A VIDA NA FAMÍLIA EM SENTIDO AMPLO

A VIDA NA FAMÍLIA EM SENTIDO AMPLO

187. O núcleo familiar restrito não deveria isolar-se da família alargada, onde estão os pais, os tios, os primos e até os vizinhos. Nesta família ampla, pode haver pessoas necessitadas de ajuda, ou pelo menos de companhia e gestos de carinho, ou pode haver grandes sofrimentos que precisam de conforto. Às vezes o individualismo destes tempos leva a fechar-se na segurança dum pequeno ninho e a sentir os outros como um incómodo. Todavia este isolamento não proporciona mais paz e felicidade, antes fecha o coração da família e priva-a do horizonte amplo da existência.

 

SER FILHO

 

188. Em primeiro lugar, falemos dos pais próprios. Jesus lembrava aos fariseus que o abandono dos pais é contrário à Lei de Deus (cf. Mc 7, 8-13). Não faz bem a ninguém perder a consciência de ser filho. Em cada pessoa, «mesmo quando se torna adulta ou idosa, quando passa também a ser progenitora ou desempenha funções de responsabilidade, por baixo de tudo isso permanece a identidade de filho. Todos somos filhos. E isto recorda-nos sempre que a vida não no-la demos sozinhos, mas recebemo-la. O grande dom da vida é o primeiro presente que recebemos».

 

189. Por isso, «o quarto mandamento pede aos filhos (…) que honrem o pai e a mãe (cf. Ex 20, 12). Este mandamento vem logo após aqueles que dizem respeito ao próprio Deus. Com efeito, contém algo de sagrado, algo de divino, algo que está na raiz de todos os outros tipos de respeito entre os homens. E, na formulação bíblica do quarto mandamento, acrescenta-se: “para que se prolonguem os teus dias sobre a terra que o Senhor, teu Deus, te dá”. O vínculo virtuoso entre as gerações é garantia de futuro e de uma história verdadeiramente humana. Uma sociedade de filhos que não honram os pais é uma sociedade sem honra (...). É uma sociedade destinada a encher-se de jovens áridos e ávidos».

 

190. Mas há também a outra face da moeda: «O homem deixará o pai e a mãe» (Gn 2, 24), diz a Palavra de Deus. Às vezes, isto não é cumprido, nunca se chegando a assumir o matrimónio, porque falta esta renúncia e esta dedicação. Os pais não devem ser abandonados nem transcurados, mas, para unir-se em matrimónio, é preciso deixá-los, de modo que o novo lar seja a morada, a protecção, a plataforma e o projecto, e seja possível tornar-se verdadeiramente «uma só carne» (Gn 2, 24). Sucede, em alguns casais, ocultar ao próprio cônjuge muitas coisas, que entretanto se dizem aos pais, chegando ao ponto de se importar mais com as opiniões destes do que com os sentimentos e as opiniões do cônjuge. Não é fácil manter esta situação por muito tempo, e só provisoriamente poderia ter lugar, isto é, enquanto se criam as condições para crescer na confiança e no diálogo. O matrimónio desafia a encontrar uma nova maneira de ser filho.

 

OS IDOSOS

 

191. «Não me rejeites no tempo da velhice; não me abandones, quando já não tiver forças» (Sl 71/70, 9). É o brado do idoso, que teme o esquecimento e o desprezo. Assim como Deus nos convida a ser seus instrumentos para escutar a súplica dos pobres, assim também espera que ouçamos o brado dos idosos. Isto interpela as famílias e as comunidades, porque «a Igreja não pode nem quer conformar-se com uma mentalidade de impaciência, e muito menos de indiferença e desprezo, em relação à velhice. Devemos despertar o sentido colectivo de gratidão, apreço, hospitalidade, que faça o idoso sentir-se parte viva da sua comunidade. Os idosos são homens e mulheres, pais e mães que, antes de nós, percorreram o nosso próprio caminho, estiveram na nossa mesma casa, combateram a nossa mesma batalha diária por uma vida digna». Por isso, «como gostaria duma Igreja que desafia a cultura do descarte com a alegria transbordante dum novo abraço entre jovens e idosos!»

 

192. São João Paulo II convidou-nos a prestar atenção ao lugar do idoso na família, porque há culturas que, «especialmente depois dum desenvolvimento industrial e urbanístico desordenado, forçaram, e continuam a forçar, os idosos a situações inaceitáveis de marginalização». Os idosos ajudam a perceber «a continuidade das gerações», com «o carisma de lançar uma ponte» entre elas. Muitas vezes são os avós que asseguram a transmissão dos grandes valores aos seus netos, e «muitas pessoas podem constatar que devem a sua iniciação na vida cristã precisamente aos avós». As suas palavras, as suas carícias ou a simples presença ajudam as crianças a reconhecer que a história não começa com elas, que são herdeiras dum longo caminho e que é necessário respeitar o fundamento que as precede. Quem quebra os laços com a história terá dificuldade em tecer relações estáveis e reconhecer que não é o dono da realidade. Com efeito, «a atenção aos idosos distingue uma civilização. Numa civilização, presta-se atenção ao idoso? Há lugar para o idoso? Esta civilização irá em frente, se souber respeitar a sabedoria dos idosos».

 

193. A falta de memória histórica é um defeito grave da nossa sociedade. É a mentalidade imatura do «já está ultrapassado». Conhecer e ser capaz de tomar posição perante os acontecimentos passados é a única possibilidade de construir um futuro que tenha sentido. Não se pode educar sem memória: «Recordai os dias passados» (Heb 10, 32). As histórias dos idosos fazem muito bem às crianças e aos jovens, porque os ligam à história vivida tanto pela família como pela vizinhança e o país. Uma família que não respeita nem cuida dos seus avós, que são a sua memória viva, é uma família desintegrada; mas uma família que recorda é uma família com futuro. Por isso, «numa civilização em que não há espaço para os idosos ou onde eles são descartados porque criam problemas, tal sociedade traz em si o vírus da morte», porque «se separa das próprias raízes». O fenómeno contemporâneo de sentir-se órfão, em termos de descontinuidade, desenraizamento e perda das certezas que dão forma à vida, desafia-nos a fazer das nossas famílias um lugar onde as crianças possam lançar raízes no terreno duma história colectiva.

 

SER IRMÃO

 

194. A relação entre os irmãos aprofunda-se com o passar do tempo, e «o laço de fraternidade que se forma na família entre os filhos, quando se verifica num clima de educação para a abertura aos outros, é uma grande escola de liberdade e de paz. Em família, entre irmãos, aprendemos a convivência humana (…). Talvez nem sempre estejamos conscientes disto, mas é precisamente a família que introduz a fraternidade no mundo. A partir desta primeira experiência de fraternidade, alimentada pelos afectos e pela educação familiar, o estilo da fraternidade irradia-se como uma promessa sobre a sociedade inteira».

 

195. Crescer entre irmãos proporciona a bela experiência de cuidar uns dos outros, de ajudar e ser ajudado. Por isso, «a fraternidade na família resplandece de modo especial quando vemos a solicitude, a paciência e o carinho com que é circundado o irmãozinho ou a irmãzinha mais frágil, doente ou deficiente». Faz falta reconhecer que «ter um irmão, uma irmã que te ama é uma experiência forte, inestimável, insubstituível», mas é preciso ensinar, com paciência, os filhos a tratar-se como irmãos. Esta aprendizagem, por vezes fadigosa, é uma verdadeira escola de sociabilidade. Nalguns países, existe uma forte tendência para ter apenas um filho, pelo que a experiência de ser irmão começa a ser rara. Nos casos em que não se pôde ter mais de um filho, é preciso encontrar formas de a criança não crescer sozinha ou isolada.

 

UM CORAÇÃO GRANDE

 

196. Com efeito, além do círculo pequeno formado pelos cônjuges e seus filhos, temos a família alargada, que não pode ser ignorada. Com efeito, «o amor entre o homem e a mulher no matrimónio e, de forma derivada e ampla, o amor entre os membros da mesma família – entre pais e filhos, entre irmãos e irmãs, entre parentes e familiares – é animado e impelido por um dinamismo interior e incessante, que leva a família a uma comunhão sempre mais profunda e intensa, fundamento e alma da comunidade conjugal e familiar». Aí se integram também os amigos e as famílias amigas, e mesmo as comunidades de famílias que se apoiam mutuamente nas suas dificuldades, no seu compromisso social e na fé.

 

197. Esta família alargada deveria acolher, com tanto amor, as mães solteiras, as crianças sem pais, as mulheres abandonadas que devem continuar a educação dos seus filhos, as pessoas deficientes que requerem muito carinho e proximidade, os jovens que lutam contra uma dependência, as pessoas solteiras, separadas ou viúvas que sofrem a solidão, os idosos e os doentes que não recebem o apoio dos seus filhos, até incluir no seio dela «mesmo os mais desastrados nos comportamentos da sua vida». E pode também ajudar a compensar as fragilidades dos pais, ou a descobrir e denunciar a tempo possíveis situações de violência ou mesmo de abuso sofridas pelas crianças, dando-lhes um amor sadio e um sustentáculo familiar, quando os seus pais não o podem assegurar.

 

198. Por fim, não se pode esquecer que, nesta família alargada, estão também o sogro, a sogra e todos os parentes do cônjuge. Uma delicadeza própria do amor é evitar vê-los como concorrentes, como pessoas perigosas, como invasores. A união conjugal exige que se respeite as suas tradições e costumes, se procure compreender a sua linguagem, evitar maledicências, cuidar deles e integrá-los dalguma forma no próprio coração, embora se deva preservara legítima autonomia e a intimidade do casal. Estas atitudes são também uma excelente maneira de exprimir a generosidade da dedicação amorosa ao próprio cônjuge.

 

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