CONHECIMENTO DA VERDADE E AMOR

CONHECIMENTO DA VERDADE E AMOR

26. Nesta situação, poderá a fé cristã prestar um serviço ao bem comum relativamente à maneira correcta de entender a verdade? Para termos uma resposta, é necessário reflectir sobre o tipo de conhecimento próprio da fé. Pode ajudar-nos esta frase de Paulo: « Acredita-se com o coração » ( Rm 10, 10). Este, na Bíblia, é o centro do homem, onde se entrecruzam todas as suas dimensões: o corpo e o espírito, a interioridade da pessoa e a sua abertura ao mundo e aos outros, a inteligência, a vontade, a afectividade. O coração pode manter unidas estas dimensões, porque é o lugar onde nos abrimos à verdade e ao amor, deixando que nos toquem e transformem profundamente. A fé transforma a pessoa inteira, precisamente na medida em que ela se abre ao amor; é neste entrelaçamento da fé com o amor que se compreende a forma de conhecimento própria da fé, a sua força de convicção, a sua capacidade de iluminar os nossos passos. A fé conhece na medida em que está ligada ao amor, já que o próprio amor traz uma luz. A compreensão da fé é aquela que nasce quando recebemos o grande amor de Deus, que nos transforma interiormente e nos dá olhos novos para ver a realidade.

 

27. É conhecido o modo como o filósofo Ludwig Wittgenstein explicou a ligação entre a fé e a certeza. Segundo ele, acreditar seria comparável à experiência do enamoramento, concebida como algo de subjectivo, impossível de propor como verdade válida para todos. De facto, aos olhos do homem moderno, parece que a questão do amor não teria nada a ver com a verdade; o amor surge, hoje, como uma experiência ligada, não à verdade, mas ao mundo inconstante dos sentimentos.

 

Mas, será esta verdadeiramente uma descrição adequada do amor? Na realidade, o amor não se pode reduzir a um sentimento que vai e vem. É verdade que o amor tem a ver com a nossa afectividade, mas para a abrir à pessoa amada, e assim iniciar um caminho que faz sair da reclusão no próprio eu e dirigir-se para a outra pessoa, a fim de construir uma relação duradoura; o amor visa a união com a pessoa amada. E aqui se manifesta em que sentido o amor tem necessidade da verdade: apenas na medida em que o amor estiver fundado na verdade é que pode perdurar no tempo, superar o instante efémero e permanecer firme para sustentar um caminho comum. Se o amor não tivesse relação com a verdade, estaria sujeito à alteração dos sentimentos e não superaria a prova do tempo. Diversamente, o amor verdadeiro unifica todos os elementos da nossa personalidade e torna-se uma luz nova que aponta para uma vida grande e plena. Sem a verdade, o amor não pode oferecer um vínculo sólido, não consegue arrancar o « eu » para fora do seu isolamento, nem libertá-lo do instante fugidio para edificar a vida e produzir fruto.

 

Se o amor tem necessidade da verdade, também a verdade precisa do amor; amor e verdade não se podem separar. Sem o amor, a verdade torna-se fria, impessoal, gravosa para a vida concreta da pessoa. A verdade que buscamos, a verdade que dá significado aos nossos passos, ilumina-nos quando somos tocados pelo amor. Quem ama, compreende que o amor é experiência da verdade, compreende que é precisamente ele que abre os nossos olhos para verem a realidade inteira, de maneira nova, em união com a pessoa amada. Neste sentido, escreveu São Gregório Magno que o próprio amor é um conhecimento, traz consigo uma lógica nova. Trata-se de um modo relacional de olhar o mundo, que se torna conhecimento partilhado, visão na visão do outro e visão comum sobre todas as coisas. Na Idade Média, Guilherme de Saint Thierry adopta esta tradição, ao comentar um versículo do Cântico dos Cânticos no qual o amado diz à amada: « Como são lindos os teus olhos de pomba! » (Ct 1, 15). [21] Estes dois olhos — explica Saint Thierry — são a razão crente e o amor, que se tornam um único olhar para chegar à contemplação de Deus, quando a inteligência se faz « entendimento de um amor iluminado ».

 

28. Esta descoberta do amor como fonte de conhecimento, que pertence à experiência primordial de cada homem, encontra uma expressão categorizada na concepção bíblica da fé. Israel, saboreando o amor com que Deus o escolheu e gerou como povo, chega a compreender a unidade do desígnio divino, desde a origem à sua realização. O conhecimento da fé, pelo facto de nascer do amor de Deus que estabelece a Aliança, é conhecimento que ilumina um caminho na história. É por isso também que, na Bíblia, verdade e fidelidade caminham juntas: o Deus verdadeiro é o Deus fiel, Aquele que mantém as suas promessas e permite, com o decorrer do tempo, compreender o seu desígnio. Através da experiência dos profetas, no sofrimento do exílio e na esperança de um regresso definitivo à Cidade Santa, Israel intuiu que esta verdade de Deus se estendia mais além da própria história, abraçando a história inteira do mundo a começar da criação. O conhecimento da fé ilumina não só o caminho particular de um povo, mas também o percurso inteiro do mundo criado, desde a origem até à sua consumação.

 

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