CAPÍTULO SEGUNDO - NAS FONTES DA RECONCILIAÇÃO

CAPÍTULO SEGUNDO - NAS FONTES DA RECONCILIAÇÃO

À LUZ DE CRISTO RECONCILIADOR

 

7. Como se deduz da parábola do filho pródigo, a reconciliação é um dom de Deus e uma iniciativa sua. Mas a nossa fé ensina-nos que esta iniciativa se concretiza no mistério de Cristo redentor e reconciliador, que liberta o homem do pecado sob todas as suas formas. O próprio São Paulo não hesita em resumir em tal tarefa e função a incomparável missão de Jesus de Nazaré, Verbo e Filho de Deus feito homem.

 

Também nós podemos partir deste mistério central da economia da salvação e ponto-chave da cristologia do Apóstolo. «Se, de facto, sendo nós inimigos, fomos reconciliados com Deus, mediante a morte do Seu Filho — escreve ele aos Romanos — muito mais, agora que estamos reconciliados, seremos salvos pela sua vida. E não só isto; mas também nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual, agora, obtivemos a reconciliação». Sendo assim, uma vez que «Deus nos reconciliou consigo por meio de Cristo» Paulo sente-se inspirado a exortar os cristãos de Corinto: «Reconciliai-vos com Deus».

 

De tal missão reconciliadora mediante a morte na Cruz, falava noutros termos o evangelista João, ao observar que Cristo devia morrer «para que fossem reconduzidos à unidade os filhos de Deus que andavam dispersos».

 

São Paulo permite-nos, ainda, alargar a nossa visão da obra de Cristo a dimensões cósmicas, quando escreve que n'Ele o Pai reconciliou consigo todas as criaturas, as do céu e as da terra. Pode dizer-se de Cristo Redentor, justamente, que «no tempo da ira foi feito reconciliação», e que, se Ele é «a nossa paz», é também a nossa reconciliação.

 

É com toda a razão que a sua paixão e morte, sacramentalmente renovadas na Eucaristia, são chamadas pela Liturgia «sacrifício de reconciliação»: reconciliação com Deus e com os irmãos, dado que o próprio Jesus ensina que a reconciliação fraterna deve realizar-se antes do sacrifício.

 

A partir destas e de outras significativas passagens do Novo Testamento, é legitimo, portanto, fazer convergir as reflexões sobre todo o mistério de Cristo, em torno da sua missão de Reconciliador. Há que proclamar, portanto, mais uma vez, a fé da Igreja no acto redentor de Cristo, no mistério pascal da sua morte e ressurreição, enquanto causa da reconciliação do homem, no seu duplo aspecto de libertação do pecado e de comunhão de graça com Deus.

 

E exactamente perante o quadro doloroso das divisões e das dificuldades da reconciliação entre os homens, convido a olhar para o mistério da Cruz («mysterium Crucis»), como para o drama mais alto, no qual Cristo conhece e sofre profundamente o drama da divisão do homem em relação a Deus, ao ponto de clamar com o Salmista: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?»; (30) e realiza ao mesmo tempo a nossa reconciliação. O olhar fixo no mistério do Gólgota deve fazer-nos recordar sempre aquela dimensão «vertical» da divisão e da reconciliação, que diz respeito à relação homem-Deus, e que, numa visão de fé, prevalece sempre sobre a dimensão «horizontal», isto é, sobre a realidade da divisão e sobre a necessidade da reconciliação entre os homens. Sabemos, de facto, que tal reconciliação entre os homens não é e não pode ser senão o fruto do acto redentor de Cristo, morto e ressuscitado para destroçar o reino do pecado, restabelecer a aliança com Deus e abater assim o muro de separação, que o pecado tinha erguido entre os homens.

 

A IGREJA RECONCILIADORA

 

8. Mas — como dizia São Leão Magno, ao falar, da paixão de Cristo — «tudo aquilo que o Filho de Deus fez e ensinou para a reconciliação do mundo, nós não o conhecemos somente pela história das suas acções passadas, mas sentimo-lo, também, na eficácia do que Ele realiza no presente». Sentimos a reconciliação, operada na sua humanidade, na eficácia dos sagrados mistérios celebrados pela sua Igreja, pela qual Ele se entregou a si mesmo, constituindo-a sinal e, conjuntamente, instrumento de salvação. é isto que afirma São Paulo, ao escrever que Deus deu aos Apóstolos de Cristo uma participação na sua obra reconciliadora. «Deus - diz ele - confiou-nos o ministério da reconciliação ... as palavras da reconciliação».

 

Nas mãos e na boca dos Apóstolos, seus mensageiros, o Pai depôs misericordiosamente um ministério de reconciliação, que eles exercem de maneira singular, em virtude do poder de agir «in persona Christi». Mas também a toda a comunidade dos fiéis, à inteira estrutura da Igreja, é confiada a mensagem da reconciliação, ou seja, a obrigação de fazer todo o possível para testemunhar a reconciliação e para a actuar no mundo.

 

Pode dizer-se que também o Concílio Vaticano II, ao definir a Igreja como «sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano», e ao indicar como sua função própria a de obter a «plena unidade em Cristo» para os «homens, hoje mais intimamente ligados por vários vínculos», reconhecia que a mesma Igreja deve tender, sobretudo, para reconduzir os homens à plena reconciliação.

 

Em íntima conexão com a missão de Cristo, a missão da Igreja, assaz rica e complexa, pode, portanto, resumir-se na tarefa, central para ela, da reconciliação do homem: com Deus, consigo mesmo, com os irmãos e com toda a criação; e isto de maneira permanente, porque — como já disse uma outra vez — «a Igreja é, por sua natureza, sempre reconciliadora».

 

A Igreja é reconciliadora, na medida em que proclama a mensagem da reconciliação, como sempre fez na sua história, desde o Concílio apostólico de Jerusalém até ao último Sínodo dos Bispos e ao recente Jubileu da Redenção. A originalidade desta proclamação está no facto de que, para a Igreja, a reconciliação está estreitamente ligada à conversão do coração: é esta a via necessária para o entendimento entre os seres humanos.

 

A Igreja é reconciliadora, ainda, na medida em que mostra ao homem os caminhos e lhe oferece os meios para a referida reconciliação em quatro dimensões. Os caminhos são exactamente os da conversão do coração e da vitória sobre o pecado, seja ele o egoísmo ou a injustiça, a prepotência ou a exploração de outrem, o apego aos bens materiais ou a busca desenfreada do prazer. Os meios são os da fiel e amorosa escuta da Palavra de Deus, da oração pessoal e comunitária e, sobretudo, dos Sacramentos, verdadeiros sinais e instrumentos de reconciliação, entre os quais sobressai, precisamente sob este aspecto, aquele a que, com razão, costumamos chamar o Sacramento da Reconciliação ou da Penitência, ao qual voltarei em seguida.

 

A IGREJA RECONCILIADA

 

9. O meu venerável Predecessor Paulo VI teve o mérito de esclarecer que, para ser evangelizadora, a Igreja deve começar por se mostrar ela própria evangelizada, isto é, aberta ao anúncio pleno e integral da Boa Nova de Jesus Cristo, para a escutar e pôr em prática. Também eu, coligindo num documento orgânico as reflexões da IV Assembleia Geral do Sínodo, falei de uma Igreja que se catequiza na medida em que faz catequese.

 

Não hesito agora em retomar, aqui neste ponto, o paralelismo, porquanto ele se aplica ao tema que estou a tratar, para afirmar que a Igreja, para ser reconciliadora, deve começar por ser uma Igreja reconciliada. Nesta expressão simples e linear está subjacente a convicção de que a Igreja, para anunciar e propôr de modo cada vez mais eficaz ao mundo a reconciliação, deve tornar-se cada vez mais uma comunidade (ainda que fosse o «pequeno rebanho» dos primeiros tempos) de discípulos de Cristo, unidos no empenho em se converterem continuamente ao Senhor e em viverem como homens novos no espírito e na prática da reconciliação.

 

Perante os nossos contemporâneos, tão sensíveis à prova dos testemunhos concretos de vida, a Igreja é chamada a dar o exemplo da reconciliação, antes de mais no seu interior; e para isto, todos devemos esforçar-nos por apaziguar os ânimos, moderar as tensões, superar as divisões, sanar as feridas eventualmente infligidas entre irmãos, quando se agudiza o contraste entre opções no campo do opinável, e procurar de preferência estar unidos naquilo que é essencial para a fé e a vida cristã, segundo a antiga máxima: In dubiis libertas, in necessariis unitas, in omnibus caritas (liberdade naquilo que é duvidoso, unidade no que é necessário e caridade em todas as coisas).

 

É segundo este mesmo critério, que a Igreja deve actuar também no que se refere à sua dimensão ecuménica. De facto, para ser inteiramente reconciliada, a Igreja sabe que deve prosseguir na busca da unidade entre aqueles que se prezam de chamar-se cristãos, mas se encontram separados entre si, mesmo como Igrejas ou Comunhões, e da Igreja de Roma. Esta procura uma unidade que, para ser fruto e expressão de verdadeira reconciliação, não quer seja fundamentada nem na dissimulação dos aspectos que dividem, nem em compromissos tão fáceis quanto superficiais e frágeis. A unidade deve ser o resultado de uma verdadeira conversão de todos, do perdão recíproco, do diálogo teológico e das relações fraternais, da oração e da plena docilidade à acção do Espírito Santo, que é também Espírito de reconciliação.

 

Por fim, a Igreja, para poder dizer-se plenamente reconciliada, sente o dever de se aplicar cada vez mais em levar o Evangelho a todos os povos, promovendo o «diálogo da salvação» com aqueles vastos sectores da humanidade que, no mundo contemporâneo, não compartilham a sua fé e que, devido a um crescente secularismo, até mesmo se mantêm distantes dela e lhe opõem uma indiferença fria, quando não a hostilizam e perseguem. A Igreja sente o dever de repetir a todos com São Paulo: «Reconciliai-vos com Deus».

 

Em qualquer caso, a Igreja promove uma reconciliação na verdade, pois sabe bem que não são possíveis nem a reconciliação nem a unidade, fora ou contra a verdade.

 

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