191. Há um outro modo complementar de entender a reparação, que nos permite colocá-la numa relação ainda mais direta com o Coração de Cristo, sem excluir desta reparação o compromisso concreto com os irmãos, do qual falámos.
192. Num outro contexto, afirmei que Deus «de certa maneira, quis limitar-Se a Si mesmo» e que «muitas coisas que consideramos males, perigos ou fontes de sofrimento, na realidade fazem parte das dores de parto que nos estimulam a colaborar com o Criador» [205]. A nossa cooperação pode permitir que o poder e o amor de Deus se difundam nas nossas vidas e no mundo, e a rejeição ou a indiferença podem impedi-lo. Algumas expressões bíblicas exprimem-no metaforicamente, como quando o Senhor grita: «Se te queres converter, Israel, volta para mim» ( Jr 4, 1). Ou quando diz, perante a rejeição do seu povo: «O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas» ( Os 11, 8).
193. Embora não seja possível falar de um novo sofrimento de Cristo glorioso, «o mistério pascal de Cristo […] e tudo o que Cristo é, tudo o que fez e sofreu por todos os homens, participa da eternidade divina, e assim transcende todos os tempos e em todos se torna presente». Deste modo, podemos dizer que Ele mesmo aceitou limitar a glória expansiva da sua ressurreição, conter a difusão do seu imenso e ardente amor para dar lugar à nossa livre cooperação com o seu Coração. Isto é tão real que a nossa recusa o detém nesse impulso de doação, tal como a nossa confiança e a oferta de nós próprios abre um espaço, oferece um canal desimpedido para a efusão do seu amor.A nossa rejeição ou indiferença limitam os efeitos do seu poder e a fecundidade do seu amor em nós. Se Ele não encontra em mim confiança e abertura, o seu amor fica privado – porque Ele mesmo assim o quis – do seu prolongamento na minha vida, que é única e irrepetível, e no mundo onde me chama a torná-lo presente. Isso não vem da sua fragilidade, mas da sua liberdade infinita, do seu poder paradoxal e da perfeição do seu amor por cada um de nós. Quando a omnipotência de Deus se manifesta na fraqueza da nossa liberdade, «só a fé a pode descobrir».
194. Com efeito, Santa Margarida conta que, numa das manifestações de Cristo, Ele lhe falou do seu Coração apaixonado de amor por nós, que «não podendo já conter em si as chamas da sua ardente caridade, precisa derramá-las». Uma vez que o Senhor todo-poderoso, na sua liberdade divina, quis ter necessidade de nós, a reparação entende-se como o remover dos obstáculos que colocamos à expansão do amor de Cristo no mundo, com as nossas faltas de confiança, gratidão e entrega.
A OFERTA AO AMOR
195. Para refletir melhor sobre este mistério, socorremo-nos novamente da luminosa espiritualidade de Santa Teresa do Menino Jesus. Ela sabia que algumas pessoas tinham desenvolvido uma forma extrema de reparação, com a boa vontade de se dar pelos outros, que consistia em oferecer-se como uma espécie de “para-raios” a fim de que a justiça divina se realizasse: «Pensei nas almas que se oferecem como vítimas à Justiça de Deus, a fim de desviarem e de atraírem sobre elas os castigos reservados aos culpados». Mas, por muito admirável que tal oferta possa parecer, ela não está muito convencida disso:«Estava longe de me sentir impelida a fazê-lo». Esta insistência na justiça divina acaba por levar a pensar que o sacrifício de Cristo fosse incompleto ou parcialmente eficaz, ou que a sua misericórdia não fosse suficientemente intensa.
196. Com a sua intuição espiritual, Santa Teresa do Menino Jesus descobriu que existe uma outra maneira de se oferecer, em que não é necessário saciar a justiça divina, mas deixar o amor infinito do Senhor difundir-se sem entraves: «Ó meu Deus! O vosso Amor desprezado vai ficar no vosso Coração? Estou convencida de que se encontrásseis almas que se oferecessem como vítimas de holocausto ao vosso Amor, as consumiríeis rapidamente. Creio que ficaríeis contente por não reprimirdes as ondas de infinita ternura que há em Vós».
197. Não há nada a acrescentar ao único sacrifício redentor de Cristo, mas é verdade que a recusa da nossa liberdade não permite que o Coração de Cristo espalhe as suas “ondas de infinita ternura” neste mundo. E isto porque o próprio Senhor quer respeitar esta possibilidade. Foi isto, mais do que a justiça divina, que inquietou o coração de Santa Teresa do Menino Jesus, pois para ela a justiça só pode ser compreendida à luz do amor. Vimos que ela adorava todas as perfeições divinas através da misericórdia, e assim as via transfiguradas, radiantes de amor, dizendo: «A própria Justiça (e talvez mais ainda que qualquer outra) me parece revestida de amor».
198. Deste modo, nasce o seu ato de oferecimento, não à justiça divina, mas ao Amor misericordioso: «Ofereço-me como vítima de holocausto ao vosso amor misericordioso, suplicando-vos que me consumais sem cessar, deixando transbordar para a minha alma as ondas de ternura infinita que estão encerradas em Vós, e que assim eu me torne mártir do vosso Amor, ó meu Deus!». É importante notar que não se trata apenas de deixar que o Coração de Cristo difunda a beleza do seu amor no nosso coração, através de uma confiança total, mas também que, através da própria vida, chegue aos outros e transforme o mundo: «No coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o Amor [...], assim o meu sonho será realizado». Os dois aspectos estão inseparavelmente ligados.
199. O Senhor aceitou a sua oferta. Com efeito, algum tempo depois, ela própria exprimiu um amor intenso pelos outros, afirmando que este provinha do Coração de Cristo que se prolongava através dela. Assim, escrevia a sua irmã Leónia: «Amo-te mil vezes mais ternamente do que habitualmente se amam as irmãs, visto que posso amar-te com o Coração do nosso Celeste Esposo». E mais tarde, escreveu a Maurice Bellière: «Como eu queria fazer-vos compreender a ternura do Coração de Jesus, o que Ele espera de vós!».
INTEGRIDADE E HARMONIA
200. Irmãs e irmãos, proponho que desenvolvamos esta forma de reparação, que é, em última análise, oferecer ao Coração de Cristo uma nova possibilidade de difundir neste mundo as chamas da sua ternura ardente. Se é verdade que a reparação implica o desejo de «desagravar o Amor incriado da injustiça que lhe infligem tantas negligências, e esquecimentos e injúrias», o modo mais adequado é que o nosso amor, em troca daqueles momentos em que foi rejeitado ou negado, dê ao Senhor a possibilidade de se dilatar. Isto acontece se o nosso amor ultrapassa a mera “consolação” a Cristo, de que falámos no capítulo anterior, e se transforma em atos de amor fraterno com os quais curamos as feridas da Igreja e do mundo. Deste modo, oferecemos novas expressões da força restauradora do Coração de Cristo.
201. As renúncias e os sofrimentos exigidos por estes atos de amor ao próximo unem-nos à paixão de Cristo, e sofrendo com Cristo «nesta mística crucifixão de que fala o Apóstolo, com ainda maior abundância receberemos, para nós e para os outros, frutos de propiciação e de indulgência». Só Cristo salva pela sua entrega na cruz por nós, só Ele redime, «pois há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, um homem: Cristo Jesus, que se entregou a si mesmo como resgate por todos» ( 1 Tm 2, 5-6). A reparação que oferecemos é uma participação, que aceitamos livremente, no seu amor redentor e no seu único sacrifício. Assim, completamos na nossa carne «o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja» ( Cl 1, 24) e é o próprio Cristo que prolonga através de nós os efeitos da sua doação total no amor.
202. Os sofrimentos têm muitas vezes a ver com o nosso ego ferido, mas é precisamente a humildade do Coração de Cristo que nos indica o caminho do abaixamento. Deus quis vir até nós humilhando-Se, fazendo-Se pequeno. Já o Antigo Testamento nos ensina isso, através das várias metáforas que mostram um Deus que entra na pequenez da história e se deixa rejeitar pelo seu povo. O seu amor mistura-se com a vida quotidiana do povo amado e torna-se mendigo de uma resposta, como se pedisse licença para mostrar a sua glória. Por outro lado, «talvez uma só vez, com palavras suas, tenha o Senhor Jesus apelado para o seu coração. E salientou este único traço: “mansidão e humildade”. Como se dissesse que só por este caminho quer conquistar o homem». Quando Cristo disse: «Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração» ( Mt 11, 29), indicou que «para se exprimir necessita da nossa pequenez, do nosso abaixamento».
203. No que dissemos, é importante notar vários aspectos inseparáveis, porque estas ações de amor ao próximo, com todas as renúncias, abnegações, sofrimentos e fadigas que implicam, cumprem esta função quando são alimentadas pela caridade do próprio Cristo. Ele permite-nos amar como Ele amou e, assim, Ele próprio ama e serve através de nós. Se, por um lado, parece apequenar-se, aniquilar-se, porque quis manifestar o seu amor mediante os nossos gestos, por outro lado, nas mais simples obras de misericórdia, o seu Coração é glorificado e manifesta toda a sua grandeza. Um coração humano que dá espaço ao amor de Cristo através duma confiança total e o deixa expandir-se na sua própria vida com o seu fogo, torna-se capaz de amar os outros como Cristo, tornando-se pequeno e próximo de todos. Assim Cristo sacia a sua sede e espalha gloriosamente, em nós e através de nós, as chamas da sua ternura ardente. Reparemos na bela harmonia que existe em tudo isto.
204. Finalmente, para compreender esta devoção em toda a sua riqueza, retomando o que dissemos sobre a sua dimensão trinitária, é necessário acrescentar que a reparação de Cristo enquanto ser humano é oferecida ao Pai por obra do Espírito Santo em nós. Portanto, a nossa reparação ao Coração de Cristo dirige-se, em última análise, ao Pai, que se compraz em ver-nos unidos a Cristo quando nos oferecemos por Ele, com Ele e n’Ele.