ALGUMAS RESSONÂNCIAS NA HISTÓRIA DA ESPIRITUALIDADE

ALGUMAS RESSONÂNCIAS NA HISTÓRIA DA ESPIRITUALIDADE

172. Esta união entre a devoção ao Coração de Jesus e o compromisso com os irmãos atravessa a história da espiritualidade cristã. Vejamos alguns exemplos.

 

SER UMA FONTE PARA OS OUTROS

 

173. A partir de Orígenes, vários Padres da Igreja interpretaram o texto de João 7, 38 – «hão de correr do seu coração rios de água viva» – como referindo-se ao próprio fiel, ainda que seja a consequência de ele próprio ter bebido de Cristo. Assim, a união com Cristo não tem apenas o objetivo de saciar a própria sede, mas de se tornar uma fonte de água fresca para os outros. Orígenes dizia que Cristo cumpre a sua promessa fazendo brotar em nós correntes de água: «A alma do ser humano, que é imagem de Deus, pode conter em si mesma e produzir de si mesma poços, fontes e rios».

 

174. Santo Ambrósio recomendava beber de Cristo «para que abunde em ti a fonte de água que jorra para a vida eterna». E Mário Vitorino sustentava que o Espírito Santo é dado em tal abundância que «quem o recebe torna-se um ventre que emana rios de água viva». Santo Agostinho dizia que este rio que brota do fiel é a benevolência. São Tomás de Aquino reafirmou esta ideia, afirmando que quando alguém «se apressa a comunicar aos outros os diversos dons da graça que recebeu de Deus, brota do seu ventre água viva».

 

175. Com efeito, embora «o sacrifício da cruz, oferecido com coração amante e obediente, apresenta uma satisfação superabundante e infinita pelos pecados do género humano», a Igreja, que nasce do Coração de Cristo, prolonga e comunica em todos os tempos e lugares os efeitos dessa única paixão redentora, que conduz os homens à união direta com o Senhor.

 

176. Na Igreja, a mediação de Maria, intercessora e mãe, só pode ser entendida «como participação nesta única fonte, que é a mediação do próprio Cristo», único Redentor, e «esta função subordinada de Maria, não hesita a Igreja em proclamá-la». A devoção ao coração de Maria não quer enfraquecer a adoração única devida ao Coração de Cristo, mas estimulá-la: «A função maternal de Maria em relação aos homens de modo algum ofusca ou diminui esta única mediação de Cristo; manifesta antes a sua eficácia». Graças à imensa fonte que brota do lado aberto de Cristo, a Igreja, Maria e todos os fiéis, de diferentes maneiras, tornam-se canais de água viva. Deste modo, o próprio Cristo revela a sua glória na nossa pequenez.

 

FRATERNIDADE E MÍSTICA

 

177. São Bernardo, ao mesmo tempo que convidava à união com o Coração de Cristo, aproveitava a riqueza desta devoção para propor uma mudança de vida fundada no amor. Ele acreditava que era possível uma transformação da afetividade, escravizada pelos prazeres, que não se liberta pela obediência cega a uma ordem, mas numa resposta à doçura do amor de Cristo. Supera-se o mal com o bem, vence-se o mal com o crescimento do amor: «Ama, pois, o Senhor, teu Deus, com o afeto de um coração pleno e íntegro, ama-o com toda a vigilância e circunspeção da razão, ama-o também com todas as forças, de modo que nem sequer tenhas medo de morrer por seu amor […]. Que o Senhor Jesus seja doce e suave ao teu coração, contra os prazeres carnais malignamente doces, e que a doçura vença a doçura, como um prego expulsa outro prego».

 

178. São Francisco de Sales foi especialmente iluminado pelo pedido de Jesus: «Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração» ( Mt 11, 29). Assim, dizia ele, nas coisas mais simples e ordinárias roubamos o coração do Senhor: «É necessário ter o cuidado de o servir bem seja nas coisas grandes e elevadas que nas coisas pequenas e desprezíveis, pois podemos igualmente, por estas ou por aquelas, roubar-lhe o coração por amor [...]. Estes pequenos gestos quotidianos de caridade, esta dor de cabeça, esta dor de dentes, esta indisposição, esta contrariedade do marido ou da mulher, este copo quebrado, este desprezo ou este enfado, a perda das luvas, de um anel, de um lenço, este pequeno incómodo assumido para deitar-se à boa hora e se levantar cedo para rezar, para receber a comunhão, esta pequena vergonha que se experimenta ao fazer um ato de devoção em público; em suma, todos estes pequenos sofrimentos recebidos e abraçados com amor satisfazem grandemente à Bondade divina». Mas, em última análise, a chave da nossa resposta ao amor do Coração de Cristo é o amor ao próximo: «É um amor firme, constante, imutável, que, não se detendo em ninharias, nem nas qualidades ou condições das pessoas, não está sujeito a mudanças ou animosidades [...]. Nosso Senhor ama-nos sem interrupção, suporta as nossas faltas como as nossas imperfeições; […] devemos, portanto, fazer o mesmo em relação aos nossos irmãos, jamais deixando de apoiá-los».

 

179. São Charles de Foucauld queria imitar Jesus Cristo, viver como Ele viveu, agir como Ele agiu, fazer sempre o que Jesus teria feito no seu lugar. Para realizar plenamente este objetivo, necessitava conformar-se aos sentimentos do Coração de Cristo. Assim, a expressão “amor por amor” aparece mais uma vez, quando ele diz: «Desejo de sofrimentos, para retribuir-lhe amor por amor, para imitá-lo [...] para entrar na sua obra e oferecer-me com ele, o nada que sou, em sacrifício, como vítima, para a santificação dos homens». O desejo de levar o amor de Jesus, o seu trabalho missionário entre os mais pobres e esquecidos da terra, levou-o a adotar como lema Iesus Caritas, com o símbolo do Coração de Cristo encimado por uma cruz. Não foi uma decisão superficial: «Com todas as minhas forças, procuro mostrar e provar a estes pobres irmãos perdidos que a nossa religião é toda caridade, toda fraternidade, que o seu emblema é um coração». E quis estabelecer-se com outros irmãos «em Marrocos, em nome do coração de Jesus». Deste modo, a ação evangelizadora deles seria uma irradiação: «A caridade deve irradiar das fraternidades como irradia do coração de Jesus». Este desejo fez dele, pouco a pouco, um irmão universal, porque, deixando-se plasmar pelo Coração de Cristo, quis abraçar no seu coração fraterno toda a humanidade sofredora: «O nosso coração, como o da Igreja, como o de Jesus, deve abraçar todos os homens». «O amor do coração de Jesus pelos homens, o amor que ele manifestou na sua paixão, é o amor que nós devemos ter por todos os seres humanos».

 

180. O padre Henri Huvelin, diretor espiritual de São Charles de Foucauld, dizia que «quando Nosso Senhor vive num coração, ele lhe dá esses sentimentos, e esse coração se abaixa para os pequenos. Tal foi a disposição do coração de um Vicente de Paulo […]. Quando Nosso Senhor vive na alma de um sacerdote, inclina-o para os pobres». É importante notar como esta dedicação de São Vicente, que o padre Huvelin descreve, era também alimentada pela devoção ao Coração de Cristo. São Vicente exortava a «tomar do coração de Nosso Senhor algumas palavras de consolação» para o pobre doente. Para que isso seja real, pressupõe-se que o próprio coração tenha sido transformado pelo amor e pela mansidão do Coração de Cristo, e São Vicente repetiu muito essa convicção nos seus sermões e conselhos, tanto que se tornou uma caraterística proeminente das Constituições de sua Congregação: «Todos também porão grande diligência em aprender esta lição ensinada por Cristo: “Aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração”, considerando que – como Ele mesmo afirma – com a mansidão se possui a terra, porque com o exercício desta virtude se ganham os corações dos homens para se converterem a Deus, o que não conseguem aqueles que tratam com o próximo dura e asperamente».

 

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