256. «No coração dos que maquinam o mal, há falsidade, mas aqueles que têm conselhos de paz, viverão na alegria» (Prov 12, 20). No entanto, há quem busque soluções na guerra, que frequentemente «se nutre com a perversão das relações, com as ambições hegemónicas, os abusos de poder, com o medo do outro e a diferença vista como obstáculo». A guerra não é um fantasma do passado, mas tornou-se uma ameaça constante. O mundo está a encontrar cada vez mais dificuldade no lento caminho da paz que empreendera e começava a dar alguns frutos.
257. Dado que se estão a criar novamente as condições para a proliferação de guerras, lembro que «a guerra é a negação de todos os direitos e uma agressão dramática ao meio ambiente. Se se quiser um desenvolvimento humano integral autêntico para todos, é preciso continuar incansavelmente no esforço de evitar a guerra entre as nações e os povos. Para isso, é preciso garantir o domínio incontrastado do direito e o recurso incansável às negociações, aos mediadores e à arbitragem, como é proposto pela Carta das Nações Unidas, verdadeira norma jurídica fundamental». Quero destacar que os 75 anos de existência das Nações Unidas e a experiência dos primeiros 20 anos deste milénio mostram que a plena aplicação das normas internacionais é realmente eficaz e que a sua inobservância é nociva. A Carta das Nações Unidas, respeitada e aplicada com transparência e sinceridade, é um ponto de referência obrigatório de justiça e um veículo de paz. Mas isto pressupõe não disfarçar intenções ilícitas nem colocar os interesses particulares de um país ou grupo acima do bem comum mundial. Se a norma é considerada um instrumento que se usa quando resulta favorável e se contorna quando não o é, desencadeiam-se forças incontroláveis que causam grande dano às sociedades, aos mais frágeis, à fraternidade, ao meio ambiente e aos bens culturais, com perdas irrecuperáveis para a comunidade global.
258. Deste modo facilmente se opta pela guerra valendo-se de todo o tipo de desculpas aparentemente humanitárias, defensivas ou preventivas, recorrendo-se mesmo à manipulação da informação. De facto, nas últimas décadas, todas as guerras pretenderam ter uma «justificação». O Catecismo da Igreja Católica fala da possibilidade duma legítima defesa por meio da força militar, o que supõe demonstrar a existência de algumas «condições rigorosas de legitimidade moral». Mas cai-se facilmente numa interpretação demasiado larga deste possível direito. Assim, pretende-se indevidamente justificar inclusive ataques «preventivos» ou ações bélicas que dificilmente não acarretem «males e desordens mais graves do que o mal a eliminar». A questão é que, a partir do desenvolvimento das armas nucleares, químicas e biológicas e das enormes e crescentes possibilidades que oferecem as novas tecnologias, conferiu-se à guerra um poder destrutivo incontrolável, que atinge muitos civis inocentes. É verdade que «nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem». Assim, já não podemos pensar na guerra como solução, porque provavelmente os riscos sempre serão superiores à hipotética utilidade que se lhe atribua. Perante esta realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar duma possível «guerra justa». Nunca mais a guerra!
259. É importante acrescentar que, com o desenvolvimento da globalização, aquilo que pode aparecer como uma solução imediata ou prática para uma região da terra, desencadeia uma corrente de fatores violentos, muitas vezes subterrâneos, que acabam por atingir todo o planeta e abrir caminho para novas e piores guerras futuras. No nosso mundo, já não existem só «pedaços» de guerra num país ou noutro, mas vive-se uma «guerra mundial aos pedaços», porque os destinos dos países estão intensamente ligados entre si no cenário mundial.
260. Como dizia São João XXIII, «não é mais possível pensar que nesta nossa era atómica a guerra seja um meio apto para ressarcir direitos violados». Afirmava-o num período de forte tensão internacional, manifestando assim o grande anseio de paz que se difundia nos tempos da guerra fria. Reforçou a convicção de que as razões da paz são mais fortes do que todo o cálculo de interesses particulares e toda a confiança posta no uso das armas. Mas, por falta duma visão de futuro e duma consciência compartilhada sobre o nosso destino comum, não se exploraram adequadamente as oportunidades que oferecia o fim da guerra fria. Em vez disso, cedeu-se à busca de interesses particulares, sem se preocupar com o bem comum universal. Assim irrompeu novamente o fantasma enganador da guerra.
261. Toda a guerra deixa o mundo pior do que o encontrou. A guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota perante as forças do mal. Não fiquemos em discussões teóricas, tomemos contacto com as feridas, toquemos a carne de quem paga os danos. Voltemos o olhar para tantos civis massacrados como «danos colaterais». Interroguemos as vítimas. Prestemos atenção aos prófugos, àqueles que sofreram as radiações atómicas ou os ataques químicos, às mulheres que perderam os filhos, às crianças mutiladas ou privadas da sua infância. Consideremos a verdade destas vítimas da violência, olhemos a realidade com os seus olhos e escutemos as suas histórias com o coração aberto. Assim poderemos reconhecer o abismo do mal no coração da guerra, e não nos turvará o facto de nos tratarem como ingénuos porque escolhemos a paz.
262. Tampouco serão suficientes as normas, se se pensa que a solução para os problemas atuais consiste em dissuadir os outros através do medo, ameaçando-os com o uso de armas nucleares, químicas ou biológicas. Com efeito, «se tomarmos em consideração as principais ameaças contra a paz e a segurança com as suas múltiplas dimensões neste mundo multipolar do século XXI, como, por exemplo, o terrorismo, os conflitos assimétricos, a segurança informática, os problemas ambientais, a pobreza, muitas dúvidas emergem acerca da insuficiência da dissuasão nuclear para responder de modo eficaz a tais desafios. Estas preocupações assumem ainda mais consistência quando consideramos as catastróficas consequências humanitárias e ambientais que derivam de qualquer utilização das armas nucleares com efeitos devastadores indiscriminados e incontroláveis no tempo e no espaço. (…) Devemos perguntar-nos também quanto seja sustentável um equilíbrio baseado no medo, quando de facto ele tende a aumentar o temor e a ameaçar as relações de confiança entre os povos. A paz e a estabilidade internacionais não podem ser fundadas num falso sentido de segurança, na ameaça de uma destruição recíproca ou de um aniquilamento total, na manutenção de um equilíbrio de poder. (…) Em tal contexto, o objetivo final da eliminação total das armas nucleares torna-se um desafio mas também um imperativo moral e humanitário. (...) A crescente interdependência e a globalização significam que a resposta que se der à ameaça de armas nucleares deve ser coletiva e planeada, baseada na confiança recíproca, que só pode ser construída através do diálogo sinceramente dirigido para o bem comum e não para a tutela de interesses velados ou particulares». E, com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo mundial, para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem precisem de abandonar os seus países à procura duma vida mais digna.