263. Há outra maneira de eliminar o outro, não destinada aos países, mas às pessoas: é a pena de morte. São João Paulo II declarou, de forma clara e firme, que a mesma é inadequada no plano moral e já não é necessária no plano penal. Não é possível pensar num recuo relativamente a esta posição. Hoje, afirmamos com clareza que «a pena de morte é inadmissível» e a Igreja compromete-se decididamente a propor que seja abolida em todo o mundo.
264. No Novo Testamento, ao mesmo tempo que se pede aos indivíduos para não fazerem justiça por si próprios (cf. Rm 12, 19), reconhece-se a necessidade de as autoridades imporem penas àqueles que praticam o mal (cf. Rm 13, 4; 1 Ped 2, 14). Com efeito, «a vida em comum, estruturada em volta de comunidades organizadas, precisa de regras de convivência cuja livre violação exige uma resposta adequada». Isto implica que a autoridade pública legítima possa e deva «infligir penas proporcionadas à gravidade dos delitos» e que se garanta ao poder judiciário «a necessária independência no âmbito da lei».
265. Desde os primeiros séculos da Igreja, alguns manifestaram-se claramente contrários à pena de morte. Por exemplo, Lactâncio defendia que «não há qualquer distinção que se possa fazer: sempre será crime matar um homem». O Papa Nicolau I exortava: «Esforçai-vos por livrar da pena de morte não só cada um dos inocentes, mas também todos os culpados». E, por ocasião do julgamento de alguns homicidas que assassinaram dois sacerdotes, Santo Agostinho pediu ao juiz para não tirar a vida aos assassinos, e justificava-o da seguinte maneira: «Não que pretendamos com isto impedir que se tire a indivíduos celerados a liberdade de cometer delitos, mas queremos que, para esse fim, seja suficiente que, deixando-os vivos e sem mutilá-los em parte alguma do corpo, aplicando as leis repressivas, eles sejam afastados da sua agitação insana para serem reconduzidos a uma vida salutar e pacífica, ou que, retirados das suas ações perversas, sejam ocupados nalgum trabalho útil. Também isto é uma condenação, mas quem não entenderia que se trata mais dum benefício que dum suplício, uma vez que não se deixa campo livre à audácia da ferocidade, nem se retira o remédio do arrependimento? (...) Indigna-te contra a iniquidade, mas sem esqueceres a humanidade; não dês livre curso à volúpia da vingança contra as atrocidades dos pecadores, mas pretende antes curar as suas feridas».
266. Os medos e os rancores levam facilmente a entender as penas de maneira vingativa, se não cruel, em vez de as considerar como parte dum processo de cura e reinserção na sociedade. Hoje, «tanto por parte de alguns setores da política como de certos meios de comunicação, por vezes incita-se à violência e à vingança, pública e privada, não só contra quantos são responsáveis por ter cometido delitos, mas também contra aqueles sobre os quais recai a suspeita, fundada ou não, de ter infringido a lei. (...) Há por vezes a tendência a construir deliberadamente inimigos: figuras estereotipadas, que concentram em si todas as caraterísticas que a sociedade sente ou interpreta como ameaçadoras. Os mecanismos de formação destas imagens são os mesmos que, outrora, permitiram a expansão das ideias racistas». Isso tornou particularmente perigoso o costume crescente que há, nalguns países, de recorrer a prisões preventivas, a reclusões sem julgamento e especialmente à pena de morte.
267. Quero assinalar que «é impossível imaginar que hoje os Estados não possam dispor de outro meio, que não seja a pena capital, para defender a vida de outras pessoas do agressor injusto». De particular gravidade se revestem as chamadas execuções extrajudiciais ou extralegais, que «são homicídios deliberados cometidos por alguns Estados e pelos seus agentes, com frequência feitos passar como confrontos com delinquentes, ou apresentados como consequências indesejadas do uso razoável, necessário e proporcional da força para manter e aplicar a lei».
268. «Os argumentos contrários à pena de morte são muitos e bem conhecidos. A Igreja frisou oportunamente alguns deles, como a possibilidade da existência de erro judicial e o uso que dela fazem os regimes totalitários e ditatoriais, que a utilizam como instrumento de supressão da dissidência política ou perseguição das minorias religiosas e culturais, todas vítimas que, para as suas respetivas legislações, são “delinquentes”. Por conseguinte, todos os cristãos e homens de boa vontade estão chamados hoje a lutar não só pela abolição da pena de morte, legal ou ilegal, em todas as suas formas, mas também para melhorar as condições carcerárias, no respeito pela dignidade humana das pessoas privadas da liberdade. E relaciono isto com a prisão perpétua. (...) A prisão perpétua é uma pena de morte escondida».
269. Lembremos que «nem sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o próprio Deus Se constitui seu garante». A rejeição firme da pena de morte mostra até que ponto é possível reconhecer a dignidade inalienável de todo o ser humano e aceitar que tenha um lugar neste universo. Visto que não o nego ao pior dos criminosos, não o negarei a ninguém, darei a todos a possibilidade de compartilhar comigo este planeta, apesar do que nos possa separar.
270. Aos cristãos que hesitam e se sentem tentados a ceder a qualquer forma de violência, convido-os a lembrar este anúncio do livro de Isaías: «transformarão as suas espadas em relhas de arado» (2, 4). Para nós, esta profecia encarna em Jesus Cristo, que, ao ver um discípulo excitado pela violência, lhe disse com firmeza: «Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada, morrerão à espada» (Mt 26, 52). Era um eco daquela antiga admoestação: «Ao homem, pedirei contas da vida do homem, seu irmão. A quem derramar o sangue do homem, pela mão do homem será derramado o seu» (Gn 9, 5-6). Esta reação de Jesus, que brotou espontaneamente do seu coração, supera a distância dos séculos e chega até hoje como um apelo incessante.