804. Mas ninguém, posto que justificado, se deve julgar eximido da observância dos mandamentos [cân. 20]. Ninguém deve pronunciar estas palavras temerárias, condenadas pelos Padres com anátema: é impossível ao homem justificado observar os preceitos de Deus [cân. 18 e 22]. "Porque Deus não manda coisas impossíveis, mas quando manda, adverte que faças o que possas e peças o que não possas, e ajuda a poder"5. Os seus mandamentos não são pesados (1 Jo 5, 3), o seu jugo é suave e o seu peso é leve (Mt 11, 30), pois os que são filhos de Deus, amam a Cristo, mas os que o amam guardam (como ele testifica) as suas palavras (Jo 14, 23), e podem seguramente executar isso com o auxílio de Deus. Pois, também eles nesta vida mortal, por mas santos e justos que sejam, caem às vezes pelo menos em pecados leves e quotidianos, chamados também "veniais" [cân. 23], mas com isto não deixam de ser justos. Pois é verdadeira e humilde aquela oração dos justos: Perdoai-nos as nossas dívidas (Mt 6, 12). E assim acontece que os justos tanto mais se sentem obrigados a andar pelo caminho da justiça, quanto estando já livres do pecado e feitos servos de Deus (Rom 6, 22), vivendo sóbria, justa e piedosamente (Tit 2, 12), podem progredir por meio de Jesus Cristo, por quem tiveram acesso a esta graça (Rom 5, 2). Porque Deus, os que uma vez foram justificados pela sua graça, "não os desampara a não ser que seja primeiro abandonado por eles"6. Assim, portanto, ninguém deve lisonjear-se com a fé somente [cân. 9, 19, 20], julgando estar pela fé somente constituído herdeiro e que conseguirá a herança ainda que não padeça com Cristo para ser glorificado com ele (Rom 8, 17). Pois o mesmo Cristo, (como diz o Apóstolo), embora fosse Filho de Deus, praticou, contudo, obediência pelo sofrimento, e depois de consumado, se tornou para todos os que lhe obedecem autor da salvação (Hb 5, 8 s). Por isso o mesmo Apóstolo admoesta os justificados, dizendo: Não sabeis que os que correm no estádio, correm, sim, todos, mas um só é que alcança o prêmio? Correi, pois, de modo que o alcanceis. Quanto a mim, corro, não como quem não tem meta certa, combato não como quem açoita o ar, mas castigo o meu corpo e o reduzo à escravidão, para que não suceda que, tendo eu pregado aos outros, venha eu mesmo a ser réprobo (1 Cor 9, 24 ss). De modo semelhante, fala o Príncipe dos Apóstolos, S. Pedro: Ponde cada vez mais cuidado em tornardes certa a vossa vocação e eleição por meio do boas obras, porque fazendo isto, não pecareis jamais (2 Ped 1, 10). Donde se infere que impugnam a doutrina da religião ortodoxa aqueles que dizem que o justo em todas as obras boas peca ao menos venialmente [cân. 25] ou, (o que é ainda mais intolerável), merece penas eternas; e [erram] também os que afirmam que os justos pecam em todas as obras, se, despertando de sua indolência e animando-se a correr no estádio, pondo seu intento primeiramente na glória de Deus, olham também para o prêmio eterno [cân. 26, 31], como está escrito: inclinei o meu coração para executar as vossas justificações, por amor da retribuição (Sl 118, 112); e de Moisés diz o Apóstolo: que olhava para a remuneração (Hb 11, 26).
(5) "Nam Deus imposibilia non iubet, sed iubendo monet, et facere quod possis, et petere quod non possis" Cfr. S. Agostinho, De nat. et gratia, c. 43, n. 50 (PL 44, 271).
(6) Deus "non deserit, nisi ab eis prius deseratur". Cfr. S. Agostinho, Op. Cit. C. 26, n. 29 (PL 44, 261).
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