48. O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social. De facto, a deterioração do meio ambiente e a da sociedade afectam de modo especial os mais frágeis do planeta: «Tanto a experiência comum da vida quotidiana como a investigação científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres». Por exemplo, o esgotamento das reservas ictíicas prejudica especialmente as pessoas que vivem da pesca artesanal e não possuem qualquer maneira de a substituir, a poluição da água afecta particularmente os mais pobres que não têm possibilidades de comprar água engarrafada, e a elevação do nível do mar afecta principalmente as populações costeiras mais pobres que não têm para onde se transferir. O impacto dos desequilíbrios actuais manifesta-se também na morte prematura de muitos pobres, nos conflitos gerados pela falta de recursos e em muitos outros problemas que não têm espaço suficiente nas agendas mundiais.
49. Gostaria de assinalar que muitas vezes falta uma consciência clara dos problemas que afectam particularmente os excluídos. Estes são a maioria do planeta, milhares de milhões de pessoas. Hoje são mencionados nos debates políticos e económicos internacionais, mas com frequência parece que os seus problemas se coloquem como um apêndice, como uma questão que se acrescenta quase por obrigação ou perifericamente, quando não são considerados meros danos colaterais. Com efeito, na hora da implementação concreta, permanecem frequentemente no último lugar. Isto deve-se, em parte, ao facto de que muitos profissionais, formadores de opinião, meios de comunicação e centros de poder estão localizados longe deles, em áreas urbanas isoladas, sem ter contacto directo com os seus problemas. Vivem e reflectem a partir da comodidade dum desenvolvimento e duma qualidade de vida que não está ao alcance da maioria da população mundial. Esta falta de contacto físico e de encontro, às vezes favorecida pela fragmentação das nossas cidades, ajuda a cauterizar a consciência e a ignorar parte da realidade em análises tendenciosas. Isto, às vezes, coexiste com um discurso «verde». Mas, hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres.
50. Em vez de resolver os problemas dos pobres e pensar num mundo diferente, alguns limitam-se a propor uma redução da natalidade. Não faltam pressões internacionais sobre os países em vias de desenvolvimento, que condicionam as ajudas económicas a determinadas políticas de «saúde reprodutiva». Mas, «se é verdade que a desigual distribuição da população e dos recursos disponíveis cria obstáculos ao desenvolvimento e ao uso sustentável do ambiente, deve-se reconhecer que o crescimento demográfico é plenamente compatível com um desenvolvimento integral e solidário». Culpar o incremento demográfico em vez do consumismo exacerbado e selectivo de alguns é uma forma de não enfrentar os problemas. Pretende-se, assim, legitimar o modelo distributivo actual, no qual uma minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria impossível generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os resíduos de tal consumo. Além disso, sabemos que se desperdiça aproximadamente um terço dos alimentos produzidos, e «a comida que se desperdiça é como se fosse roubada da mesa do pobre». Em todo o caso, é verdade que devemos prestar atenção ao desequilíbrio na distribuição da população pelo território, tanto a nível nacional como a nível mundial, porque o aumento do consumo levaria a situações regionais complexas pelas combinações de problemas ligados à poluição ambiental, ao transporte, ao tratamento de resíduos, à perda de recursos, à qualidade de vida.
51. A desigualdade não afecta apenas os indivíduos mas países inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações internacionais. Com efeito, há uma verdadeira «dívida ecológica», particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais efectuado historicamente por alguns países. As exportações de algumas matérias-primas para satisfazer os mercados no Norte industrializado produziram danos locais, como, por exemplo, a contaminação com mercúrio na extracção minerária do ouro ou com o dióxido de enxofre na do cobre. De modo especial é preciso calcular o espaço ambiental de todo o planeta usado para depositar resíduos gasosos que se foram acumulando ao longo de dois séculos e criaram uma situação que agora afecta todos os países do mundo. O aquecimento causado pelo enorme consumo de alguns países ricos tem repercussões nos lugares mais pobres da terra, especialmente na África, onde o aumento da temperatura, juntamente com a seca, tem efeitos desastrosos no rendimento das cultivações. A isto acrescentam-se os danos causados pela exportação de resíduos sólidos e líquidos tóxicos para os países em vias de desenvolvimento e pela actividade poluente de empresas que fazem nos países menos desenvolvidos aquilo que não podem fazer nos países que lhes dão o capital: «Constatamos frequentemente que as empresas que assim procedem são multinacionais, que fazem aqui o que não lhes é permitido em países desenvolvidos ou do chamado primeiro mundo. Geralmente, quando cessam as suas actividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida, esgotamento dalgumas reservas naturais, desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não se pode sustentar».
52. A dívida externa dos países pobres transformou-se num instrumento de controle, mas não se dá o mesmo com a dívida ecológica. De várias maneiras os povos em vias de desenvolvimento, onde se encontram as reservas mais importantes da biosfera, continuam a alimentar o progresso dos países mais ricos à custa do seu presente e do seu futuro. A terra dos pobres do Sul é rica e pouco contaminada, mas o acesso à propriedade de bens e recursos para satisfazerem as suas carências vitais é-lhes vedado por um sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso. É necessário que os países desenvolvidos contribuam para resolver esta dívida, limitando significativamente o consumo de energia não renovável e fornecendo recursos aos países mais necessitados para promover políticas e programas de desenvolvimento sustentável. As regiões e os países mais pobres têm menos possibilidade de adoptar novos modelos de redução do impacto ambiental, porque não têm a preparação para desenvolver os processos necessários nem podem cobrir os seus custos. Por isso, deve-se manter claramente a consciência de que a mudança climática tem responsabilidades diversificadas e, como disseram os bispos dos Estados Unidos, é oportuno concentrar-se «especialmente sobre as necessidades dos pobres, fracos e vulneráveis, num debate muitas vezes dominado pelos interesses mais poderosos». É preciso revigorar a consciência de que somos uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globalização da indiferença.