaceitáveis alguns ensinamentos morais da Igreja; pensa-se que o próprio Magistério possa intervir em matéria moral, somente para «exortar as consciências» e «propor os valores», nos quais depois cada um inspirará, de forma autónoma, as decisões e as escolhas da vida.

 

Em particular, deve-se ressaltar a discordância entre a resposta tradicional da Igreja e algumas posições teológicas, difundidas mesmo nos Seminários e Faculdades eclesiásticas, sobre questões da máxima importância para a Igreja e a vida de fé dos cristãos, bem como para a própria convivência humana. Em particular, pergunta-se: os mandamentos de Deus, que estão escritos no coração do homem e fazem parte da Aliança, têm verdadeiramente a capacidade de iluminar as opções quotidianas dos indivíduos e das sociedades inteiras? É possível obedecer a Deus e, portanto, amar a Deus e ao próximo, sem respeitar em todas as circunstâncias estes mandamentos? Generalizada se encontra também a opinião que põe em dúvida o nexo intrínseco e indivisível que une entre si a fé e a moral, como se a pertença à Igreja e a sua unidade interna se devessem decidir unicamente em relação à fé, ao passo que se poderia tolerar no âmbito moral um pluralismo de opiniões e de comportamentos, deixados ao juízo da consciência subjectiva individual ou à diversidade dos contextos sociais e culturais.

 

5. Neste contexto, ainda agora actual, amadureceu em mim a decisão de escrever — como já anunciei na Carta Apostólica Spiritus Domini, publicada no dia 1 de Agosto de 1987, por ocasião do segundo centenário da morte de S. Afonso Maria de Ligório — uma Encíclica destinada a tratar «mais ampla e profundamente das questões relativas aos próprios fundamentos da teologia moral», fundamentos esses que são atacados por algumas tendências actuais.

 

Dirijo-me a vós, veneráveis Irmãos no Episcopado, que partilhais comigo a responsabilidade de guardar a «sã doutrina» (2 Tim 4, 3), com a intenção de precisar alguns aspectos doutrinais que se revelam decisivos para debelar aquela que constitui, sem dúvida, uma verdadeira crise, tão graves são as dificuldades que acarreta à vida moral dos fiéis e à comunhão da Igreja, bem como a uma convivência social justa e solidária.

 

Se esta Encíclica, há muito esperada, é publicada somente agora, é porque pareceu conveniente fazê-la preceder do Catecismo da Igreja Católica, que contém uma exposição completa e sistemática da doutrina moral cristã. O Catecismo apresenta a vida moral dos crentes, nos seus fundamentos e múltiplos conteúdos, como vida dos «filhos de Deus»: «Reconhecendo na fé a sua nova dignidade, os cristãos são chamados a levar desde agora, uma "vida digna do Evangelho de Cristo" (Fil 1, 27). Pelos sacramentos e pela oração, recebem a graça de Cristo e os dons do Seu Espírito, que disso os tornaram capazes». Portanto, ao remeter para o Catecismo «como texto de referência, seguro e autêntico, para o ensino da doutrina católica», a Encíclica limitar-se-á a afrontar algumas questões fundamentais do ensinamento moral da Igreja, sob a forma de um necessário discernimento sobre problemas controversos entre os estudiosos da ética e da teologia moral. Este é o objecto específico da actual Encíclica, que pretende expor, sobre os problemas em discussão, as razões de um ensinamento moral baseado na Sagrada Escritura e na viva Tradição apostólica, pondo em evidência, ao mesmo tempo, os pressupostos e as consequências das contestações que atingem um tal ensinamento.

 

Jesus Cristo e a resposta à questão moral

 

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«APROXIMOU-SE D'ELE UM JOVEM... » (MT 19, 16)

6. O diálogo de Jesus com o jovem rico, narrado no capítulo 19 do Evangelho de S. Mateus, pode constituir uma válida pista para ouvir novamente, de um modo vivo e incisivo, o Seu ensinamento moral: «Aproximou-se d'Ele um jovem e disse-Lhe: "Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida...

«MESTRE, QUE DEVO FAZER DE BOM PARA ALCANÇAR A VIDA ETERNA?» (MT 19, 16)

8. Do fundo do coração surge a pergunta que o jovem rico dirige a Jesus de Nazaré, uma pergunta essencial e irresistível na vida de cada homem: refere-se, de facto, ao bem moral a praticar e à vida eterna. O interlocutor de Jesus intui que existe um nexo entre o bem moral e a plena realização do...

«UM SÓ É BOM» (MT 19, 17)

9. Jesus diz: «Por que me interrogas sobre o que é bom? Um só é bom. Mas se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos» (Mt 19, 17). Na versão dos evangelistas Marcos e Lucas, a pergunta aparece assim formulada: «Por que Me chamas bom? Ninguém é bom, senão só Deus» (Mc 10, 18; cf. Lc 18,...

«SE QUERES ENTRAR NA VIDA ETERNA, CUMPRE OS MANDAMENTOS» (MT 19, 17)

12. Só Deus pode responder à pergunta sobre o bem, porque Ele é o Bem. Mas Deus respondeu já a esta pergunta: fê-lo, criando o homem e ordenando-o com sabedoria e amor ao seu fim, mediante a lei inscrita no seu coração (cf. Rm 2, 15), a «lei natural». Esta «não é mais do que a luz da inteligência...

«SE QUERES SER PERFEITO» (MT 19, 21)

16. A resposta sobre os mandamentos não satisfaz o jovem, que pergunta a Jesus: «Tenho cumprido tudo isto; que me falta ainda? » (Mt 19, 20). Não é fácil dizer em sã consciência: «tenho cumprido tudo isto», quando se começa a compreender o alcance efectivo das exigências contidas na Lei de Deus. E...

«VEM E SEGUE-ME» (MT 19, 21)

19. O caminho e, simultaneamente, o conteúdo desta perfeição consiste na sequela Christi, no seguir Jesus, depois de ter renunciado aos próprios bens e a si mesmo. Esta é precisamente a conclusão do diálogo de Jesus com o jovem: «Depois, vem e segue-Me» (Mt 19, 21). É um convite, cuja maravilhosa...

«A DEUS TUDO É POSSÍVEL» (MT 19, 26)

22. Amarga é a conclusão do colóquio de Jesus com o jovem rico: «Ao ouvir isto, o jovem retirou-se contristado, porque possuía muitos bens» (Mt 19, 22). Não só o homem rico, mas também os próprios discípulos se assustam com o apelo de Jesus para O seguir, cujas exigências superam as aspirações e as...

«EU ESTAREI SEMPRE CONVOSCO, ATÉ AO FIM DO MUNDO» (MT 28, 20)

25. O colóquio de Jesus com o jovem rico continua, de certa forma, em cada época da história, hoje também. A pergunta: «Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?», desabrocha no coração de cada homem, e é sempre Cristo e unicamente Ele a oferecer a resposta plena e decisiva. O...

A Igreja e o discernimento de algumas tendências da teologia moral hodierna

 

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ENSINAR O QUE É CONFORME À SÃ DOUTRINA (CF. TIT 2, 1)

28. A meditação do diálogo entre Jesus e o jovem rico permitiu-nos recolher os conteúdos essenciais da Revelação do Antigo e do Novo Testamento sobre o agir moral. Ou sejam: a subordinação do homem e da sua acção a Deus, Aquele que «só é bom»; a relação entre o bem moral dos actos humanos e a vida...

«CONHECEREIS A VERDADE E A VERDADE VOS TORNARÁ LIVRES» (JO 8, 32)

31. Os problemas humanos mais debatidos e diversamente resolvidos na reflexão moral contemporânea, estão ligados, mesmo se de várias maneiras, a um problema crucial: o da liberdade do homem.   Não há dúvida que a nossa época adquiriu uma percepção particularmente viva da liberdade. «Os homens...

I. A LIBERDADE E A LEI «NÃO COMAS DA ÁRVORE DA CIÊNCIA DO BEM E DO MAL» (GN 2, 17)

35. Lemos no livro do Génesis: «O Senhor deu esta ordem ao homem: "Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas o da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás"» (Gn 2, 16-17).   Com esta imagem, a Revelação ensina que não...

II. A CONSCIÊNCIA E A VERDADE O SANTUÁRIO DO HOMEM

54. A relação que existe entre a liberdade do homem e a lei de Deus tem a sua sede viva no «coração» da pessoa, ou seja, na sua consciência moral: «No fundo da própria consciência — escreve o Concílio Vaticano II — o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa...

III. A OPÇÃO FUNDAMENTAL E OS COMPORTAMENTOS CONCRETOS «NÃO TOMEIS, PORÉM, A LIBERDADE, COMO PRETEXTO PARA SERVIR A CARNE» (GÁL 5, 13)

65. O interesse pela liberdade, hoje particularmente sentido, induz muitos estudiosos de ciências, quer humanas quer teológicas, a desenvolver uma análise mais profunda da sua natureza e dos seus dinamismos. Salienta-se acertadamente que a liberdade não é só a escolha desta ou daquela acção...

IV. O ACTO MORAL TELEOLOGIA E TELEOLOGISMO

71. A relação entre a liberdade do homem e a lei de Deus, que encontra a sua sede íntima e viva na consciência moral, manifesta-se e realiza-se nos actos humanos. É precisamente através dos seus actos que o homem se aperfeiçoa como homem, como homem chamado a procurar espontaneamente o seu Criador...

O bem moral para a vida da Igreja e do mundo

 

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«CRISTO NOS LIBERTOU, PARA QUE PERMANEÇAMOS LIVRES» (GÁL 5, 1)

84. A questão fundamental, que as teorias morais acima referidas solevam mais fortemente, é a da relação entre a liberdade do homem e a lei de Deus: é, em última análise, a questão da relação entre a liberdade e a verdade.   Segundo a fé cristã e a doutrina da Igreja, «somente a liberdade que...

CAMINHAR NA LUZ (CF. 1 JO 1, 7)

88. A contraposição, mais, a radical separação entre liberdade e verdade é consequência, manifestação e realização de outra dicotomia, mais grave e perniciosa, que separa a fé da moral.   Esta separação constitui uma das mais sérias preocupações pastorais da Igreja no actual processo de...

O MARTÍRIO, EXALTAÇÃO DA SANTIDADE INVIOLÁVEL DA LEI DE DEUS

90. A relação entre fé e moral transparece com todo o seu fulgor no respeito incondicional devido às exigências inalienáveis da dignidade pessoal de cada homem, àquelas exigências defendidas pelas normas morais que proíbem sem excepção os actos intrinsecamente maus. A universalidade e imutabilidade...

AS NORMAS MORAIS UNIVERSAIS E IMUTÁVEIS AO SERVIÇO DA PESSOA E DA SOCIEDADE

95. A doutrina da Igreja, e particularmente a sua firmeza em defender a validade universal e permanente dos preceitos que proibem os actos intrinsecamente maus, é julgada frequentemente como sinal de uma intransigência intolerável, sobretudo nas situações extremamente complexas e conflituosas da...

A MORAL E A RENOVAÇÃO DA VIDA SOCIAL E POLÍTICA

98. Perante as graves formas de injustiça social e económica e de corrupção política, que gravam sobre povos e nações inteiras, cresce a reacção indignada de muitíssimas pessoas oprimidas e humilhadas nos seus direitos humanos fundamentais e torna-se sempre mais ampla e sentida a necessidade de uma...

GRAÇA E OBEDIÊNCIA À LEI DE DEUS

102. Mesmo nas situações mais difíceis, o homem deve observar a norma moral para ser obediente ao santo mandamento de Deus e coerente com a própria dignidade pessoal. Certamente a harmonia entre liberdade e verdade pede, por vezes, sacrifícios extraordinários, sendo conquistada por alto preço: pode...

MORAL E NOVA EVANGELIZAÇÃO

106. A evangelização é o desafio mais forte e sublime, que a Igreja é chamada a enfrentar desde a sua origem. Na verdade, a proporem este desafio não são tanto as situações sociais e culturais que ela encontra ao longo da história, como sobretudo o mandato de Jesus Cristo ressuscitado, que assim...

O SERVIÇO DOS TEÓLOGOS MORALISTAS

109. Toda a Igreja, feita participante do munus propheticum do Senhor Jesus mediante o dom do Seu Espírito, é chamada à evangelização e ao testemunho de uma vida de fé. Graças à presença permanente do Espírito de verdade nela (cf. Jo 14, 16-17), «a totalidade dos fiéis que receberam a unção do...

AS NOSSAS RESPONSABILIDADES DE PASTORES

114. A responsabilidade pela fé e pela vida de fé do Povo de Deus pesa duma maneira peculiar e precisa sobre os Pastores, como nos lembra o Concílio Vaticano II: «Entre os principais encargos dos Bispos ocupa lugar preeminente a pregação do Evangelho. Os Bispos são os arautos da fé que para Deus...

 

CONCLUSÃO

 

MARIA, MÃE DE MISERICÓRDIA

 

 

118. No final destas considerações, confiamos nós mesmos, os sofrimentos e as alegrias da nossa existência, a vida moral dos crentes e dos homens de boa vontade, as pesquisas dos estudiosos de moral a Maria, Mãe de Deus e Mãe de misericórdia.

 

Maria é Mãe de misericórdia, porque Jesus Cristo, seu Filho, foi mandado pelo Pai como Revelação da misericórdia de Deus (cf. Jo 3, 16-18). Ele não veio para condenar mas para perdoar, para usar de misericórdia (cf. Mt 9, 13). E a misericórdia maior está no seu habitar entre nós e na chamada que nos é feita para O encontrar e confessar, juntamente com Pedro, como «o Filho do Deus vivo» (Mt 16, 16). Nenhum pecado do homem pode cancelar a misericórdia de Deus, nem pode impedi-la de expandir toda a sua força vitoriosa, logo que a invocamos. Antes, o mesmo pecado faz resplandecer ainda mais o amor do Pai que, para resgatar o escravo, sacrificou o Seu Filho: a Sua misericórdia por nós é redenção. Esta misericórdia chega à sua plenitude com o dom do Espírito, que gera e exige a vida nova. Por mais numerosos e grandes que sejam os obstáculos postos pela fragilidade e pelo pecado do homem, o Espírito, que renova a face da terra (cf. Sal 103-104, 30), torna possível o milagre do cumprimento perfeito do bem. Esta renovação, que dá a capacidade de fazer o que é bom, nobre, belo, agradável a Deus e conforme à Sua vontade, é em certo sentido o florescimento do dom da misericórdia, que liberta da escravidão do mal e dá a força de não mais pecar. Pelo dom da vida nova, Jesus torna-nos participantes do Seu amor e nos conduz ao Pai no Espírito.

 

119. Esta é a consoladora certeza da fé cristã, à qual se deve a sua profunda humanidade e a sua extraordinária simplicidade. Por vezes, nas discussões sobre os novos e complexos problemas morais, pode parecer que a moral cristã seja em si própria demasiado difícil, árdua para se compreender e quase impossível de praticar. Isto é falso, porque ela, em termos de simplicidade evangélica, consiste em seguir Jesus Cristo, abandonar-se a Ele, deixar-se transformar pela Sua graça e renovar pela Sua misericórdia, que nos vem da vida de comunhão da sua Igreja. «Quem quiser viver — recorda-nos S. Agostinho —, tem onde viver, tem donde viver. Aproxime-se, creia, deixe-se incorporar para ser vivificado. Não abandone a companhia dos membros». Portanto, todo o homem pode compreender, com a luz do Espírito, a essência vital da moral cristã, inclusive o menos dotado, antes e sobretudo quem sabe conservar um «coração simples» (Sal 85-86, 11). Por outro lado, esta simplicidade evangélica não dispensa de enfrentar a complexidade da situação, mas pode introduzir na sua compreensão mais verdadeira, porque o seguimento de Cristo porá progressivamente a descoberto as características da autêntica moralidade cristã e dará, ao mesmo tempo, a energia vital para a sua realização. É tarefa do Magistério da Igreja vigiar a fim de que o dinamismo do seguimento de Cristo se desenvolva orgânicamente, sem deixar que lhe sejam falseadas ou ocultadas as exigências morais com todas as suas consequências. Quem ama Cristo observa os seus mandamentos (cf. Jo 14, 15).

 

120. Maria é Mãe de misericórdia também, porque a Ela Jesus confia a Sua Igreja e a humanidade inteira. Aos pés da Cruz, quando aceita João como filho, quando pede ao Pai, juntamente com Cristo, o perdão para aqueles que não sabem o que fazem (cf. Lc 23, 34), Maria, em perfeita docilidade ao Espírito, experimenta a riqueza e a universalidade do amor de Deus, que Lhe dilata o coração e A torna capaz de abraçar todo o género humano. Deste modo, é feita Mãe de todos e cada um de nós, Mãe que nos alcança a misericórdia divina.

 

Maria é sinal luminoso e exemplo fascinante de vida moral: «já a sua vida é ensinamento para todos», escreve S. Ambrósio, que, dirigindo-se especialmente às virgens mas num horizonte aberto a todos, assim afirma: «O primeiro ardente desejo de aprender dá-o a nobreza do mestre. E quem é mais nobre do que a Mãe de Deus? Ou mais esplêndida do que Aquela que foi eleita pelo próprio Esplendor?». Maria vive e realiza a própria liberdade, doando-Se Ela mesma a Deus e acolhendo em Si o dom de Deus. Guarda no seu seio virginal o Filho de Deus, feito homem, até ao momento do Seu nascimento, educa-O, fá-Lo crescer e acompanha-O naquele gesto supremo de liberdade que é o sacrifício total da própria vida. Com o dom de Si mesma, Maria entra plenamente no desígnio de Deus, que Se dá ao mundo. Ao acolher e meditar no seu coração acontecimentos que nem sempre compreende (cf. Lc 2, 19), torna-Se o modelo de todos aqueles que escutam a palavra de Deus e a praticam (cf. Lc 11, 28) e merece o título de «Sede da Sabedoria». Esta Sabedoria é o próprio Jesus Cristo, o Verbo eterno de Deus, que revela e cumpre perfeitamente a vontade do Pai (cf. Heb 10, 5-10). Maria convida cada homem a acolher esta Sabedoria. Também a nós dirige a ordem dada aos servos, em Caná da Galileia durante o banquete de núpcias: «Fazei o que Ele vos disser» (Jo 2, 5).

 

Maria compartilha a nossa condição humana, mas numa total transparência à graça de Deus. Não tendo conhecido o pecado, Ela é capaz todavia de Se compadecer de qualquer fraqueza. Compreende o homem pecador e ama-o com amor de Mãe. Precisamente por isso, está do lado da verdade e compartilha o peso da Igreja, ao recordar a todos e sempre as exigências morais. Pelo mesmo motivo, não aceita que o homem pecador seja enganado por quem pretendesse amá-lo justificando o seu pecado, pois sabe que desta forma tornar-se-ia vão o sacrifício de Cristo, seu Filho. Nenhuma absolvição, oferecida por condescendentes doutrinas até mesmo filosóficas ou teológicas, pode tornar o homem verdadeiramente feliz: só a Cruz e a glória de Cristo ressuscitado podem dar paz à sua consciência e salvação à sua vida.

 

Ó Maria,

Mãe de misericórdia,

velai sobre todos

para não se desvirtuar a Cruz de Cristo,

para que o homem não se extravie

do caminho do bem,

nem perca a consciência do pecado,

mas cresça na esperança

em Deus «rico de misericórdia» (Ef 2, 4),

cumpra livremente as boas obras

por Ele de antemão preparadas (cf. Ef 2, 10)

e toda a sua vida seja assim

«para louvor da Sua glória» (Ef 1, 12).

 

Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 6 de Agosto, festa da Transfiguração do Senhor, do ano de 1993, décimo quinto do meu Pontificado.

 

IOANNES PAULUS PP. II

 

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