Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo
	Antes dos factos de 1917, exceptuando o laço de parentesco
	que nos unia, nenhum outro afecto particular me fazia preferir a
	companhia da Jacinta e Francisco, à de qualquer outra criança.
	Lúcia, apesar da sua deficiente cultura escolar, tinha uma inclinação poética.
	Escreveu várias poesias.
	Pelo contrário, a sua companhia tornava-se-me, por vezes, bastante
	antipática, pelo seu carácter demasiado melindroso. A menor
	contenda, das que se levantam entre as crianças, quando jogam,
	era bastante para a fazer ficar amuada, a um canto, a prender o
	burrinho, como nós dizíamos. Para a fazer voltar a ocupar o seu
	lugar na brincadeira, não bastavam as mais doces carícias que em
	tais ocasiões as crianças sabem fazer. Era então preciso deixá-la
	escolher o jogo e o par com quem queria jogar. Tinha, no entanto,
	já então, um coração muito bem inclinado, e o bom Deus tinha-a
	dotado dum carácter doce e meigo que a tornava, ao mesmo tempo,
	amável e atraente.
	Não sei porquê, a Jacinta, com seu irmãozinho Francisco,
	tinham por mim uma predilecção especial e buscavam-me, quase
	sempre, para brincar. Não gostavam da companhia das outras
	crianças e pediam-me para ir com eles para junto dum poço que
	tinham meus pais, no fundo do quintal. Uma vez aí, a Jacinta escolhia os jogos em que nos íamos entreter. Os seus preferidos
	eram, quase sempre, sentados sobre esse poço, que era coberto
	de lajes por cima, à sombra duma oliveira e duas ameixieiras, o
	jogo das pedrinhas ou do botão. Com este vi-me também, não
	poucas vezes, em grandes aflições, porque, quando nos chamavam
	para comer, encontrava-me sem botões na roupa. Por ordinário,
	ela tinha-mos ganhado e isto era o bastante para que minha mãe
	me ralhasse. Era preciso pregá-los à pressa; e como conseguir
	que ela mos desse, se, além do defeitilho de amuar, tinha o de
	agarrada? Queria guardá-los para o jogo seguinte, para não ter
	que arrancar os dela. Só ameaçando-a de que não voltava mais a
	brincar com ela é que os conseguia!
	Não poucas vezes acontecia não poder satisfazer o desejo da
	minha amiguinha. Como minhas irmãs mais velhas, que eram uma
	tecedeira e a outra costureira, passavam os dias em casa, as
	vizinhas pediam a minha mãe para deixarem os seus filhinhos no
	pátio de meus pais, junto de mim, a brincar, sob a vigilância de
	minhas irmãs, enquanto que elas iam para os campos trabalhar.
	Minha mãe dizia sempre que sim, embora custasse a minhas irmãs
	uma boa perca de tempo. Eu era então encarregada de entreter
	essas crianças e ter cuidado que não caíssem num poço que havia
	nesse pátio. Três grandes figueiras resguardavam, dos ardores do
	sol, a essas crianças; seus ramos serviam de balouço e uma velha
	eira servia de sala de jantar. Quando, nesses dias, a Jacinta vinha
	com seu irmãozinho a chamar-me para o nosso retiro, dizia-lhe
	que não podia ir, pois minha mãe me tinha mandado estar ali. Então
	os dois pequeninos resignavam-se com desgosto e tomavam parte
	na brincadeira. Nas horas da sesta, minha mãe dava a seus filhos
	a sua lição de doutrina, principalmente quando se aproximava a
	quaresma, porque – dizia – não quero ficar envergonhada, quando
	o Senhor Prior vos perguntar a doutrina, na desobriga. Então todas
	aquelas crianças assistiam à nossa lição de catecismo; a Jacinta
	lá estava também.
		Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo
	
		Antes dos factos de 1917, exceptuando o laço de parentesco
	
		que nos unia, nenhum outro afecto particular me fazia preferir a
	
		companhia da Jacinta e Francisco, à de qualquer outra criança.
	
		Lúcia, apesar da sua deficiente cultura escolar, tinha uma inclinação poética.
	
		Escreveu várias poesias.
	
		Pelo contrário, a sua companhia tornava-se-me, por vezes, bastante
	
		antipática, pelo seu carácter demasiado melindroso. A menor
	
		contenda, das que se levantam entre as crianças, quando jogam,
	
		era bastante para a fazer ficar amuada, a um canto, a prender o
	
		burrinho, como nós dizíamos. Para a fazer voltar a ocupar o seu
	
		lugar na brincadeira, não bastavam as mais doces carícias que em
	
		tais ocasiões as crianças sabem fazer. Era então preciso deixá-la
	
		escolher o jogo e o par com quem queria jogar. Tinha, no entanto,
	
		já então, um coração muito bem inclinado, e o bom Deus tinha-a
	
		dotado dum carácter doce e meigo que a tornava, ao mesmo tempo,
	
		amável e atraente.
	
		Não sei porquê, a Jacinta, com seu irmãozinho Francisco,
	
		tinham por mim uma predilecção especial e buscavam-me, quase
	
		sempre, para brincar. Não gostavam da companhia das outras
	
		crianças e pediam-me para ir com eles para junto dum poço que
	
		tinham meus pais, no fundo do quintal. Uma vez aí, a Jacinta escolhia os jogos em que nos íamos entreter. Os seus preferidos
	
		eram, quase sempre, sentados sobre esse poço, que era coberto
	
		de lajes por cima, à sombra duma oliveira e duas ameixieiras, o
	
		jogo das pedrinhas ou do botão. Com este vi-me também, não
	
		poucas vezes, em grandes aflições, porque, quando nos chamavam
	
		para comer, encontrava-me sem botões na roupa. Por ordinário,
	
		ela tinha-mos ganhado e isto era o bastante para que minha mãe
	
		me ralhasse. Era preciso pregá-los à pressa; e como conseguir
	
		que ela mos desse, se, além do defeitilho de amuar, tinha o de
	
		agarrada? Queria guardá-los para o jogo seguinte, para não ter
	
		que arrancar os dela. Só ameaçando-a de que não voltava mais a
	
		brincar com ela é que os conseguia!
	
		Não poucas vezes acontecia não poder satisfazer o desejo da
	
		minha amiguinha. Como minhas irmãs mais velhas, que eram uma
	
		tecedeira e a outra costureira, passavam os dias em casa, as
	
		vizinhas pediam a minha mãe para deixarem os seus filhinhos no
	
		pátio de meus pais, junto de mim, a brincar, sob a vigilância de
	
		minhas irmãs, enquanto que elas iam para os campos trabalhar.
	
		Minha mãe dizia sempre que sim, embora custasse a minhas irmãs
	
		uma boa perca de tempo. Eu era então encarregada de entreter
	
		essas crianças e ter cuidado que não caíssem num poço que havia
	
		nesse pátio. Três grandes figueiras resguardavam, dos ardores do
	
		sol, a essas crianças; seus ramos serviam de balouço e uma velha
	
		eira servia de sala de jantar. Quando, nesses dias, a Jacinta vinha
	
		com seu irmãozinho a chamar-me para o nosso retiro, dizia-lhe
	
		que não podia ir, pois minha mãe me tinha mandado estar ali. Então
	
		os dois pequeninos resignavam-se com desgosto e tomavam parte
	
		na brincadeira. Nas horas da sesta, minha mãe dava a seus filhos
	
		a sua lição de doutrina, principalmente quando se aproximava a
	
		quaresma, porque – dizia – não quero ficar envergonhada, quando
	
		o Senhor Prior vos perguntar a doutrina, na desobriga. Então todas
	
		aquelas crianças assistiam à nossa lição de catecismo; a Jacinta
	
		lá estava também.
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