228. O percurso para a paz não implica homogeneizar a sociedade, mas permite-nos trabalhar juntos. Pode unir muitos nas pesquisas comuns, onde todos ganham. Perante um certo objetivo comum, poder-se-á contribuir com diferentes propostas técnicas, distintas experiências, e trabalhar em prol do bem comum. É preciso procurar identificar bem os problemas que atravessa uma sociedade, para aceitar que existem diferentes maneiras de encarar as dificuldades e resolvê-las. O caminho para uma melhor convivência implica sempre reconhecer a possibilidade de que o outro contribua com uma perspetiva legítima, pelo menos em parte, algo que possa ser recuperado, mesmo que se tenha equivocado ou tenha agido mal. Porque «o outro nunca há de ser circunscrito àquilo que pôde ter dito ou feito, mas deve ser considerado pela promessa que traz em si mesmo», uma promessa que deixa sempre um lampejo de esperança.
229. Como ensinaram os bispos da África do Sul, a verdadeira reconciliação alcança-se de maneira proativa, «formando uma nova sociedade baseada no serviço aos outros, e não no desejo de dominar; uma sociedade baseada na partilha do que se possui com os outros, e não na luta egoísta de cada um pela maior riqueza possível; uma sociedade na qual o valor de estar juntos como seres humanos é, em última análise, mais importante do que qualquer grupo menor, seja ele a família, a nação, a etnia ou a cultura». E os bispos da Coreia do Sul destacaram que uma verdadeira paz «só se pode alcançar quando lutamos pela justiça através do diálogo, buscando a reconciliação e o desenvolvimento mútuo».
230. O árduo esforço por superar o que nos divide, sem perder a identidade de cada um, pressupõe que em todos permaneça vivo um sentimento basilar de pertença. Porque «a nossa sociedade ganha, quando cada pessoa, cada grupo social se sente verdadeiramente de casa. Numa família, os pais, os avós, os filhos são de casa; ninguém fica excluído. Se alguém tem uma dificuldade, mesmo grave, ainda que seja por culpa dele, os outros correm em sua ajuda, apoiam-no; a sua dor é de todos. (…) Nas famílias, todos contribuem para o projeto comum, todos trabalham para o bem comum, mas sem anular o indivíduo; pelo contrário, sustentam-no, promovem-no. Podem brigar entre si, mas há algo que não se move: este laço familiar. As brigas de família tornam-se reconciliações mais tarde. As alegrias e as penas de cada um são assumidas por todos. Isto sim é ser família! Oh, se pudéssemos conseguir ver o adversário político ou o vizinho de casa com os mesmos olhos com que vemos os filhos, esposas, maridos, pais ou mães, como seria bom! Amamos a nossa sociedade, ou continua a ser algo distante, algo anónimo, que não nos corresponde, não nos insere, não nos compromete?»
231. Muitas vezes há grande necessidade de negociar e, assim, desenvolver percursos concretos para a paz. Mas os processos efetivos duma paz duradoura são, antes de mais nada, transformações artesanais realizadas pelos povos, onde cada pessoa pode ser um fermento eficaz com o seu estilo de vida diária. As grandes transformações não são construídas à escrivaninha ou no escritório. Por isso, «cada qual desempenha um papel fundamental, num único projeto criador, para escrever uma nova página da história, uma página cheia de esperança, cheia de paz, cheia de reconciliação». Existe uma «arquitetura» da paz, na qual intervêm as várias instituições da sociedade, cada uma dentro de sua competência, mas há também um «artesanato» da paz que nos envolve a todos. A partir de distintos processos de paz que se desenvolvem em vários lugares do mundo, «aprendemos que estes caminhos de pacificação, de primazia da razão sobre a vingança, de delicada harmonia entre a política e o direito, não podem prescindir das pessoas implicadas nos processos. Não basta o desenho de quadros normativos e acordos institucionais entre grupos políticos ou económicos de boa vontade (...). Além disso, é sempre enriquecedor incorporar nos nossos processos de paz a experiência de setores que, em muitas ocasiões, foram deixados de lado, para que sejam precisamente as comunidades a revestir os processos de memória coletiva».
232. Nunca está terminada a construção da paz social num país, mas é «uma tarefa que não dá tréguas e exige o compromisso de todos. Uma obra que nos pede para não esmorecermos no esforço por construir a unidade da nação e – apesar dos obstáculos, das diferenças e das diversas abordagens sobre o modo como conseguir a convivência pacífica – persistirmos na labuta por favorecer a cultura do encontro que exige que, no centro de toda a ação política, social e económica, se coloque a pessoa humana, a sua sublime dignidade e o respeito pelo bem comum. Que este esforço nos faça esquivar de toda a tentação de vingança e busca de interesses apenas particulares e a curto prazo». As manifestações públicas violentas, de um lado ou do outro, não ajudam a encontrar vias de saída, sobretudo porque, quando se incentivam – como bem assinalaram os bispos da Colômbia – «as mobilizações dos cidadãos, nem sempre aparecem claras as origens e objetivos das mesmas; não faltam formas de manipulação política e apropriações a favor de interesses particulares».