A HERMENÊUTICA DA SAGRADA ESCRITURA NA IGREJA

A HERMENÊUTICA DA SAGRADA ESCRITURA NA IGREJA

A IGREJA, LUGAR ORIGINÁRIO DA HERMENÊUTICA DA BÍBLIA

 

29. Outro grande tema surgido durante o Sínodo, sobre o qual quero debruçar-me agora, é a interpretação da Sagrada Escritura na Igreja. E precisamente a ligação intrínseca entre Palavra e fé põe em evidência que a autêntica hermenêutica da Bíblia só pode ser feita na fé eclesial, que tem o seu paradigma no sim de Maria. A este respeito, São Boaventura afirma que, sem a fé, não há chave de acesso ao texto sagrado: «Esta é o conhecimento de Jesus Cristo, do qual têm origem, como de uma fonte, a segurança e a inteligência de toda a Sagrada Escritura. Por isso é impossível que alguém possa entrar para a conhecer, se antes não tiver a fé infusa de Cristo que é lanterna, porta e também fundamento de toda a Escritura». E São Tomás de Aquino, mencionando Santo Agostinho, insiste vigorosamente: «A letra do Evangelho também mata, se faltar a graça interior da fé que cura».

 

Isto permite-nos assinalar um critério fundamental da hermenêutica bíblica: o lugar originário da interpretação da Escritura é a vida da Igreja. Esta afirmação não indica a referência eclesial como um critério extrínseco ao qual se devem submeter os exegetas, mas é uma exigência da própria realidade das Escrituras e do modo como se formaram ao longo do tempo. De facto, «as tradições de fé formavam o ambiente vital onde se inseriu a actividade literária dos autores da Sagrada Escritura. Esta inserção englobava também a participação na vida litúrgica e na actividade externa das comunidades, no seu mundo espiritual, na sua cultura e nas vicissitudes do seu destino histórico. Por isso, de modo semelhante, a interpretação da Sagrada Escritura exige a participação dos exegetas em toda a vida e em toda a fé da comunidade crente do seu tempo». Por conseguinte, «devendo a Sagrada Escritura ser lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita», é preciso que os exegetas, os teólogos e todo o Povo de Deus se abeirem dela por aquilo que realmente é: como Palavra de Deus que Se nos comunica através de palavras humanas (cf. 1 Ts 2, 13). Trata-se de um dado constante e implícito na própria Bíblia: «Nenhuma profecia da Escritura é de interpretação particular, porque jamais uma profecia foi proferida pela vontade dos homens. Inspirados pelo Espírito Santo é que os homens santos falaram em nome de Deus» (2 Pd 1, 20-21). Aliás, é precisamente a fé da Igreja que reconhece na Bíblia a Palavra de Deus; como admiravelmente diz Santo Agostinho, «não acreditaria no Evangelho se não me movesse a isso a autoridade da Igreja Católica». O Espírito Santo, que anima a vida da Igreja, é que torna capaz de interpretar autenticamente as Escrituras. A Bíblia é o livro da Igreja e, a partir da imanência dela na vida eclesial, brota também a sua verdadeira hermenêutica.

 

30. São Jerónimo recorda que, sozinhos, nunca poderemos ler a Escritura. Encontramos demasiadas portas fechadas e caímos facilmente em erro. A Bíblia foi escrita pelo Povo de Deus e para o Povo de Deus, sob a inspiração do Espírito Santo. Somente com o «nós», isto é, nesta comunhão com o Povo de Deus, podemos realmente entrar no núcleo da verdade que o próprio Deus nos quer dizer. Aquele grande estudioso, para quem «a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo», afirma que o carácter eclesial da interpretação bíblica não é uma exigência imposta do exterior; o Livro é precisamente a voz do Povo de Deus peregrino, e só na fé deste Povo é que estamos, por assim dizer, na tonalidade justa para compreender a Sagrada Escritura. Uma autêntica interpretação da Bíblia deve estar sempre em harmónica concordância com a fé da Igreja Católica. Jerónimo escrevia assim a um sacerdote: «Permanece firmemente apegado à doutrina tradicional que te foi ensinada, para que possas exortar segundo a sã doutrina e rebater aqueles que a contradizem».

 

Abordagens do texto sagrado que prescindam da fé podem sugerir elementos interessantes ao deterem-se sobre a estrutura do texto e as suas formas; inevitavelmente, porém, tal tentativa seria apenas preliminar e estruturalmente incompleta. De facto, como foi afirmado pela Pontifícia Comissão Bíblica, repercutindo um princípio compartilhado na hermenêutica moderna, «o justo conhecimento do texto bíblico só é acessível a quem tem uma afinidade vital com aquilo de que fala o texto». Tudo isto põe em relevo a relação entre a vida espiritual e a hermenêutica da Escritura. De facto, «com o crescimento da vida no Espírito, cresce também no leitor a compreensão das realidades de que fala o texto bíblico». Uma intensa e verdadeira experiência eclesial não pode deixar de incrementar a inteligência da fé autêntica a respeito da Palavra de Deus; e, vice-versa, a leitura na fé das Escrituras faz crescer a própria vida eclesial. Daqui podemos compreender de um modo novo a conhecida afirmação de São Gregório Magno: «As palavras divinas crescem juntamente com quem as lê». Assim, a escuta da Palavra de Deus introduz e incrementa a comunhão eclesial com todos os que caminham na fé.

 

«A ALMA DA SAGRADA TEOLOGIA»

 

31. «O estudo destes sagrados livros deve ser como que a alma da sagrada teologia»: esta afirmação da Constituição dogmática Dei Verbum foi-se-nos tornando ao longo destes anos cada vez mais familiar. Podemos dizer que o período sucessivo ao Concílio Vaticano II, no que se refere aos estudos teológicos e exegéticos, citou frequentemente esta frase como símbolo do renovado interesse pela Sagrada Escritura. Também a XII Assembleia do Sínodo dos Bispos se referiu várias vezes a esta conhecida afirmação, para indicar a relação entre investigação histórica e hermenêutica da fé aplicadas ao texto sagrado. Nesta perspectiva, os Padres reconheceram, com alegria, o crescimento do estudo da Palavra de Deus na Igreja ao longo dos últimos decénios e exprimiram um vivo agradecimento aos numerosos exegetas e teólogos que, com a sua dedicação, empenho e competência, deram e ainda dão uma contribuição essencial para o aprofundamento do sentido das Escrituras, enfrentando os problemas complexos que o nosso tempo coloca à investigação bíblica. Expressaram sentimentos de sincera gratidão também aos membros da Pontifícia Comissão Bíblica que se sucederam nestes últimos anos e que, em estreita relação com a Congregação para a Doutrina da Fé, continuam a dar o seu qualificado contributo para enfrentar questões peculiares inerentes ao estudo da Sagrada Escritura. Além disso, o Sínodo sentiu a necessidade de se interrogar sobre o estado dos estudos bíblicos actuais e sobre a sua relevância no âmbito teológico. De facto, da relação fecunda entre exegese e teologia depende, em grande parte, a eficácia pastoral da acção da Igreja e da vida espiritual dos fiéis. Por isso, considero importante retomar algumas reflexões surgidas no debate havido sobre este tema nos trabalhos do Sínodo.

 

DESENVOLVIMENTO DA INVESTIGAÇÃO BÍBLICA E MAGISTÉRIO ECLESIAL

 

32. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer os benefícios que a exegese histórico-crítica e os outros métodos de análise do texto, desenvolvidos em tempos mais recentes, trouxeram para a vida da Igreja. Segundo a visão católica da Sagrada Escritura, a atenção a estes métodos é imprescindível e está ligada ao realismo da encarnação: «Esta necessidade é a consequência do princípio cristão formulado no Evangelho de João 1, 14: Verbum caro factum est. O facto histórico é uma dimensão constitutiva da fé cristã. A história da salvação não é uma mitologia, mas uma verdadeira história e, por isso, deve-se estudar com os métodos de uma investigação histórica séria». Por isso, o estudo da Bíblia exige o conhecimento e o uso apropriado destes métodos de pesquisa. Se é verdade que esta sensibilidade no âmbito dos estudos se desenvolveu mais intensamente na época moderna, embora não de igual modo por toda a parte, todavia na sã tradição eclesial sempre houve amor pelo estudo da «letra». Basta recordar aqui a cultura monástica, à qual em última análise devemos o fundamento da cultura europeia: na sua raiz, está o interesse pela palavra. O desejo de Deus inclui o amor pela palavra em todas as suas dimensões: «Visto que, na Palavra bíblica, Deus caminha para nós e nós para Ele, é preciso aprender a penetrar no segredo da língua, compreendê--la na sua estrutura e no seu modo de se exprimir. Assim, devido precisamente à procura de Deus, tornam-se importantes as ciências profanas que nos indicam as vias rumo à língua».

 

33. O Magistério vivo da Igreja, ao qual compete «o encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou contida na Tradição», interveio com sapiente equilíbrio relativamente à justa posição a tomar face à introdução dos novos métodos de análise histórica. Refiro-me, de modo particular, às encíclicas Providentissimus Deus do Papa Leão XIII e Divino afflante Spiritu do Papa Pio XII. O meu venerável predecessor João Paulo II recordou a importância destes documentos para a exegese e a teologia, por ocasião da celebração do centenário e cinquentenário respectivamente da sua publicação. A intervenção do Papa Leão XIII teve o mérito de proteger a interpretação católica da Bíblia dos ataques do racionalismo, sem contudo se refugiar num sentido espiritual separado da história. Não desprezava a crítica científica; desconfiava-se somente «das opiniões preconcebidas que pretendem fundar-se sobre a ciência mas, na realidade, fazem astuciosamente sair a ciência do seu campo». Por sua vez, o Papa Pio XII encontrava-se perante os ataques dos adeptos duma exegese chamada mística, que recusava qualquer abordagem científica. Com grande sensibilidade, a Encíclica Divino afflante Spiritu evitou que se desenvolvesse a ideia de uma dicotomia entre a «exegese científica» para o uso apologético e a «interpretação espiritual reservada ao uso interno», afirmando, pelo contrário, quer o «alcance teológico do sentido literal metodicamente definido», quer a pertença da «determinação do sentido espiritual (…) ao campo da ciência exegética». De tal modo ambos os documentos recusam «a ruptura entre o humano e o divino, entre a pesquisa científica e a visão da fé, entre o sentido literal e o sentido espiritual». Este equilíbrio foi, sucessivamente, expresso no documento de 1993 da Pontifícia Comissão Bíblica: «No seu trabalho de interpretação, os exegetas católicos jamais devem esquecer que interpretam a Palavra de Deus. A sua tarefa não termina depois que distinguiram as fontes, definiram as formas ou explicaram os processos literários. O objectivo do seu trabalho só está alcançado quando tiverem esclarecido o significado do texto bíblico como Palavra actual de Deus».

 

A HERMENÊUTICA BÍBLICA CONCILIAR: UMA INDICAÇÃO A ACOLHER

 

34. A partir deste horizonte, podem-se apreciar melhor os grandes princípios da interpretação próprios da exegese católica expressos pelo Concílio Vaticano II, particularmente na Constituição dogmática Dei Verbum: «Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras». O Concílio, por um lado, sublinha, como elementos fundamentais para identificar o significado pretendido pelo hagiógrafo, o estudo dos géneros literários e a contextualização; por outro, devendo a Escritura ser interpretada no mesmo Espírito em que foi escrita, a Constituição dogmática indica três critérios de base para se respeitar a dimensão divina da Bíblia: 1) interpretar o texto tendo presente a unidade de toda a Escritura; isto hoje chama-se exegese canónica; 2) ter presente a Tradição viva de toda a Igreja; 3) observar a analogia da fé. «Somente quando se observam os dois níveis metodológicos, histórico-crítico e teológico, é que se pode falar de uma exegese teológica, de uma exegese adequada a este Livro».

 

Os Padres sinodais afirmaram, justamente, que o fruto positivo produzido pelo uso da investigação histórico-crítica moderna é inegável. Mas, enquanto a exegese académica actual, mesmo católica, trabalha a alto nível no que se refere à metodologia histórico-crítica, incluindo as suas mais recentes integrações, é forçoso exigir um estudo análogo da dimensão teológica dos textos bíblicos, para que progrida o aprofundamento segundo os três elementos indicados pela Constituição dogmática Dei Verbum.

 

O PERIGO DO DUALISMO E A HERMENÊUTICA SECULARIZADA

 

35. A este propósito, é preciso sublinhar hoje o grave risco de um dualismo que se gera ao abordar as Sagradas Escrituras. De facto, distinguindo os dois níveis da abordagem bíblica, não se pretende de modo algum separá-los, contrapô-los, ou simplesmente justapô-los. Só funcionam em reciprocidade. Infelizmente, não raro uma infrutífera separação dos mesmos leva a exegese e a teologia a comportarem-se como estranhas; e isto «acontece mesmo aos níveis académicos mais altos». Desejo aqui lembrar as consequências mais preocupantes que se devem evitar.

 

a) Antes de mais nada, se a actividade exegética se reduz só ao primeiro nível, consequentemente a própria Escritura torna-se um texto só do passado: «Daí podem-se tirar consequências morais, pode-se aprender a história, mas o Livro como tal fala só do passado e a exegese já não é realmente teológica, mas torna-se pura historiografia, história da literatura». É claro que, numa tal redução, não é possível de modo algum compreender o acontecimento da revelação de Deus através da sua Palavra que nos é transmitida na Tradição viva e na Escritura.

 

b) A falta de uma hermenêutica da fé na abordagem da Escritura não se apresenta apenas em termos de uma ausência; o seu lugar acaba inevitavelmente ocupado por outra hermenêutica, uma hermenêutica secularizada, positivista, cuja chave fundamental é a convicção de que o Divino não aparece na história humana. Segundo esta hermenêutica, quando parecer que há um elemento divino, isso deve-se explicar de outro modo, reduzindo tudo ao elemento humano. Consequentemente propõem-se interpretações que negam a historicidade dos elementos divinos.

 

c) Uma tal posição não pode deixar de danificar a vida da Igreja, fazendo surgir dúvidas sobre mistérios fundamentais do cristianismo e sobre o seu valor histórico, como, por exemplo, a instituição da Eucaristia e a ressurreição de Cristo. De facto, assim impõe-se uma hermenêutica filosófica, que nega a possibilidade de ingresso e presença do Divino na história. A assunção de tal hermenêutica no âmbito dos estudos teológicos introduz, inevitavelmente, um gravoso dualismo entre a exegese, que se situa unicamente no primeiro nível, e a teologia que leva a uma espiritualização do sentido das Escrituras não respeitadora do carácter histórico da revelação.

 

Tudo isto não pode deixar de resultar negativo também para a vida espiritual e a actividade pastoral; «a consequência da ausência do segundo nível metodológico é que se criou um fosso profundo entre exegese científica e lectio divina. E precisamente daqui nasce às vezes uma forma de perplexidade na própria preparação das homilias». Além disso, há que assinalar que tal dualismo produz às vezes incerteza e pouca solidez no caminho de formação intelectual mesmo de alguns candidatos aos ministérios eclesiais. Enfim, «onde a exegese não é teologia, a Escritura não pode ser a alma da teologia e, vice-versa, onde a teologia não é essencialmente interpretação da Escritura na Igreja, esta teologia já não tem fundamento». Portanto, é necessário voltar decididamente a considerar com mais atenção as indicações dadas pela Constituição dogmática Dei Verbum a este propósito.

 

FÉ E RAZÃO NA ABORDAGEM DA ESCRITURA

 

36. Creio que pode contribuir para uma compreensão mais completa da exegese e, consequentemente, da sua relação com a teologia inteira aquilo que escreveu o João Paulo II na Encíclica Fides et ratio a este respeito. Afirmava ele que não se deve subestimar «o perigo que existe quando se quer individuar a verdade da Sagrada Escritura com a aplicação de uma única metodologia, esquecendo a necessidade de uma exegese mais ampla que permita o acesso, em união com toda a Igreja, ao sentido pleno dos textos. Os que se dedicam ao estudo da Sagrada Escritura nunca devem esquecer que as diversas metodologias hermenêuticas têm também na sua base uma concepção filosófica: é preciso examiná-las com grande discernimento, antes de as aplicar aos textos sagrados».

 

Esta clarividente reflexão permite-nos ver como, na abordagem hermenêutica da Sagrada Escritura, está em jogo inevitavelmente a relação correcta entre fé e razão. De facto, a hermenêutica secularizada da Sagrada Escritura é actuada por uma razão que quer estruturalmente fechar-se à possibilidade de Deus entrar na vida dos homens e falar aos homens com palavras humanas. Por isso é necessário, também neste caso, convidar a alargar os espaços da própria racionalidade. Na utilização dos métodos de análise histórica, dever-se-á evitar de assumir, sempre que aparecem, critérios que preconceituosamente se fechem à revelação de Deus na vida dos homens. A unidade dos dois níveis do trabalho interpretativo da Sagrada Escritura pressupõe, em última análise, uma harmonia entre a fé e a razão. Por um lado, é necessária uma fé que, mantendo uma adequada relação com a recta razão, nunca degenere em fideísmo, que se tornaria, a respeito da Escritura, fautor de leituras fundamentalistas. Por outro, é necessária uma razão que, investigando os elementos históricos presentes na Bíblia, se mostre aberta e não recuse aprioristicamente tudo o que excede a própria medida. Aliás, a religião do Logos encarnado não poderá deixar de apresentar-se profundamente razoável ao homem que sinceramente procura a verdade e o sentido último da própria vida e da história.

 

SENTIDO LITERAL E SENTIDO ESPIRITUAL

 

37. Como foi afirmado na assembleia sinodal, um significativo contributo para a recuperação de uma adequada hermenêutica da Escritura provém de uma renovada escuta dos Padres da Igreja e da sua abordagem exegética. Com efeito, os Padres da Igreja oferecem-nos, ainda hoje, uma teologia de grande valor, porque no centro está o estudo da Sagrada Escritura na sua integridade. De facto, os Padres são primária e essencialmente «comentadores da Sagrada Escritura». O seu exemplo pode «ensinar aos exegetas modernos uma abordagem verdadeiramente religiosa da Sagrada Escritura, e também uma interpretação que se atém constantemente ao critério de comunhão com a experiência da Igreja, que caminha através da história sob a guia do Espírito Santo».

 

Apesar de não conhecer, obviamente, os recursos de ordem filológica e histórica à disposição da exegese moderna, a tradição patrística e medieval sabia reconhecer os vários sentidos da Escritura, a começar pelo literal, isto é, «o expresso pelas palavras da Escritura e descoberto pela exegese segundo as regras da recta interpretação». Por exemplo, São Tomás de Aquino afirma: «Todos os sentidos da Sagrada Escritura se fundamentam no literal». É preciso, porém, recordar-se de que, no período patrístico e medieval, toda a forma de exegese, incluindo a literal, era feita com base na fé, não havendo necessariamente distinção entre sentido literal e sentido espiritual. A propósito, recorde-se o dístico clássico que traduz a relação entre os diversos sentidos da Escritura:

 

«Littera gesta docet, quid credas allegoria,

Moralis quid agas, quo tendas anagogia.

A letra ensina-te os factos [passados], a alegoria o que deves crer,

A moral o que deves fazer, a anagogia para onde deves tender».

 

Sobressai aqui a unidade e a articulação entre sentido literal e sentido espiritual, o qual, por sua vez, se subdivide em três sentidos que descrevem os conteúdos da fé, da moral e da tensão escatológica.

 

Em suma, reconhecendo o valor e a necessidade – apesar dos seus limites – do método histórico-crítico, pela exegese patrística, aprendemos que «só se é fiel à intencionalidade dos textos bíblicos na medida em que se procura encontrar, no coração da sua formulação, a realidade de fé que os mesmos exprimem e em que se liga esta realidade com a experiência crente do nosso mundo». Somente nesta perspectiva se pode reconhecer que a Palavra de Deus é viva e se dirige a cada um de nós no momento presente da nossa vida. Continua assim plenamente válida a afirmação da Pontifícia Comissão Bíblica que define o sentido espiritual, segundo a fé cristã, como «o sentido expresso pelos textos bíblicos quando são lidos sob o influxo do Espírito Santo no contexto do mistério pascal de Cristo e da vida nova que dele resulta. Este contexto existe efectivamente. O Novo Testamento reconhece nele o cumprimento das Escrituras. Por isso, é normal reler as Escrituras à luz deste novo contexto, o da vida no Espírito».

 

A NECESSÁRIA SUPERAÇÃO DA «LETRA»

 

38. Para se recuperar a articulação entre os diversos sentidos da Escritura, torna-se então decisivo identificar a passagem entre letra e espírito. Não se trata de uma passagem automática e espontânea; antes, é preciso transcender a letra: «de facto, a Palavra do próprio Deus nunca se apresenta na simples literalidade do texto. Para alcançá-la, é preciso transcender a literalidade num processo de compreensão, que se deixa guiar pelo movimento interior do conjunto e, portanto, deve tornar-se também um processo de vida». Descobrimos assim o motivo por que um autêntico processo interpretativo nunca é apenas intelectual, mas também vital, que requer o pleno envolvimento na vida eclesial enquanto vida «segundo o Espírito» (Gl 5, 16). Deste modo tornam-se mais claros os critérios evidenciados pelo número 12 da Constituição dogmática Dei Verbum: a referida superação não pode verificar-se no fragmento literário individual mas em relação com a totalidade da Escritura. De facto, é uma única Palavra aquela para a qual somos chamados a transcender. Este processo possui uma íntima dramaticidade, porque, no processo de superação, a passagem que acontece em virtude do Espírito tem inevitavelmente a ver também com a liberdade de cada um. São Paulo viveu plenamente na sua própria vida esta passagem. O que significa transcender a letra e a sua compreensão unicamente a partir do conjunto, expressou-o ele de modo radical nesta frase: «A letra mata, mas o Espírito vivifica» (2 Cor 3, 6). São Paulo descobre que «o Espírito libertador tem um nome e que a liberdade tem, consequentemente, uma medida interior: “O Senhor é Espírito, e onde está o Espírito do Senhor há liberdade” (2 Cor 3, 17). O Espírito libertador não é simplesmente a própria ideia, a visão pessoal de quem interpreta. O Espírito é Cristo, e Cristo é o Senhor que nos indica a estrada». Sabemos como esta passagem foi dramática e simultaneamente libertadora em Santo Agostinho; ele acreditou nas Escrituras, que antes se lhe apresentavam muito diversificadas em si mesmas e às vezes indelicadas, precisamente por esta superação que aprendeu de Santo Ambrósio mediante a interpretação tipológica, segundo a qual todo o Antigo Testamento é um caminho para Jesus Cristo. Para Santo Agostinho, transcender a letra tornou credível a própria letra e permitiu-lhe encontrar finalmente a resposta às profundas inquietações do seu espírito, sedento da verdade.

 

A UNIDADE INTRÍNSECA DA BÍBLIA

 

39. Na escola da grande tradição da Igreja, aprendemos na passagem da letra ao espírito a identificar também a unidade de toda a Escritura, pois única é a Palavra de Deus que interpela a nossa vida, chamando-a constantemente à conversão. Continuam a ser para nós uma guia segura as expressões de Hugo de São Víctor: «Toda a Escritura divina constitui um único livro e este único livro é Cristo, fala de Cristo e encontra em Cristo a sua realização». É certo que a Bíblia, vista sob o aspecto puramente histórico ou literário, não é simplesmente um livro, mas uma colectânea de textos literários, cuja redacção se estende por mais de um milénio e cujos diversos livros não são facilmente reconhecíveis como partes duma unidade interior; antes, há tensões palpáveis entre eles. Se isto já se verifica no interior da Bíblia de Israel, que nós, cristãos, chamamos Antigo Testamento, muito mais quando nós, como cristãos, ligamos o Novo Testamento e os seus escritos – como se fosse a chave hermenêutica – com a Bíblia de Israel interpretando-a como caminho para Cristo. No Novo Testamento, aparece menos a expressão «a Escritura» (cf. Rm 4, 3; 1 Pd 1, 6), do que «as Escrituras» (cf. Mt 21, 43; Jo 5, 39; Rm 1, 2; 2 Pd 3, 16), que porém, no seu conjunto, são depois consideradas como a única Palavra de Deus dirigida a nós. Por isso se vê claramente como é a pessoa de Cristo que dá unidade a todas as «Escrituras» postas em relação com a única «Palavra». Compreende-se assim a afirmação do número 12 da Constituição dogmática Dei Verbum, quando indica a unidade interna de toda a Bíblia como critério decisivo para uma correcta hermenêutica da fé.

 

A RELAÇÃO ENTRE ANTIGO E NOVO TESTAMENTO

 

40. Na perspectiva da unidade das Escrituras em Cristo, tanto os teólogos como os pastores necessitam de estar conscientes das relações entre o Antigo e o Novo Testamento. Em primeiro lugar, é evidente que o próprio Novo Testamento reconhece o Antigo Testamento como Palavra de Deus e, por conseguinte, admite a autoridade das Sagradas Escrituras do povo judeu. Reconhece-as implicitamente, quando usa a mesma linguagem e frequentemente alude a trechos destas Escrituras; reconhece-as explicitamente, porque cita muitas partes servindo-se delas para argumentar. Uma argumentação baseada nos textos do Antigo Testamento reveste-se assim, no Novo Testamento, de um valor decisivo, superior ao de raciocínios simplesmente humanos. No quarto Evangelho, a este propósito Jesus declara que «a Escritura não pode ser anulada» (Jo 10, 35) e São Paulo especifica de modo particular que a revelação do Antigo Testamento continua a valer para nós, cristãos (cf. Rm 15, 4; 1 Cor 10, 11).[132] Além disso, afirmamos que «Jesus de Nazaré foi um judeu e a Terra Santa é terra-mãe da Igreja»; a raiz do cristianismo encontra-se no Antigo Testamento e sempre se nutre desta raiz. Por isso a sã doutrina cristã sempre recusou qualquer forma emergente de marcionismo, que tende de diversos modos a contrapor entre si o Antigo e o Novo Testamento.

 

Além disso, o próprio Novo Testamento se diz em conformidade com o Antigo e proclama que, no mistério da vida, morte e ressurreição de Cristo, encontraram o seu perfeito cumprimento as Escrituras Sagradas do povo judeu. Mas é preciso notar que o conceito de cumprimento das Escrituras é complexo, porque comporta uma tríplice dimensão: um aspecto fundamental de continuidade com a revelação do Antigo Testamento, um aspecto de ruptura e um aspecto de cumprimento e superação. O mistério de Cristo está em continuidade de intenção com o culto sacrificial do Antigo Testamento; mas realizou-se de um modo muito diferente, que corresponde a muitos oráculos dos profetas, e alcançou assim uma perfeição nunca antes obtida. De facto, o Antigo Testamento está cheio de tensões entre os seus aspectos institucionais e os seus aspectos proféticos. O mistério pascal de Cristo está plenamente de acordo – embora de uma forma que era imprevisível – com as profecias e o aspecto prefigurativo das Escrituras; mas apresenta evidentes aspectos de descontinuidade relativamente às instituições do Antigo Testamento.

 

41. Estas considerações mostram assim a importância insubstituível do Antigo Testamento para os cristãos, mas ao mesmo tempo evidenciam a originalidade da leitura cristológica. Desde os tempos apostólicos e depois na Tradição viva, a Igreja deixou clara a unidade do plano divino nos dois Testamentos graças à tipologia, que não tem carácter arbitrário mas é intrínseca aos acontecimentos narrados pelo texto sagrado e, por conseguinte, diz respeito a toda a Escritura. A tipologia «descobre nas obras de Deus, na Antiga Aliança, prefigurações do que o mesmo Deus realizou, na plenitude dos tempos, na pessoa do seu Filho encarnado». Por isso os cristãos lêem o Antigo Testamento à luz de Cristo morto e ressuscitado. Se a leitura tipológica revela o conteúdo inesgotável do Antigo Testamento relativamente ao Novo, não deve todavia fazer-nos esquecer que aquele mantém o seu próprio valor de Revelação que Nosso Senhor veio reafirmar (cf. Mc 12, 29-31). Por isso «também o Novo Testamento requer ser lido à luz do Antigo. A catequese cristã primitiva recorreu constantemente a este método (cf. 1 Cor 5, 6-8; 10, 1-11)». Por este motivo, os Padres sinodais afirmaram que «a compreensão judaica da Bíblia pode ajudar a inteligência e o estudo das Escrituras por parte dos cristãos».

 

Assim se exprimia, com aguda sabedoria, Santo Agostinho sobre este tema: «O Novo Testamento está oculto no Antigo e o Antigo está patente no Novo». Deste modo, tanto em âmbito pastoral como em âmbito académico, importa que seja colocada bem em evidência a relação íntima entre os dois Testamentos, recordando com São Gregório Magno que aquilo que «o Antigo Testamento prometeu, o Novo Testamento fê-lo ver; o que aquele anuncia de maneira oculta, este proclama abertamente como presente. Por isso, o Antigo Testamento é profecia do Novo Testamento; e o melhor comentário do Antigo Testamento é o Novo Testamento».

 

AS PÁGINAS «OBSCURAS» DA BÍBLIA

 

42. No contexto da relação entre Antigo e Novo Testamento, o Sínodo enfrentou também o caso de páginas da Bíblia que às vezes se apresentam obscuras e difíceis por causa da violência e imoralidade nelas referidas. Em relação a isto, deve-se ter presente antes de mais nada que a revelação bíblica está profundamente radicada na história. Nela se vai progressivamente manifestando o desígnio de Deus, actuando-se lentamente ao longo de etapas sucessivas, não obstante a resistência dos homens. Deus escolhe um povo e, pacientemente, realiza a sua educação. A revelação adapta-se ao nível cultural e moral de épocas antigas, referindo consequentemente factos e usos como, por exemplo, manobras fraudulentas, intervenções violentas, extermínio de populações, sem denunciar explicitamente a sua imoralidade. Isto explica-se a partir do contexto histórico, mas pode surpreender o leitor moderno, sobretudo quando se esquecem tantos comportamentos «obscuros» que os homens sempre tiveram ao longo dos séculos, inclusive nos nossos dias. No Antigo Testamento, a pregação dos profetas ergue-se vigorosamente contra todo o tipo de injustiça e de violência, colectiva ou individual, tornando-se assim o instrumento da educação dada por Deus ao seu povo como preparação para o Evangelho. Seria, pois, errado não considerar aqueles passos da Escritura que nos aparecem problemáticos. Entretanto deve-se ter consciência de que a leitura destas páginas requer a aquisição de uma adequada competência, através duma formação que leia os textos no seu contexto histórico-literário e na perspectiva cristã, que tem como chave hermenêutica última «o Evangelho e o mandamento novo de Jesus Cristo realizado no mistério pascal». Por isso exorto os estudiosos e os pastores a ajudarem todos os fiéis a abeirar-se também destas páginas por meio de uma leitura que leve a descobrir o seu significado à luz do mistério de Cristo.

 

CRISTÃOS E JUDEUS, RELATIVAMENTE ÀS SAGRADAS ESCRITURAS

 

43. Depois de considerar a íntima relação que une o Novo Testamento ao Antigo, é espontâneo fixar a atenção no vínculo peculiar que isso cria entre cristãos e judeus, um vínculo que não deveria jamais ser esquecido. Aos judeus, o Papa João Paulo II declarou: sois «os nossos “irmãos predilectos” na fé de Abraão, nosso patriarca». Por certo, estas afirmações não significam ignorar as rupturas atestadas no Novo Testamento relativamente às instituições do Antigo Testamento e menos ainda o cumprimento das Escrituras no mistério de Jesus Cristo, reconhecido Messias e Filho de Deus. Mas esta diferença profunda e radical não implica de modo algum hostilidade recíproca. Pelo contrário, o exemplo de São Paulo (cf. Rm 9–11) demonstra que «uma atitude de respeito, estima e amor pelo povo judeu é a única atitude verdadeiramente cristã nesta situação que, misteriosamente, faz parte do desígnio totalmente positivo de Deus». De facto, o Apóstolo afirma que os judeus, «quanto à escolha divina, são amados por causa dos Patriarcas, pois os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis» (Rm 11, 28-29).

 

Além disso, usa a bela imagem da oliveira para descrever as relações muito estreitas entre cristãos e judeus: a Igreja dos gentios é como um rebento de oliveira brava enxertado na oliveira boa que é o povo da Aliança (cf. Rm 11, 17-24). Alimentamo-nos, pois, das mesmas raízes espirituais. Encontramo-nos como irmãos; irmãos que em certos momentos da sua história tiveram um relacionamento tenso, mas agora estão firmemente comprometidos na construção de pontes de amizade duradoura. Como disse o Papa João Paulo II noutra ocasião: «Temos muito em comum. Juntos podemos fazer muito pela paz, pela justiça e por um mundo mais fraterno e mais humano».

 

Desejo afirmar uma vez mais quão precioso é para a Igreja o diálogo com os judeus. É bom que, onde isto se apresentar como oportuno, se criem possibilidades mesmo públicas de encontro e diálogo, que favoreçam o crescimento do conhecimento mútuo, da estima recíproca e da colaboração inclusive no próprio estudo das Sagradas Escrituras.

 

A INTERPRETAÇÃO FUNDAMENTALISTA DA SAGRADA ESCRITURA

 

44. A atenção que quisemos dar até agora ao tema da hermenêutica bíblica, nos seus diversos aspectos, permite-nos abordar o tema – muitas vezes aflorado no debate sinodal – da interpretação fundamentalista da Sagrada Escritura. Sobre este tema, a Pontifícia Comissão Bíblica, no documento A interpretação da Bíblia na Igreja, formulou indicações importantes. Neste contexto, desejo chamar a atenção sobretudo para aquelas leituras que não respeitam o texto sagrado na sua natureza autêntica, promovendo interpretações subjectivistas e arbitrárias. Na realidade, o «literalismo» propugnado pela leitura fundamentalista constitui uma traição tanto do sentido literal como do espiritual, abrindo caminho a instrumentalizações de variada natureza, difundindo por exemplo interpretações anti-eclesiais das próprias Escrituras. O aspecto problemático da «leitura fundamentalista é que, recusando ter em conta o carácter histórico da revelação bíblica, torna-se incapaz de aceitar plenamente a verdade da própria Encarnação. O fundamentalismo evita a íntima ligação do divino e do humano nas relações com Deus. (…) Por este motivo, tende a tratar o texto bíblico como se fosse ditado palavra por palavra pelo Espírito e não chega a reconhecer que a Palavra de Deus foi formulada numa linguagem e numa fraseologia condicionadas por uma dada época». Ao contrário, o cristianismo divisa nas palavras a Palavra, o próprio Logos, que estende o seu mistério através de tal multiplicidade e da realidade de uma história humana. A verdadeira resposta a uma leitura fundamentalista é «a leitura crente da Sagrada Escritura, praticada desde a antiguidade na Tradição da Igreja. [Tal leitura] procura a verdade salvífica para a vida do indivíduo fiel e para a Igreja. Esta leitura reconhece o valor histórico da tradição bíblica. Precisamente por este valor de testemunho histórico é que ela quer descobrir o significado vivo das Sagradas Escrituras destinadas também à vida do fiel de hoje», sem ignorar, portanto, a mediação humana do texto inspirado e os seus géneros literários.

 

DIÁLOGO ENTRE PASTORES, TEÓLOGOS E EXEGETAS

 

45. A autêntica hermenêutica da fé acarreta algumas consequências importantes no âmbito da actividade pastoral da Igreja. Precisamente a este respeito, os Padres sinodais recomendaram, por exemplo, um relacionamento mais assíduo entre Pastores, exegetas e teólogos. É bom que as Conferências Episcopais favoreçam estes encontros com o «fim de promover uma maior comunhão no serviço da Palavra de Deus». Tal cooperação ajudará a todos a realizarem melhor o próprio trabalho em benefício da Igreja inteira. De facto, situar-se no horizonte do trabalho pastoral quer dizer, mesmo para os estudiosos, olhar o texto sagrado na sua natureza de comunicação que o Senhor faz aos homens para a salvação. Portanto, como afirmou a Constituição dogmática Dei Verbum, «é preciso que os exegetas católicos e demais estudiosos da sagrada teologia trabalhem em íntima colaboração de esforços, para que, sob a vigilância do sagrado magistério, lançando mão de meios aptos, estudem e expliquem as divinas Letras, de modo que o maior número possível de ministros da Palavra de Deus possa oferecer com fruto ao Povo de Deus o alimento das Escrituras, que ilumine o espírito, robusteça as vontades e inflame os corações dos homens no amor de Deus».

 

BÍBLIA E ECUMENISMO

 

46. Na certeza de que a Igreja tem o seu fundamento em Cristo, Verbo de Deus feito carne, o Sínodo quis sublinhar a centralidade dos estudos bíblicos no diálogo ecuménico, que visa a plena expressão da unidade de todos os crentes em Cristo. De facto, na própria Escritura, encontramos a comovente súplica de Jesus ao Pai pelos seus discípulos para que sejam um só a fim de que o mundo creia (cf. Jo 17, 21). Tudo isto nos fortalece na convicção de que escutar e meditar juntos as Escrituras nos faz viver uma comunhão real, embora ainda não plena; pois «a escuta comum das Escrituras impele ao diálogo da caridade e faz crescer o da verdade». De facto, ouvir juntos a Palavra de Deus, praticar a lectio divina da Bíblia, deixar-se surpreender pela novidade que nunca envelhece e jamais se esgota da Palavra de Deus, superar a nossa surdez àquelas palavras que não estão de acordo com as nossas opiniões ou preconceitos, escutar e estudar na comunhão dos fiéis de todos os tempos: tudo isto constitui um caminho a percorrer para alcançar a unidade da fé, como resposta à escuta da Palavra. Verdadeiramente esclarecedoras eram estas palavras do Concílio Vaticano II: «No próprio diálogo [ecuménico], a Sagrada Escritura é um exímio instrumento da poderosa mão de Deus para a consecução daquela unidade que o Salvador oferece a todos os homens». Por isso, é bom incrementar o estudo, o diálogo e as celebrações ecuménicas da Palavra de Deus, no respeito das regras vigentes e das diversas tradições. Estas celebrações são úteis à causa ecuménica e, se vividas no seu verdadeiro significado, constituem momentos intensos de autêntica oração nos quais se pede a Deus para apressar o suspirado dia em que será possível abeirar-nos todos da mesma mesa e beber do único cálice. Entretanto, na justa e louvável promoção destes momentos, faça-se de modo que os mesmos não sejam propostos aos fiéis em substituição da participação na Santa Missa nos dias de preceito.

 

Neste trabalho de estudo e de oração, reconhecemos com serenidade também os aspectos que requerem ser aprofundados e que nos mantêm ainda distantes, como, por exemplo, a compreensão do sujeito da interpretação com autoridade na Igreja e o papel decisivo do Magistério.

 

Além disso queria sublinhar o que os Padres sinodais disseram da importância que têm, neste trabalho ecuménico, as traduções da Bíblia nas diversas línguas. De facto, sabemos que traduzir um texto não é trabalho meramente mecânico, mas faz parte em certo sentido do trabalho interpretativo. A este respeito, o Venerável João Paulo II afirmou: «Quem recorda como influíram nas divisões, especialmente no Ocidente, os debates em torno da Escritura, pode compreender quanto seja notável o passo em frente representado por tais traduções comuns». Por isso, a promoção das traduções comuns da Bíblia faz parte do trabalho ecuménico. Desejo aqui agradecer a todos os que estão comprometidos nesta importante tarefa e encorajá-los a continuarem na sua obra.

 

CONSEQUÊNCIAS SOBRE A ORGANIZAÇÃO DOS ESTUDOS TEOLÓGICOS

 

47. Outra consequência que deriva de uma adequada hermenêutica da fé diz respeito à necessidade de mostrar as suas implicações na formação exegética e teológica, particularmente dos candidatos ao sacerdócio. Faça-se com que o estudo da Sagrada Escritura seja verdadeiramente a alma da teologia, enquanto se reconhece nela a Palavra que Deus hoje dirige ao mundo, à Igreja e a cada um pessoalmente. É importante que os critérios indicados pelo número 12 da Constituição dogmática Dei Verbum sejam efectivamente tomados em consideração e se tornem objecto de aprofundamento. Evite-se cultivar uma noção de pesquisa científica, que se considera neutral face à Escritura. Por isso, juntamente com o estudo das línguas próprias em que foi escrita a Bíblia e dos métodos interpretativos adequados, é necessário que os estudantes tenham uma profunda vida espiritual, para se aperceberem de que só é possível compreender a Escritura se a viverem.

 

Nesta perspectiva, recomendo que o estudo da Palavra de Deus, transmitida e escrita, se verifique sempre em profundo espírito eclesial, tendo em devida conta, na formação académica, as intervenções sobre estas temáticas feitas pelo Magistério, o qual «não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente». Portanto tenha-se o cuidado de que os estudos se realizem reconhecendo que «a sagrada Tradição, a sagrada Escritura e o magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo desígnio de Deus, de tal maneira se unem e associam que um sem os outros não se mantém». pois que, segundo a doutrina do Concílio Vaticano II, o estudo da Sagrada Escritura, lida na comunhão da Igreja universal, seja realmente como que a alma do estudo teológico.

 

OS SANTOS E A INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA

 

48. A interpretação da Sagrada Escritura ficaria incompleta se não se ouvisse também quem viveu verdadeiramente a Palavra de Deus, ou seja, os Santos. De facto, «viva lectio est vita bonorum». Realmente a interpretação mais profunda da Escritura provém precisamente daqueles que se deixaram plasmar pela Palavra de Deus, através da sua escuta, leitura e meditação assídua.

 

Certamente não é por acaso que as grandes espiritualidades, que marcaram a história da Igreja, nasceram de uma explícita referência à Escritura. Penso, por exemplo, em Santo Antão Abade, que se decide ao ouvir esta palavra de Cristo: «Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuíres, dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no céus; depois, vem e segue-Me» (Mt 19, 21). Igualmente sugestivo é São Basílio Magno, quando, na sua obra Moralia, se interroga: «O que é próprio da fé? Certeza plena e segura da verdade das palavras inspiradas por Deus. (…) O que é próprio do fiel? Com tal certeza plena, conformar-se com o significado das palavras da Escritura, sem ousar tirar nem acrescentar seja o que for». São Bento, na sua Regra, remete para a Escritura como «norma rectíssima para a vida do homem». São Francisco de Assis – escreve Tomás de Celano – «ao ouvir que os discípulos de Cristo não devem possuir ouro, nem prata, nem dinheiro, não devem trazer alforge, nem pão, nem cajado para o caminho, não devem ter vários pares de calçado, nem duas túnicas, (…) logo exclamou, transbordando de Espírito Santo: Com todo o coração isto quero, isto peço, isto anseio realizar!». E Santa Clara de Assis reproduz plenamente a experiência de São Francisco: «A forma de vida da Ordem das Irmãs pobres (…) é esta: observar o santo Evangelho do Senhor nosso Jesus Cristo». Por sua vez, São Domingos de Gusmão «em toda a parte se manifestava como um homem evangélico, tanto nas palavras como nas obras», e tais queria que fossem também os seus padres pregadores: «homens evangélicos». Santa Teresa de Ávila, nos seus escritos, recorre continuamente a imagens bíblicas para explicar a sua experiência mística, e lembra que o próprio Jesus lhe manifesta que «todo o mal do mundo deriva de não se conhecer claramente a verdade da Sagrada Escritura». Santa Teresa do Menino Jesus encontra o Amor como sua vocação pessoal, quando perscruta as Escrituras, em particular os capítulos 12 e 13 da Primeira Carta aos Coríntios; e a mesma Santa assim nos descreve o fascínio das Escrituras: «Apenas lanço o olhar sobre o Evangelho, imediatamente respiro os perfumes da vida de Jesus e sei para onde correr». Cada Santo constitui uma espécie de raio de luz que brota da Palavra de Deus: assim o vemos também em Santo Inácio de Loyola na sua busca da verdade e no discernimento espiritual, em São João Bosco na sua paixão pela educação dos jovens, em São João Maria Vianney na sua consciência da grandeza do sacerdócio como dom e dever; em São Pio de Pietrelcina no seu ser instrumento da misericórdia divina; em São Josemaria Escrivá na sua pregação sobre a vocação universal à santidade; na Beata Teresa de Calcutá missionária da caridade de Deus pelos últimos; e nos mártires do nazismo e do comunismo representados, os primeiros, por Santa Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein), monja carmelita, e os segundos pelo Beato Aloísio Stepinac, Cardeal Arcebispo de Zagrábia.

 

49. Assim a santidade relacionada com a Palavra de Deus inscreve-se de certo modo na tradição profética, na qual a Palavra de Deus se serve da própria vida do profeta. Neste sentido, a santidade na Igreja representa uma hermenêutica da Escritura da qual ninguém pode prescindir. O Espírito Santo que inspirou os autores sagrados é o mesmo que anima os Santos a darem a vida pelo Evangelho. Entrar na sua escola constitui um caminho seguro para efectuar uma hermenêutica viva e eficaz da Palavra de Deus.

 

Tivemos um testemunho directo desta ligação entre Palavra de Deus e santidade durante a XII Assembleia do Sínodo quando, a 12 de Outubro na Praça de São Pedro, se realizou a canonização de quatro novos Santos: o sacerdote Caetano Errico, fundador da Congregação dos Missionários dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria; a Irmã Maria Bernarda Bütler, nascida na Suíça e missionária no Equador e na Colômbia; a Irmã Afonsa da Imaculada Conceição, primeira santa canonizada nascida na Índia; a jovem leiga equatoriana Narcisa de Jesus Martillo Morán. Com a sua vida, deram testemunho ao mundo e à Igreja da perene fecundidade do Evangelho de Cristo. Pedimos ao Senhor que, por intercessão destes Santos canonizados precisamente nos dias da assembleia sinodal sobre a Palavra de Deus, a nossa vida seja aquele «terreno bom» onde o Semeador divino possa semear a Palavra para que produza em nós frutos de santidade, a «trinta, sessenta, e cem por um» (Mc 4, 20).

 

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