17. Os três conceitos principais do tema sinodal, ou seja, a reconciliação, a justiça e a paz, fizeram o Sínodo confrontar-se com a sua « responsabilidade teológica e social » e permitiram interrogar-se também sobre a função pública da Igreja e o seu lugar no contexto africano actual. « Poder-se-ia dizer que reconciliação e justiça sejam os dois pressupostos essenciais da paz e, por conseguinte, definam em certa medida também a sua natureza ». A tarefa que devemos especificar não é fácil, porque se situa entre o empenho imediato em política – que não entra nas competências directas da Igreja – e a retirada ou a evasão para teorias teológicas e espirituais, com o risco de constituir uma fuga diante duma responsabilidade concreta na história humana.
18. « Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz » – diz o Senhor, que acrescenta – « Não é como a dá o mundo, que Eu vo-la dou » (Jo 14, 27). A paz dos homens, que se obtenha sem a justiça, é ilusória e efémera. A justiça dos homens, que não tenha a sua fonte na reconciliação através da verdade na caridade (cf. Ef 4, 15), permanece incompleta; não é autêntica justiça. É o amor da verdade – « a verdade completa », para a qual só o Espírito nos pode guiar (cf. Jo 16, 13) – que traça o caminho que toda a justiça humana deve tomar, para chegar à restauração dos laços de fraternidade na « família humana, comunidade de paz », reconciliada com Deus por Jesus Cristo. A justiça não é desencarnada; está necessariamente ancorada na coerência humana. Uma caridade, que não respeite a justiça e o direito de todos, é falsa. Por isso, encorajo os cristãos a tornarem-se modelos em matéria de justiça e caridade (cf. Mt 5, 19-20).
A. « RECONCILIAI-VOS COM DEUS » (2 Cor 5, 20)
19. « A reconciliação é um conceito pré-político e uma realidade pré-política, que, por isso mesmo, se revela da máxima importância para a própria tarefa política. Se não se criar nos corações a força da reconciliação, falta o pressuposto interior para o compromisso político pela paz. No Sínodo, os Pastores da Igreja comprometeram-se em prol daquela purificação interior do homem que constitui a condição preliminar essencial para a edificação da justiça e da paz. Mas esta purificação e maturação interior rumo a uma verdadeira humanidade não podem existir sem Deus ».
20. Com efeito, é a graça de Deus que nos dá um coração novo e nos reconcilia com Ele e com os outros. Foi Cristo que restabeleceu a humanidade no amor do Pai. Consequentemente, a reconciliação tem a sua fonte neste amor; nasce da iniciativa que o Pai tomou de renovar a relação com a humanidade, relação rompida com o pecado do homem. Em Jesus Cristo, « na sua vida e no seu ministério, mas especialmente na sua morte e ressurreição, o apóstolo Paulo viu Deus Pai que reconcilia o mundo (todas as coisas no céu e na terra) consigo mesmo, cancelando os pecados dos homens (cf. 2 Cor 5, 19; Rm 5, 10, Cl 1, 21-22). O Apóstolo viu Deus reconciliar consigo mesmo judeus e gentios, formando dos dois povos um só corpo através da cruz (cf. Ef 2, 15; 3, 6). Deste modo, a experiência da reconciliação estabelece a comunhão a dois níveis: por um lado, a comunhão entre Deus e os homens e, por outro, dado que a referida experiência faz de nós (humanidade reconciliada) também “embaixadores da reconciliação”, ela restabelece igualmente a comunhão entre os homens ». Portanto « a reconciliação não se limita ao desígnio que Deus tem de reconduzir a Si, em Cristo, a humanidade alienada e pecadora, através do perdão dos pecados e por meio do amor. É também a restauração das relações entre as pessoas mediante a harmonização das diferenças e a supressão dos obstáculos ao seu relacionamento através da experiência do amor de Deus ». Bem o ilustra a parábola do filho pródigo quando o evangelista nos apresenta, no regresso do filho mais novo, isto é, na sua conversão, a necessidade de se reconciliar, por um lado, com seu pai e, por outro, com seu irmão mais velho graças à mediação do pai (cf. Lc 15, 11-32). Testemunhos comovedores de fiéis africanos, « testemunhos concretos de sofrimento e de reconciliação nas tragédias da história recente do continente » mostraram a força do Espírito que transforma os corações das vítimas e dos seus verdugos para restabelecer a fraternidade.
21. De facto, só uma autêntica reconciliação gera uma paz duradoura na sociedade. Seus protagonistas são, sem dúvida, as autoridades governamentais e os chefes tradicionais, mas são-no igualmente os simples cidadãos. Depois de um conflito, a reconciliação muitas vezes conduzida e efectuada no silêncio e com discrição restaura a união dos corações e a serena convivência. Graças a ela, depois de longos períodos de guerra, as nações reencontram a paz, as sociedades profundamente feridas pela guerra civil ou pelo genocídio reconstroem a sua unidade. Foi oferecendo e acolhendo o perdão que as memórias feridas das pessoas ou das comunidades se puderam curar, e as famílias outrora divididas reencontraram a harmonia. Como fizeram questão de sublinhar os Padres do Sínodo, « a reconciliação supera as crises, restaura a dignidade das pessoas e abre o caminho ao progresso e à paz duradoura entre os povos, a todos os níveis ».
Esta reconciliação, para se tornar efectiva, deverá ser acompanhada por um acto corajoso e honesto: a busca dos responsáveis destes conflitos, daqueles que financiaram os crimes e se dedicam a todo o tipo de tráficos, e a determinação das suas responsabilidades. As vítimas têm direito à verdade e à justiça. É importante no presente e para o futuro purificar a memória, a fim de construir uma sociedade melhor, onde nunca mais se repitam semelhantes tragédias.
B. TORNAR-SE JUSTO E CONSTRUIR UMA ORDEM SOCIAL JUSTA
22. A construção duma ordem social justa compete, sem dúvida, à esfera política. Entretanto, uma das tarefas da Igreja na África é formar consciências rectas e sensíveis às exigências da justiça, para que maturem mulheres e homens solícitos e capazes de realizar esta ordem social justa com a sua conduta responsável. O modelo por excelência, a partir do qual a Igreja pensa e raciocina e que propõe a todos, é Cristo. Segundo a sua doutrina social, « a Igreja não tem soluções técnicas para oferecer e não pretende “de modo algum imiscuir-se na política dos Estados”; mas tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir (…), uma missão irrenunciável. A sua doutrina social é um momento singular deste anúncio: é serviço à verdade que liberta ».
23. Graças às Comissões « Justiça e Paz », a Igreja está comprometida na formação cívica dos cidadãos e no acompanhamento dos processos eleitorais em diversos países. Contribui assim para a educação das populações e para o despertar da sua consciência e da sua responsabilidade civil. Esta peculiar função educativa é apreciada por um grande número de países que reconhecem a Igreja como artífice de paz, agente de reconciliação e arauto da justiça. Mas convém não esquecer jamais que a missão da Igreja, embora distinguindo o papel dos Pastores daquele que têm os fiéis leigos, não é de ordem política. A sua função é educar o mundo para o sentido religioso, proclamando Jesus Cristo. A Igreja quer ser o sinal e a salvaguarda da transcendência da pessoa humana. Deve igualmente educar os homens para a busca da verdade suprema a respeito do seu ser e das suas questões, a fim de encontrar soluções justas para os seus problemas.
1. VIVER DA JUSTIÇA DE CRISTO
24. No plano social, a consciência humana é interpelada por graves injustiças presentes no nosso mundo em geral, e no seio da África em particular. O açambarcamento dos bens da terra por uma minoria em detrimento de povos inteiros é inaceitável porque imoral. A justiça obriga a « dar o seu a seu dono – ius suum unicuique tribuere ». Trata-se, portanto, de fazer justiça aos povos. A África é capaz de garantir a todos os indivíduos e nações do continente as condições basilares que lhes permitam participar no desenvolvimento. Deste modo, os africanos poderão colocar os talentos e as riquezas que Deus lhes deu ao serviço da sua terra e dos seus irmãos. A justiça, praticada em todas as dimensões da vida – privada e pública, económica e social – precisa de ser sustentada pela subsidiariedade e a solidariedade e, mais ainda, de ser animada pela caridade. « Segundo o princípio da subsidiariedade, nem o Estado nem qualquer sociedade mais abrangente devem substituir-se à iniciativa e à responsabilidade das pessoas e dos corpos intermédios ». A solidariedade é garantia da justiça e da paz e, consequentemente, da unidade, de tal modo que « a abundância de uns supra a carência dos outros ». E a caridade, que assegura a união com Deus, ultrapassa a justiça distributiva. Porque, se « a justiça é a virtude que distribui a cada um o bem que lhe pertence (…), não é justiça do homem aquela que subtrai o homem ao verdadeiro Deus ».
25. O próprio Deus nos mostra a verdadeira justiça, quando, por exemplo, vemos Jesus entrar na vida de Zaqueu e, deste modo, oferecer ao pecador a graça da sua presença (cf. Lc 19, 1-10). E qual é então esta justiça de Cristo? As testemunhas daquele encontro com Zaqueu observam Jesus (cf. Lc 19, 7); a sua murmuração desabonatória pretende ser uma expressão do amor pela justiça. Elas, porém, ignoram a justiça do amor que vai até ao extremo de tomar sobre si a « maldição » devida aos homens, para estes receberem, em troca, a « bênção » que é o dom de Deus (cf. Gl 3, 13-14). A justiça divina oferece à justiça humana, sempre limitada e imperfeita, o horizonte para onde deve tender a fim de se realizar plenamente. Além disso faz-nos tomar consciência da nossa indigência, da necessidade do perdão e da amizade de Deus. É aquilo que vivemos nos sacramentos da Penitência e da Eucaristia, que derivam da acção de Cristo. Esta acção introduz-nos numa justiça em que recebemos muito mais do que poderíamos legitimamente esperar, porque, em Cristo, a caridade é o cumprimento da Lei (cf. Rm 13, 8-10). Por intermédio de Cristo, modelo único, o justo é convidado a entrar na ordem do amor-agape.
2. CRIAR UMA ORDEM JUSTA NA LÓGICA DAS BEM-AVENTURANÇAS
26. Unido ao seu Mestre, o discípulo de Cristo deve contribuir para formar uma sociedade justa, onde todos possam participar activamente com os seus talentos na vida social e económica. Poderão assim ganhar o que lhes é necessário para viverem de acordo com a sua dignidade humana, numa sociedade onde a justiça será vivificada pelo amor. Cristo não propôs uma revolução de tipo social ou político, mas a do amor, realizada no dom total de Si mesmo com a sua morte na cruz e a sua ressurreição. É sobre esta revolução do amor que se baseiam as Bem-aventuranças (cf. Mt 5, 3-10). Estas proporcionam um novo horizonte de justiça inaugurado no mistério pascal e em virtude do qual nos podemos tornar justos e construir um mundo melhor. A justiça de Deus, que as Bem-aventuranças nos revelam, eleva os humildes e derruba os que se exaltam. Na verdade, aquela só alcançará a sua perfeição no Reino de Deus que se realizará no fim dos tempos; mas a justiça de Deus manifesta-se já agora, quando os pobres são consolados e admitidos ao banquete da vida.
27. Segundo a lógica das Bem-aventuranças, deve ser dada uma atenção preferencial ao pobre, ao faminto, ao doente – por exemplo, com a sida, a tuberculose ou o paludismo –, ao estrangeiro, ao oprimido, ao prisioneiro, ao emigrante desprezado, ao refugiado ou ao deslocado (cf. Mt 25, 31-46). A resposta às suas necessidades, na justiça e na caridade, depende de todos. A África espera esta solicitude da família humana inteira, e também de si mesma. Entretanto deverá, decididamente, começar por introduzir no seu próprio seio a justiça política, social e administrativa, elementos da cultura política necessária para o desenvolvimento e a paz. A Igreja, por sua vez, prestará a sua contribuição específica, apoiando-se na doutrina das Bem-aventuranças.
C. O AMOR NA VERDADE: FONTE DE PAZ
28. A perspectiva social, proposta pelo agir de Cristo fundado no amor, transcende o mínimo que a justiça humana exige, ou seja, dar ao outro o que lhe é devido. A lógica interna do amor supera esta justiça, chegando ao ponto de dar o que se possui: « Não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade » (1 Jo 3, 18). À semelhança do seu Mestre, o discípulo de Cristo irá ainda mais longe, chegando ao dom de si mesmo pelos irmãos (cf. 1 Jo 3, 16). É o preço da paz autêntica em Deus (cf. Ef 2, 14).
1. SERVIÇO FRATERNO CONCRETO
29. Nenhuma sociedade, mesmo desenvolvida, pode prescindir do serviço fraterno animado pelo amor. « Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem. Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão. Existirão sempre também situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo ». É o amor que acalma os corações feridos, sós, abandonados; é o amor que gera a paz ou a restabelece no coração humano, e a instaura entre os homens.
2. A IGREJA COMO UMA SENTINELA
30. Na situação actual da África, a Igreja é chamada a fazer ouvir a voz de Cristo. A sua vontade é dar seguimento à recomendação de Jesus a Nicodemos, que se interrogava sobre a possibilidade de nascer de novo: « Vós tendes de nascer do alto » (Jo 3, 7). Os missionários propuseram aos africanos este novo nascimento « da água e do Espírito » (Jo 3, 5), uma Boa Notícia que toda a pessoa tem o direito de ouvir, para poder realizar plenamente a sua vocação. A Igreja na África vive desta herança; por causa de Cristo e fiel à sua lição de vida, ela sente-se impelida a estar presente nas situações onde a humanidade conhece o sofrimento e fazer-se eco do grito silencioso dos inocentes perseguidos ou dos povos cujos governantes, em nome de interesses pessoais, hipotecam o presente e o futuro. Com a sua capacidade de reconhecer o rosto de Cristo no da criança, do doente, do atribulado ou do necessitado, a Igreja contribui para forjar, lenta mas solidamente, a nova África. Na sua função profética, sempre que os povos lhe bradam: « Sentinela, quanto resta da noite? » (Is 21, 11), a Igreja quer estar pronta para dar razão da esperança que traz em si (cf. 1 Ped 3, 15), porque uma nova alvorada surge no horizonte (cf. Ap 22, 5). Só a recusa da desumanização do homem e da abdicação com medo da prova ou do martírio servirá a causa do Evangelho da verdade. « No mundo – diz Cristo –, tereis tribulações; mas, tende confiança: Eu já venci o mundo » (Jo 16, 33). A paz autêntica vem de Cristo (cf. Jo 14, 27). Mas não é comparável à paz do mundo: não é fruto de negociações e de acordos diplomáticos fundados sobre interesses; é a paz da humanidade reconciliada consigo mesma em Deus, e cujo sacramento é a Igreja.