A METANOIA: UMA AUTÊNTICA CONVERSÃO
32. A maior preocupação dos membros do Sínodo, relativamente à situação do continente, foi ver como colocar no coração dos africanos, que são discípulos de Cristo, a vontade de se comprometerem efectivamente a viver o Evangelho na sua existência e na sociedade. Cristo chama constantemente à metanoia, à conversão. Os cristãos estão sob o influxo do espírito e dos hábitos do seu tempo e do seu ambiente; mas, pela graça do seu Baptismo, são convidados a renunciar às tendências nocivas imperantes e a caminhar contra--corrente. Um tal testemunho exige um decidido compromisso por « uma conversão contínua ao Pai, fonte de toda a vida verdadeira, o único capaz de nos libertar do mal e de toda a tentação e de nos conservar no seu Espírito, mesmo no meio do combate contra as forças do mal ». Esta conversão só é possível apoiando-se sobre convicções de fé consolidadas por uma catequese autêntica; por isso convém « manter viva a passagem do catecismo memorizado à catequese vivida, para se chegar a uma conversão profunda e permanente de vida ». A conversão vive-se de modo particular no sacramento da Reconciliação, ao qual há que prestar uma singular atenção para fazer dele uma verdadeira « escola do coração ». Nesta escola, o discípulo de Cristo vê forjar-se pouco a pouco uma vida cristã adulta, atenta às dimensões teologais e morais dos seus actos, e deste modo torna-se capaz de « enfrentar as dificuldades da vida social, política, económica e cultural », através duma vida permeada pelo espírito evangélico. A contribuição dos cristãos na África só será decisiva se a inteligência da fé conduzir à inteligência da realidade. Por isso, é indispensável a educação para a fé, senão Cristo não passará de um nome acrescentado às nossas teorias. A palavra e o testemunho de vida caminham lado a lado. Com efeito, o simples testemunho não basta, porque « ainda o mais belo testemunho virá a demonstrar-se com o andar do tempo impotente, se não vier a ser esclarecido, justificado – aquilo que Pedro chamava dar “a razão da própria esperança” (1 Ped 3, 15) – explicitado por um anúncio claro e inequívoco do Senhor Jesus ».
B. VIVER A VERDADE DO SACRAMENTO DA PENITÊNCIA E DA RECONCILIAÇÃO
33. Os membros do Sínodo sublinharam ainda que um grande número de cristãos na África adoptam uma atitude ambígua relativamente à celebração do sacramento da Reconciliação, dado que frequentemente estes mesmos cristãos são muito escrupulosos na aplicação dos ritos tradicionais de reconciliação. Para ajudar os fiéis católicos a viverem um autêntico caminho de metanoia na celebração deste sacramento, onde a mentalidade inteira se orienta novamente para o encontro com Cristo, seria bom que os bispos fizessem estudar seriamente as cerimónias tradicionais africanas de reconciliação para avaliar os seus aspectos positivos e os seus limites. De facto, estas mediações pedagógicas tradicionais não podem, em caso algum, substituir o sacramento; a Exortação apostólica pós-sinodal Reconciliatio et Pænitentia, do Beato João Paulo II, recordou claramente quais são as formas e o ministro do sacramento da Penitência e da Reconciliação. As mediações pedagógicas tradicionais podem apenas contribuir para reduzir a dilaceração sentida e vivida por alguns fiéis, ajudando-os a abrir-se com maior profundidade e verdade a Cristo, o Único grande Mediador, para receberem a graça do sacramento da Penitência. Celebrado na fé, este sacramento é suficiente para nos reconciliar com Deus e com o próximo. No fim de contas, é Deus que, em seu Filho, nos reconcilia consigo e com os outros.
C. UMA ESPIRITUALIDADE DE COMUNHÃO
34. A reconciliação não é um acto isolado, mas um longo processo em virtude do qual cada um se vê restabelecido no amor; um amor, que cura por acção da Palavra de Deus. Deste modo a reconciliação torna-se uma maneira de viver e, ao mesmo tempo, uma missão. A Igreja, para chegar a uma verdadeira reconciliação e, através da reconciliação, praticar a espiritualidade de comunhão, precisa de testemunhas que estejam profundamente radicadas em Cristo e se alimentem da sua Palavra e dos Sacramentos. Tendendo assim para a santidade, estas testemunhas serão capazes de se comprometer na obra de comunhão da Família de Deus, comunicando ao mundo – até ao martírio, se for preciso – o espírito de reconciliação, de justiça e de paz, a exemplo de Cristo.
35. Queria recordar aqui as condições para uma espiritualidade de comunhão que o Papa João Paulo II propusera à Igreja inteira: ser capaz de perceber a luz do mistério da Trindade no rosto dos irmãos que estão ao nosso redor; mostrar-se solícito com o « irmão de fé na unidade profunda do Corpo místico, isto é, como “um que faz parte de mim”, para saber partilhar as suas alegrias e os seus sofrimentos, para intuir os seus anseios e dar remédio às suas necessidades, para oferecer-lhe uma verdadeira e profunda amizade »; conseguir também reconhecer o que há de positivo no outro, para o acolher e valorizar como um dom que Deus me concede através daquele que o recebeu para proveito comum, tornando-se assim um administrador das graças divinas; enfim, « saber “criar espaço” para o irmão, levando “os fardos uns dos outros” (Gl 6, 2) e rejeitando as tentações egoístas que sempre nos insidiam e geram competição, arrivismo, suspeitas, ciúmes ».
Deste modo amadurecem homens e mulheres de fé e comunhão, que dão provas de coragem na verdade e na abnegação e irradiam a alegria. Assim testemunham profeticamenteo uma vida coerente com a sua fé. Maria, Mãe da Igreja, que soube acolher a Palavra de Deus, é o seu modelo: através da escuta da Palavra, Ela soube perceber as necessidades dos homens e, movida de compaixão, interceder por eles.
D. A INCULTURAÇÃO DO EVANGELHO E A EVANGELIZAÇÃO DA CULTURA
36. Para realizar esta comunhão, seria bom retomar o estudo profundo das tradições e culturas africanas, uma necessidade já evocada durante a primeira Assembleia Sinodal para a África. Os membros do Sínodo constataram a existência duma dicotomia entre certas práticas tradicionais das culturas africanas e as exigências específicas da mensagem de Cristo. A preocupação com a sua pertinência e credibilidade impõe à Igreja um discernimento aprofundado para identificar tanto os aspectos da cultura que são de obstáculo à encarnação dos valores do Evangelho, como aqueles que os promovem.
37. Entretanto convém não esquecer que o autêntico protagonista da inculturação é o Espírito Santo. É Ele que « preside de modo fecundo ao diálogo entre a Palavra de Deus, que se revelou em Cristo, e as solicitações mais profundas que brotam da multiplicidade das pessoas e das culturas. Continua assim, na história, o evento do Pentecostes que se enriquece através da diversidade das linguagens e das culturas na unidade duma única e mesma fé ». O Espírito Santo faz com que o Evangelho seja capaz de impregnar todas as culturas, sem se deixar subjugar por nenhuma. Os bispos terão a peito vigiar sobre esta exigência de inculturação no respeito das normas estabelecidas pela Igreja. Discernir os elementos culturais e as tradições que são contrários ao Evangelho tornará possível separar o trigo bom do joio (cf. Mt 13, 26). Assim o cristianismo, embora permanecendo plenamente o que é, na fidelidade absoluta ao anúncio evangélico e à tradição eclesial, revestirá a fisionomia de inumeráveis culturas e dos povos onde for acolhido e lançar raízes. Então a Igreja tornar-se-á um ícone do futuro que o Espírito de Deus nos prepara, ícone para o qual a África dará a sua própria contribuição. Nesta actividade de inculturação, convém não esquecer a tarefa – também esta essencial – da evangelização do mundo da cultura contemporânea africana.
38. São conhecidas as iniciativas da Igreja em prol da avaliação positiva e salvaguarda das culturas africanas. É muito importante continuar este serviço, dado que a amálgama dos povos, apesar de constituir um enriquecimento, frequentemente debilita as culturas e as sociedades. A identidade das comunidades africanas joga-se nestes encontros entre culturas. Por isso é necessário esforçar-se por transmitir os valores que o Criador inscreveu nos corações dos africanos desde tempos imemoriais. Aqueles serviram de matriz para modelar sociedades que se desenvolvem segundo uma determinada harmonia, porque contêm em si mesmas modos tradicionais de regulação para uma pacífica convivência. Trata-se, pois, de valorizar estes elementos positivos, iluminando-os a partir de dentro (cf. Jo 8, 12), para que o cristão seja efectivamente atingido pela mensagem de Cristo e, deste modo, a luz de Deus possa brilhar aos olhos dos homens. Então vendo as boas obras dos cristãos, os homens e as mulheres poderão glorificar « o Pai, que está nos céus » (Mt 5, 16).
E. O DOM DE CRISTO: A EUCARISTIA E A PALAVRA DE DEUS
39. Ultrapassando diferenças de origem ou de cultura, o grande desafio que nos espera a todos é discernir, na pessoa humana amada por Deus, o fundamento duma comunhão que respeite e integre as contribuições particulares das diversas culturas. « Devemos abrir realmente estas fronteiras entre tribos, etnias, religiões à universalidade do amor de Deus ». Homens e mulheres diversos por origem, cultura, língua ou religião podem viver juntos harmoniosamente.
40. Com efeito, o Filho de Deus colocou a sua tenda no meio de nós; derramou o seu Sangue por nós. De acordo com a sua promessa de permanecer connosco até ao fim dos tempos (cf. Mt 28, 20), cada dia dá-Se a nós como alimento na Eucaristia e na Sagrada Escritura. Como escrevi na Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini, « Palavra e Eucaristia correspondem-se tão intimamente que não podem ser compreendidas uma sem a outra: a Palavra de Deus faz-Se carne, sacramentalmente, no evento eucarístico. A Eucaristia abre-nos à inteligência da Sagrada Escritura, como esta, por sua vez, ilumina e explica o mistério eucarístico ».
41. Na realidade, a Sagrada Escritura atesta que, através do Baptismo, o Sangue derramado por Cristo torna-se início e vínculo duma nova fraternidade. Esta situa-se no pólo oposto da divisão, do tribalismo, do racismo, do etnocentrismo (cf. Gl 3, 26-28). A Eucaristia é a força que congrega os filhos de Deus dispersos e os mantém em comunhão, « dado que, nas nossas veias, circula o mesmo Sangue de Cristo, que faz de nós filhos de Deus, membros da Família de Deus ». Tendo recebido Jesus na Eucaristia e na Sagrada Escritura, somos enviados ao mundo para lhe oferecer Cristo colocando-nos ao serviço dos outros (cf. Jo 13, 15; 1 Jo 3, 16).