151. A chaga do lado, de onde brota a água viva, permanece aberta no Ressuscitado. Esta grande ferida causada pela lança, e as chagas da coroa de espinhos que aparecem com frequência nas representações do Sagrado Coração, são inseparáveis desta devoção. Nela contemplamos o amor de Jesus Cristo que foi capaz de se entregar até ao fim. O coração do Ressuscitado conserva estes sinais da doação total que implicou um intenso sofrimento por nós. Portanto, de algum modo, é inevitável que o fiel queira responder não só a este grande amor, mas também à dor que Cristo aceitou suportar por causa de tanto amor.
COM ELE NA CRUZ
152. Vale a pena recuperar esta expressão da experiência espiritual desenvolvida em torno do Coração de Cristo: o desejo interior de o consolar. Não tratarei agora da prática da “reparação”, que considero melhor inserida no contexto da dimensão social desta devoção, e que desenvolverei no próximo capítulo. Agora gostaria apenas de me concentrar naquele desejo que muitas vezes brota no coração do fiel enamorado quando contempla o mistério da paixão de Cristo e o vive como um mistério que não só é recordado, mas que pela graça se torna presente, ou melhor, nos leva a estar misticamente presentes naquele momento redentor. Se o Amado é o mais importante, como não querer consolá-lo?
153. O Papa Pio XI procurou fundamentar esta afirmação convidando-nos a reconhecer que o mistério da redenção através da Paixão de Cristo, por graça de Deus, transcende todas as distâncias do tempo e do espaço. Deste modo, se Ele se entregou na Cruz também pelos pecados futuros, os nossos pecados, transcendendo o tempo, chegaram ao seu Coração ferido, assim como os atos que oferecemos hoje pela sua consolação: «Se, portanto, à vista de nossos pecados futuros, porém previstos, a alma de Jesus esteve triste até à morte, não há dúvida que desde então Lhe tenha dado algum conforto a previsão do nosso desagravo, quando “lhe apareceu o Anjo do Céu” ( Lc 22, 43), a consolar-Lhe o Coração opresso de tristeza e de angústia. E assim também agora, em modo admirável, porém verdadeiro, podemos e devemos consolar este Coração Sacratíssimo, continuamente ofendido pelos pecados dos homens ingratos».
AS RAZÕES DO CORAÇÃO
154. Pode parecer que esta expressão de devoção não possua suficiente base teológica, mas o coração tem as suas razões. O sensus fidelium intui que há aqui algo de misterioso que ultrapassa a nossa lógica humana, e que a paixão de Cristo não é um mero evento do passado, pois dela podemos participar a partir da fé. A meditação da entrega de Cristo na cruz é, para a piedade dos fiéis, algo mais do que uma simples recordação. Esta convicção está solidamente fundamentada na teologia. A isto junta-se a consciência do próprio pecado, que Ele carregou sobre os seus ombros feridos, e da própria inadequação perante tanto amor, que sempre nos ultrapassa infinitamente.
155. Em todo o caso, perguntamo-nos como é possível relacionarmo-nos com Cristo vivo, ressuscitado, plenamente feliz e, ao mesmo tempo, consolá-lo na Paixão. Consideremos que o Coração ressuscitado conserva a sua ferida como uma memória constante, e que a ação da graça provoca uma experiência que não está inteiramente contida no instante cronológico. Estas duas convicções permitem-nos admitir que nos encontramos perante um caminho místico que ultrapassa as tentativas da razão e exprime o que a própria Palavra de Deus nos sugere: «Mas – escreve o Papa Pio XI – como pode ser que Jesus Cristo reine bem-aventurado no Céu, se há mister o consolo de nossa reparação? “Dá uma alma que ame, e compreenderá nosso asserto”, respondemos com as palavras de Santo Agostinho ( in Ioannis Evangelium, tract. 26, 4), que fazem perfeitamente ao nosso propósito. Toda alma, com efeito, deveras abrasada em amor de Deus, se com a consideração abrange o tempo passado, vê em suas meditações e contempla a Jesus a padecer pelo homem, aflito, no meio das dores mais excruciantes “por nós, homens, e pela nossa salvação”, opresso da tristeza, das angústias e dos opróbrios, antes “esmagado pelos nossos delitos” ( Is 53, 5) e em ato de sanar-nos com suas chagas. Com tanta maior verdade as almas pias contemplam as dores do Salvador, enquanto os pecados e os delitos dos homens, perpretados no decurso de todos os tempos, motivaram a condenação de Jesus».
156. Este ensinamento de Pio XI merece ser tido em conta. Com efeito, quando a Escritura afirma que os cristãos que não vivem de acordo com a sua fé «por si mesmos crucificam de novo o Filho de Deus» (Heb 6, 6), ou que, quando suporto sofrimentos pelos outros, «completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo» (Cl 1, 24), ou que Cristo, na sua paixão, rezou não só pelos seus discípulos de então, mas «por aqueles que hão de crer em mim, por meio da sua palavra» (Jo 17, 20), está a dizer algo que quebra os nossos esquemas limitados. Mostra-nos que não é possível estabelecer um antes e um depois sem qualquer ligação, mesmo que o nosso pensamento não o saiba explicar. O Evangelho, nos seus vários aspectos, não é apenas para ser refletido ou recordado, mas para ser vivido, tanto nas obras de amor como na experiência interior, e isto aplica-se sobretudo ao mistério da morte e ressurreição de Cristo. Não parece que as separações temporais utilizadas pela nossa mente contenham a verdade desta experiência de fé, onde se fundem a união com Cristo sofredor e, ao mesmo tempo, a força, a consolação e a amizade que temos com o Ressuscitado.
157. Vemos, assim, a unidade do Mistério Pascal nos seus dois aspectos inseparáveis que mutuamente se iluminam. Este Mistério único, fazendo-se presente pela graça nas suas duas dimensões, significa que, quando procuramos oferecer algo a Cristo para a sua consolação, os nossos próprios sofrimentos são iluminados e transfigurados pela luz pascal do amor. Acontece que participamos neste mistério na nossa vida concreta, porque anteriormente o próprio Cristo quis participar na nossa vida, quis viver antecipadamente como cabeça o que o seu corpo eclesial viveria, tanto nas feridas como nas consolações. Quando vivemos na graça de Deus, esta participação mútua torna-se uma experiência espiritual. Em última análise, é o Ressuscitado que, pela ação da sua graça, torna possível que estejamos misteriosamente unidos à sua paixão. Sabem-no os corações que creem, que experimentam a alegria da ressurreição, mas ao mesmo tempo desejam participar no destino do seu Senhor. Estão prontos para esta participação com os sofrimentos, os cansaços, as desilusões e os medos que fazem parte da sua vida. Não a vivem na solidão, pois estas feridas são igualmente uma participação no destino do corpo místico de Cristo que caminha no povo santo de Deus e que leva o destino de Cristo em todos os tempos e lugares da história. A devoção da consolação não é a-histórica ou abstrata, mas torna-se carne e sangue no caminho da Igreja.
A COMPUNÇÃO
158. O desejo inevitável de consolar Cristo, que surge da dor de contemplar o que Ele sofreu por nós, alimenta-se também do reconhecimento sincero das nossas escravidões, dos nossos apegos, da nossa falta de alegria na fé, das nossas buscas vãs e, para além dos pecados concretos, da falta de correspondência do nosso coração ao seu amor e ao seu projeto. É uma experiência que nos purifica, porque o amor precisa da purificação das lágrimas que, no final, nos deixam mais sedentos de Deus e menos obcecados por nós próprios.
159. Assim, vemos que, quanto mais profundo se torna o desejo de consolar o Senhor, mais se aprofunda a compunção do coração fiel, que «não é um sentimento de culpa que te lança por terra, nem uma série de escrúpulos que paralisam, mas é uma picada benéfica que queima intimamente e cura, pois o coração, quando se dá conta do próprio mal e se reconhece pecador, abre-se, acolhe a ação do Espírito Santo, como água viva que o muda a ponto de lhe correrem as lágrimas pelo rosto [...]. Não significa sentir pena de nós, como muitas vezes somos tentados a fazer [...]. Diversamente, chorar por nós próprios é arrepender-nos seriamente de ter entristecido a Deus com o pecado; reconhecer que diante d’Ele sempre estamos em débito, nunca em crédito [...]. Assim como a água, gota a gota, escava a pedra, as lágrimas lentamente escavam os corações endurecidos. Deste modo assiste-se ao milagre da tristeza, da boa tristeza, que leva à doçura [...]. A compunção, mais do que fruto do nosso exercício, é uma graça e como tal deve ser pedida na oração». É «pedir […] dor com Cristo doloroso, quebranto com Cristo quebrantado, lágrimas, pena interna de tanta pena que Cristo passou por mim».
160. Peço, portanto, que ninguém ridicularize as expressões de fervor devoto do santo povo fiel de Deus, que na sua piedade popular procura consolar Cristo. E convido cada um a perguntar-se se não há mais racionalidade, mais verdade e mais sabedoria em certas manifestações desse amor que procura consolar o Senhor do que nos atos de amor frios, distantes, calculados e mínimos de que somos capazes aqueles que julgamos possuir uma fé mais reflexiva, cultivada e madura.
CONSOLADOS PARA CONSOLAR
161. Nesta contemplação do Coração de Cristo, entregue até ao fim, somos consolados. A dor que sentimos no coração dá lugar a uma confiança total e, por fim, resta a gratidão, a ternura, a paz, o seu amor reinante na nossa vida. A compunção «não provoca angústia, mas alivia a alma dos seus pesos, porque intervém na ferida deixada pelo pecado, preparando-nos para receber lá mesmo a carícia do Senhor». E a nossa dor une-se à dor de Cristo na cruz, pois quando dizemos que a graça nos permite superar todas as distâncias, isso significa também que Cristo, quando sofria, estava unido a todos os sofrimentos dos seus discípulos ao longo da história. Assim, se sofremos, podemos experimentar a consolação interior de saber que o próprio Cristo sofre conosco. Desejando consolá-lo, saímos consolados.
162. Mas, num certo momento desta contemplação do coração que crê, deve ressoar aquele dramático apelo do Senhor: «Consolai, consolai o meu povo» (Is 40, 1). E recordamos as palavras de São Paulo, que nos lembra que Deus nos consola «para que também nós possamos consolar aqueles que estão em qualquer tribulação, mediante a consolação que nós mesmos recebemos de Deus» (2 Cor 1, 4).
163. Isto convida-nos agora a procurar aprofundar a dimensão comunitária, social e missionária de toda a autêntica devoção ao Coração de Cristo. Com efeito, o Coração de Cristo, ao mesmo tempo que nos conduz ao Pai, envia-nos aos irmãos. Nos frutos de serviço, fraternidade e missão que o Coração de Cristo produz através de nós, cumpre-se a vontade do Pai. Assim se fecha o círculo: «Nisto se manifesta a glória do meu Pai: em que deis muito fruto» (Jo 15, 8).