90. Em Medellín, os Bispos pronunciaram-se a favor da opção preferencial pelos pobres: «Cristo, nosso Salvador, não só amou aos pobres, mas também, “sendo rico se fez pobre”, viveu na pobreza, centralizando sua missão no anúncio da libertação aos pobres e fundou sua Igreja como sinal dessa pobreza entre os homens. […] A pobreza de tantos irmãos clama por justiça, solidariedade, testemunho, compromisso, esforço e superação para o cumprimento pleno da missão salvífica confiada por Cristo». Os Bispos afirmaram com veemência que a Igreja, para ser plenamente fiel à sua vocação, não deve apenas compartilhar a condição dos pobres, mas colocar-se também ao lado deles e empenhar-se ativamente pela sua promoção integral. A Conferência de Puebla, diante do agravamento da miséria na América Latina, confirmou a decisão de Medellín com uma opção franca e profética a favor dos pobres e qualificou as estruturas de injustiça como “pecado social”.
91. A caridade é uma força que muda a realidade, um autêntico poder histórico de transformação. Esta é a fonte da qual deve nutrir-se todo o compromisso para «resolver as causas estruturais da pobreza» e para o fazer com urgência. Espero, portanto, que «cresça o número de políticos capazes de entrar num autêntico diálogo que vise efetivamente sanar as raízes profundas e não a aparência dos males do nosso mundo», porque «trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos povos mais pobres da terra».
92. É necessário, portanto, continuar a denunciar a “ditadura de uma economia que mata” e reconhecer que «enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras». Embora não faltem diversas teorias que tentam justificar o estado atual das coisas ou explicar que a racionalidade económica nos exige esperar que as forças invisíveis do mercado resolvam tudo, a dignidade de cada pessoa humana deve ser respeitada já agora, não só amanhã, e a situação de miséria de tantas pessoas, a quem é negada esta dignidade, deve ser um apelo constante à nossa consciência.
93. Na Encíclica Dilexit nos, o Papa Francisco recordou que o pecado social assume a forma de uma “estrutura de pecado” na sociedade, fazendo frequentemente parte de uma «mentalidade dominante que considera normal ou racional o que não passa de egoísmo e indiferença. Este fenómeno pode definir-se como alienação social». Torna-se normal ignorar os pobres e viver como se eles não existissem. Apresenta-se como uma escolha razoável organizar a economia exigindo sacrifícios ao povo, para atingir certos objetivos que interessam aos poderosos. Entretanto, para os pobres restam apenas promessas de “gotas” que cairão, até que uma nova crise global os conduza de volta à situação na qual estavam anteriormente. É uma verdadeira alienação que leva a encontrar apenas desculpas teóricas e não a tentar resolver hoje os problemas concretos daqueles que sofrem. Já o dizia São João Paulo II: «Alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana».
94. Devemos empenhar-nos cada vez mais em resolver as causas estruturais da pobreza. É uma urgência que «não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar de uma mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias». A falta de equidade «é a raiz dos males sociais». Com efeito, «muitas vezes constata-se que, realmente, os direitos humanos não são iguais para todos».
95. Acontece que «no modelo “do êxito” e “individualista” em vigor, parece que não faz sentido investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na vida». A pergunta que reiteradamente surge é sempre a mesma: os menos dotados não são seres humanos? Os mais fracos não têm a nossa mesma dignidade? Aqueles que nasceram com menos possibilidades valem menos como seres humanos e devem limitar-se apenas a sobreviver? A resposta que damos a estas perguntas determina o valor das nossas sociedades e dela também depende o nosso futuro: ou reconquistamos a nossa dignidade moral e espiritual ou caímos numa espécie de poço de imundície. Se não pararmos a pensar as coisas a sério, continuaremos, de forma explícita ou dissimulada, a «legitimar o modelo distributivo atual, no qual uma minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria impossível generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os resíduos de tal consumo».
96. Entre as questões estruturais que não se pode imaginar conseguir resolver a partir de cima e que exigem ser tratadas o mais rapidamente possível, conta-se a dos lugares, espaços, casas e cidades onde os pobres vivem e caminham. Bem o sabemos: «Como são belas as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os que são diferentes, fazendo desta integração um novo fator de progresso! Como são encantadoras as cidades que, já no seu projeto arquitetónico, estão cheias de espaços que unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!». Ao mesmo tempo, «não podemos deixar de considerar os efeitos da degradação ambiental, do modelo atual de desenvolvimento e da cultura do descarte sobre a vida das pessoas». Com efeito, «a deterioração do meio ambiente e a da sociedade afetam de modo especial os mais frágeis do planeta».
97. Portanto, mesmo correndo o risco de parecer “estúpidos”, é tarefa de todos os membros do Povo de Deus fazer ouvir, ainda que de maneiras diferentes, uma voz que desperte, denuncie e se exponha. As estruturas de injustiça devem ser reconhecidas e destruídas com a força do bem, através da mudança de mentalidades e também, com a ajuda da ciência e da técnica, através do desenvolvimento de políticas eficazes na transformação da sociedade. É preciso recordar sempre que a proposta do Evangelho não é apenas a de uma relação individual e íntima com o Senhor. Ela é mais ampla: «é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais. Procuremos o seu Reino».
98. Por fim, um documento que inicialmente não foi bem recebido por todos, oferece-nos uma reflexão sempre atual: «É frequente dirigir aos defensores da “ortodoxia” a acusação de passividade, de indulgência ou de cumplicidade culpáveis frente a situações intoleráveis de injustiça e de regimes políticos que mantêm estas situações. A conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo, o zelo pela justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza, são exigidos a todos, especialmente aos pastores e aos responsáveis. A preocupação pela pureza da fé não subsiste sem a preocupação de dar a resposta de um testemunho eficaz de serviço ao próximo e, em especial, ao pobre e ao oprimido, através de uma vida teologal integral».