Entre minha casa e a de Francisco vivia meu padrinho Anastácio, casado com uma mulher de bastante idade, a quem o Senhor não tinha dado descendência. Lavradores bastante ricos, não
	precisavam de trabalhar. Meu pai tomava-lhes conta da lavoura e
	guiava-lhes por lá os jornaleiros. Agradecidos por isso tinham uma
	predilecção para comigo, sobretudo a dona da casa, a quem chamava a Madrinha Teresa. Se para lá não ia de dia, tinha que dormir
	a noite, pois ela dizia não poder passar sem o seu torrãozinho de
	carne – assim me chamava.
	Nos dias de festa, gostava de me enfeitar com o seu cordão
	d’ouro e as grandes argolas que me caíam bastante abaixo dos
	ombros e o lindo chapeuzito na cabeça, coberto de contas d’ouro
	que sujeitavam imensas penas de várias cores. Nos arraiais, não
	aparecia outra mais enfeitada; e minhas irmãs, com a Madrinha
	Teresa, reviam-se nisso. As outras crianças cercavam-me em numerosos grupos, admirando o brilho de tantos enfeites. A dizer a
	verdade, eu também gostava bastante da festa, e a vaidade era o
	meu pior enfeite. Todos mostravam simpatia e estima por mim,
	menos uma orfãzinha de quem a Madrinha Teresa se tinha encarregado, ao morrer-lhe a mãe. Ela parecia temer que lhe viesse a
	tirar parte da herança que ela esperava e decerto não se teria enganado, se o bom Deus me não tivesse destinado uma outra herança bem mais preciosa.
	Logo que se começou a espalhar a notícia das aparições, o
	Padrinho mostrou-se indiferente e a Madrinha completamente contrária. Mostrava-se descontente por tais invenções, como ela dizia.
	Comecei, por isso, a escapar-me quanto podia, de sua casa e,
	comigo, começaram a desaparecer esses grupos de crianças que
	aí, com frequência, se juntavam, e que a Madrinha tanto gostava
	de ver dançar e cantar, dando-lhes figos secos, nozes, amêndoas,
	castanhas, fruta, etc.
	Passando, pois, um domingo de tarde, por junto de sua casa,
	com o Francisco e a Jacinta, chamou-nos:
	– Venham cá, meus intrujõezinhos, venham cá! Há já tanto
	tempo que cá não vêm!
	E lá nos foi a dar os seus mimos.
	Parecendo adivinhar a nossa chegada, as outras crianças
	começaram-se a juntar. A boa madrinha, contente por tornar a ver
	em sua casa essa reunião que havia tanto tempo se havia dispersado, depois de nos mimosear com várias coisas, quis ver-nos
	dançar e cantar.
	– Vamos lá: que há-de ser? que não há-de ser? – Escolheu
	ela: – Os parabéns desenganados. Um desafio: os pequenos dum
	lado, as pequenas do outro.
	|
	 Coro
	Tu és o sol desta esfera,
	Não lhe negues os teus raios.
	Sorrisos de primavera – ah!!!
	Não convertas em desmaios!
	1
	Parabéns à rapariga,
	Com fragrância, ao novo sol,
	Porque, risonha, adivinha
	Os mimos doutro arrebol.
	 2
	É ano rico de flores,
	Rico de frutas e bem!
	E o novo, nos seus alvores,
	Rico de esperanças te vem.
	3
	São o teu melhor presente,
	Teus melhores parabéns!
	Cinge com eles a fronte,
	É a melhor c’roa que tens.
	 4
	Se o passado te foi lindo,
	Futuro mais lindo tens!
	Parabéns pelo findo,
	Pelo que entra, parabéns!
	 5
	Nesta vida, flor do Atlântico,
	Neste amigável festim,
	Celebre-se, em ledo cântico.
	O jardineiro e o jardim!
	 6
	Compadecem-te as flores
	De teu paterno torrão!
	Teu lar de castos amores,
	Teus laços de coração.
	 II
	 Coro
	Achas acto, cavalheiro,
	Que ao ver surdir o penal,
	A Berlenga e o Carvoeiro (8
	) – ah!!!
	Apaguem o seu farol?
	 1
	Mas o mar em frol rebenta,
	Remoinho, eterno fulcro!
	Cada norte é uma tormenta,
	Cada tormenta um sepulcro.
	(8) A Berlenga é uma pequena ilha no Atlântico, perto do Cabo Carvoeiro, em
	Peniche.
	2
	Tristes morros da Papoa,
	Estelas e Farilhões (9)!
	Que tragédia não ressoa
	Cada um de seus cachões!
	 3
	Cada escolho, nestas águas,
	É de morte um presságio!
	Cada vaga canta mágoas,
	Cada cruz lembra um naufrágio.
	 4
	Pois tu queres ser mais duro,
	Queres sumir-te, e és luz
	Que, da vida, em mar escuro,
	Tanto barquinho conduz?!
	 III
	 Coro
	E fico d’olhos enxutos
	Ao falar em despedida!
	O hesitar foi de minutos - ah!!!
	O imolar-me é de toda a vida.
	 1
	Vai, mas diz ao Céu que corte
	Da sua graça o raudal!
	E as flores mirre de morte,
	Por não seres seu canal.
	(9) As Estelas e Farilhões são ilhéus próximos da Berlenga.
	2
	Vai, que fico em desconforto,
	Enlutado o Santuário!
	Dobrará o bronze a morte,
	Na grimpa do campanário.
	 3
	Mas apenas me deixas
	Da triste Igreja, no Adro,
	Vou deixar eternas queixas,
	Escrevendo em negro quadro!
	4
	Foi jardim risonho e belo
	Este solo hoje sem flor!
	Não lhe faltou o desvelo;
	Faltou ele ao seu cultor.
	5
	Espero da Providência
	Futurosos carinhos!
	Esperem-nos, com preferência,
	As que deixam pátrios ninhos.
		Entre minha casa e a de Francisco vivia meu padrinho Anastácio, casado com uma mulher de bastante idade, a quem o Senhor não tinha dado descendência. Lavradores bastante ricos, não
	
		precisavam de trabalhar. Meu pai tomava-lhes conta da lavoura e
	
		guiava-lhes por lá os jornaleiros. Agradecidos por isso tinham uma
	
		predilecção para comigo, sobretudo a dona da casa, a quem chamava a Madrinha Teresa. Se para lá não ia de dia, tinha que dormir
	
		a noite, pois ela dizia não poder passar sem o seu torrãozinho de
	
		carne – assim me chamava.
	
		Nos dias de festa, gostava de me enfeitar com o seu cordão
	
		d’ouro e as grandes argolas que me caíam bastante abaixo dos
	
		ombros e o lindo chapeuzito na cabeça, coberto de contas d’ouro
	
		que sujeitavam imensas penas de várias cores. Nos arraiais, não
	
		aparecia outra mais enfeitada; e minhas irmãs, com a Madrinha
	
		Teresa, reviam-se nisso. As outras crianças cercavam-me em numerosos grupos, admirando o brilho de tantos enfeites. A dizer a
	
		verdade, eu também gostava bastante da festa, e a vaidade era o
	
		meu pior enfeite. Todos mostravam simpatia e estima por mim,
	
		menos uma orfãzinha de quem a Madrinha Teresa se tinha encarregado, ao morrer-lhe a mãe. Ela parecia temer que lhe viesse a
	
		tirar parte da herança que ela esperava e decerto não se teria enganado, se o bom Deus me não tivesse destinado uma outra herança bem mais preciosa.
	
		Logo que se começou a espalhar a notícia das aparições, o
	
		Padrinho mostrou-se indiferente e a Madrinha completamente contrária. Mostrava-se descontente por tais invenções, como ela dizia.
	
		Comecei, por isso, a escapar-me quanto podia, de sua casa e,
	
		comigo, começaram a desaparecer esses grupos de crianças que
	
		aí, com frequência, se juntavam, e que a Madrinha tanto gostava
	
		de ver dançar e cantar, dando-lhes figos secos, nozes, amêndoas,
	
		castanhas, fruta, etc.
	
		Passando, pois, um domingo de tarde, por junto de sua casa,
	
		com o Francisco e a Jacinta, chamou-nos:
	
		– Venham cá, meus intrujõezinhos, venham cá! Há já tanto
	
		tempo que cá não vêm!
	
		E lá nos foi a dar os seus mimos.
	
		Parecendo adivinhar a nossa chegada, as outras crianças
	
		começaram-se a juntar. A boa madrinha, contente por tornar a ver
	
		em sua casa essa reunião que havia tanto tempo se havia dispersado, depois de nos mimosear com várias coisas, quis ver-nos
	
		dançar e cantar.
	
		– Vamos lá: que há-de ser? que não há-de ser? – Escolheu
	
		ela: – Os parabéns desenganados. Um desafio: os pequenos dum
	
		lado, as pequenas do outro.
	
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		 Coro
	
		Tu és o sol desta esfera,
	
		Não lhe negues os teus raios.
	
		Sorrisos de primavera – ah!!!
	
		Não convertas em desmaios!
	
		1
	
		Parabéns à rapariga,
	
		Com fragrância, ao novo sol,
	
		Porque, risonha, adivinha
	
		Os mimos doutro arrebol.
	
		 2
	
		É ano rico de flores,
	
		Rico de frutas e bem!
	
		E o novo, nos seus alvores,
	
		Rico de esperanças te vem.
	
		3
	
		São o teu melhor presente,
	
		Teus melhores parabéns!
	
		Cinge com eles a fronte,
	
		É a melhor c’roa que tens.
	
		 4
	
		Se o passado te foi lindo,
	
		Futuro mais lindo tens!
	
		Parabéns pelo findo,
	
		Pelo que entra, parabéns!
	
		 5
	
		Nesta vida, flor do Atlântico,
	
		Neste amigável festim,
	
		Celebre-se, em ledo cântico.
	
		O jardineiro e o jardim!
	
		 6
	
		Compadecem-te as flores
	
		De teu paterno torrão!
	
		Teu lar de castos amores,
	
		Teus laços de coração.
	
		 II
	
		 Coro
	
		Achas acto, cavalheiro,
	
		Que ao ver surdir o penal,
	
		A Berlenga e o Carvoeiro (8) – ah!!!
	
		Apaguem o seu farol?
	
		 1
	
		Mas o mar em frol rebenta,
	
		Remoinho, eterno fulcro!
	
		Cada norte é uma tormenta,
	
		Cada tormenta um sepulcro.
	
		2
	
		Tristes morros da Papoa,
	
		Estelas e Farilhões (9)!
	
		Que tragédia não ressoa
	
		Cada um de seus cachões!
	
		 3
	
		Cada escolho, nestas águas,
	
		É de morte um presságio!
	
		Cada vaga canta mágoas,
	
		Cada cruz lembra um naufrágio.
	
		 4
	
		Pois tu queres ser mais duro,
	
		Queres sumir-te, e és luz
	
		Que, da vida, em mar escuro,
	
		Tanto barquinho conduz?!
	
		III
	
		Coro
	
		E fico d’olhos enxutos
	
		Ao falar em despedida!
	
		O hesitar foi de minutos - ah!!!
	
		O imolar-me é de toda a vida.
	
		 1
	
		Vai, mas diz ao Céu que corte
	
		Da sua graça o raudal!
	
		E as flores mirre de morte,
	
		Por não seres seu canal.
	
		2
	
		Vai, que fico em desconforto,
	
		Enlutado o Santuário!
	
		Dobrará o bronze a morte,
	
		Na grimpa do campanário.
	
		 3
	
		Mas apenas me deixas
	
		Da triste Igreja, no Adro,
	
		Vou deixar eternas queixas,
	
		Escrevendo em negro quadro!
	
		4
	
		Foi jardim risonho e belo
	
		Este solo hoje sem flor!
	
		Não lhe faltou o desvelo;
	
		Faltou ele ao seu cultor.
	
		5
	
		Espero da Providência
	
		Futurosos carinhos!
	
		Esperem-nos, com preferência,
	
		As que deixam pátrios ninhos.
		(8) A Berlenga é uma pequena ilha no Atlântico, perto do Cabo Carvoeiro, em
	
		Peniche.
	(9) As Estelas e Farilhões são ilhéus próximos da Berlenga.
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