69. Na concepção africana do mundo, a vida é entendida como uma realidade que engloba e inclui os antepassados, os vivos e as crianças por nascer, a criação inteira e todos os seres: os que falam e os que são mudos, os que pensam e os que não são capazes de o fazer. Nela, o universo visível e invisível é considerado como um espaço de vida dos homens, mas também como um espaço de comunhão onde as gerações passadas estão, de maneira invisível, ao lado das gerações presentes, que, por sua vez, são mães das gerações futuras. Esta ampla abertura do coração e do espírito da tradição africana predispõe-vos, amados irmãos e irmãs, para ouvirdes e receberdes a mensagem de Cristo e compreenderdes o mistério da Igreja, a fim de dar todo o seu valor à vida humana e às condições para o seu pleno florescimento.
A. A PROTECÇÃO DA VIDA
70. Detendo-se sobre as determinações que visam proteger a vida humana no continente africano, os membros do Sínodo tomaram em consideração os esforços feitos pelas instituições internacionais em prol de alguns aspectos do desenvolvimento. Mas observaram com preocupação que, durante os encontros internacionais, existe uma falta de clareza ética e até uma linguagem confusa que transmite valores contrários à moral católica. A Igreja mantém constante solicitude pelo desenvolvimento integral – na expressão do Papa Paulo VI – de « todos os homens e do homem todo ». Por este motivo, os Padres sinodais quiseram sublinhar os aspectos discutíveis de certos documentos emanados por organismos internacionais, relativos nomeadamente à saúde reprodutiva das mulheres. A posição da Igreja não tolera qualquer ambiguidade quanto ao aborto. A criança no seio materno é uma vida humana que se deve proteger. O aborto, que consiste na supressão dum inocente ainda não nascido, é contrário à vontade de Deus, porque o valor e a dignidade da vida humana devem ser protegidos desde a concepção até à morte natural. A Igreja na África e ilhas adjacentes deve comprometer-se a ajudar e a acompanhar as mulheres e os casais tentados pelo aborto, e a estar ao lado de quantos fizeram a triste experiência do mesmo, a fim de educá-los para o respeito pela vida. Ela aprecia a coragem dos governos que legislaram contra a cultura da morte, da qual o aborto é uma expressão dramática, em benefício da cultura da vida.
71. A Igreja sabe que aqueles que rejeitam uma sã doutrina a este respeito são numerosos: indivíduos, associações, departamentos especializados ou Estados. « Não devemos temer a oposição e a impopularidade, recusando qualquer compromisso e ambiguidade que nos conformem com a mentalidade deste mundo (cf. Rm 12, 2). Com a força recebida de Cristo, que venceu o mundo pela sua morte e ressurreição (cf. Jo 16, 33), devemos estar no mundo, mas não ser do mundo (cf. Jo 15, 19; 17, 16) ».
72. Graves ameaças pesam sobre a vida humana na África. Aqui, como aliás noutros lados, é preciso deplorar as devastações da droga e os abusos do álcool que destroem o potencial humano do continente, penalizando sobretudo os jovens. O paludismo como também a tuberculose e a sida dizimam as populações africanas e comprometem gravemente a sua vida socioeconómica. Concretamente o problema da sida exige, sem dúvida, uma resposta médica e farmacêutica; mas esta é insuficiente, porque o problema é mais profundo: é sobretudo ético. A mudança de comportamento por ele exigida – nomeadamente a abstinência sexual, a rejeição da promiscuidade sexual, a fidelidade conjugal –, em última análise, põe a questão do desenvolvimento integral, que requer uma abordagem e uma resposta global da Igreja. De facto, para ser eficaz, a prevenção da sida deve apoiar-se numa educação sexual que esteja, por sua vez, fundada numa antropologia ancorada no direito natural e iluminada pela Palavra de Deus e o ensinamento da Igreja.
73. Em nome da vida – que é dever da Igreja defender e proteger – e em união com os Padres sinodais, renovo o meu apoio e faço apelo a todas as instituições e a todos os movimentos da Igreja que trabalham no campo da saúde, especialmente da sida. Vós realizais um trabalho maravilhoso e importante. Peço às agências internacionais que vos reconheçam e ajudem, no respeito da vossa especificidade e com espírito de colaboração. Mais uma vez encorajo vivamente os institutos e os programas de pesquisa terapêutica e farmacêutica em curso para erradicar as pandemias. Por amor do dom precioso da vida, não vos poupeis a canseiras para se chegar o mais depressa possível a resultados concretos. Possais encontrar soluções e, tendo em conta as situações de precariedade, tornar os tratamentos e os medicamentos acessíveis a todos. Há muito tempo que a Igreja sustenta a causa de um tratamento médico de alta qualidade e ao menor custo para todas as pessoas atingidas.
74. A defesa da vida comporta, de igual forma, a erradicação da ignorância através da alfabetização das populações e duma educação qualificada que englobe a pessoa inteira. Ao longo da sua história, a Igreja Católica prestou particular atenção à educação. Nunca deixou de sensibilizar, encorajar e ajudar os pais a viverem a sua responsabilidade de primeiros educadores da vida e da fé dos seus próprios filhos. Na África, as suas estruturas – tais como escolas, colégios, liceus, escolas profissionais, universidades – colocam à disposição da população instrumentos para chegar ao saber, sem discriminação de origem, possibilidades económicas ou religião. Deste modo a Igreja oferece a sua contribuição para permitir valorizar e fazer frutificar os talentos que Deus colocou no coração de cada ser humano. Numerosas congregações religiosas nasceram com esta finalidade. Inumeráveis santos e santas compreenderam que santificar o homem significava, antes de mais, promover a sua dignidade por meio da educação.
75. Os membros do Sínodo constataram que a África, como aliás o resto do mundo, conhece uma crise da educação. Sublinharam a necessidade de um programa educativo que conjugue fé e razão, para preparar as crianças e os jovens para a vida adulta. Bases e pontos sadios de referência, assim colocados, permitir-lhes-iam enfrentar as decisões quotidianas, caracterizando toda a vida adulta no plano afectivo, social, profissional e político.
76. O analfabetismo constitui um dos maiores freios ao desenvolvimento. É um flagelo comparável ao das pandemias; é certo que não mata directamente, mas contribui activamente para a marginalização da pessoa – que é uma forma de morte social – e impossibilita-a de ter acesso ao conhecimento. Alfabetizar o indivíduo é fazer dele um membro de pleno direito da res publica, para cuja construção poderá contribuir, e permitir ao cristão o acesso ao tesouro inestimável da Sagrada Escritura, que alimenta a sua vida de fé.
77. Convido as comunidades e as instituições católicas a responderem generosamente a este grande desafio, que é um real laboratório de humanização, e a intensificarem os esforços, segundo os meios à disposição, para desenvolver, por si sós ou em colaboração com outras organizações, programas eficazes e adaptados às populações. As comunidades e as instituições católicas só vencerão tal desafio, se mantiverem a sua identidade eclesial e permanecerem zelosamente fiéis à mensagem evangélica e ao carisma do fundador. A identidade cristã constitui um bem precioso que é preciso saber preservar e defender, temendo que o sal se torne insípido e acabe por ser calcado aos pés (cf. Mt 5, 13).
78. Convém, sem dúvida, sensibilizar os governos para que aumentem o seu apoio à escolarização. A Igreja reconhece e respeita o papel do Estado no campo educativo; mas afirma o legítimo direito que ela tem de participar no mesmo, oferecendo a sua particular contribuição. Convém recordar ao Estado que a Igreja tem o direito de educar segundo as suas regras próprias e em edifícios próprios. Trata-se de um direito que se insere naquela liberdade de acção « que o seu encargo de salvar os homens requer ». Numerosos Estados africanos reconhecem o papel saliente e desinteressado que a Igreja desempenha, através das suas estruturas educativas, na edificação da sua nação. Por isso encorajo vivamente os governantes nos seus esforços de apoio a esta obra educativa.
B. O RESPEITO DA CRIAÇÃO E O ECOSSISTEMA
79. Com os Padres do Sínodo, convido todos os membros da Igreja a trabalhar e tomar posição a favor duma economia atenta aos pobres e decididamente contrária a uma ordem injusta que, a pretexto de reduzir a pobreza, frequentemente contribuiu para a agravar. Deus dotou a África de importantes recursos naturais. Vendo a pobreza crónica das suas populações, vítimas de exploração e prevaricações locais e estrangeiras, a consciência humana sente-se chocada com a opulência de alguns grupos. Tendo surgido com a finalidade de criar riqueza na sua própria nação e muitas vezes valendo-se da cumplicidade daqueles que exercem o poder na África, com demasiada frequência tais grupos asseguram o seu funcionamento à custa do bem-estar das populações locais. A Igreja, agindo em colaboração com todos os outros componentes da sociedade civil, deve denunciar a ordem injusta que impede os povos africanos de consolidarem a própria economia e « de atingirem o desenvolvimento em conformidade com os seus traços culturais próprios ». Além disso, é dever da Igreja lutar para que « todos os povos possam tornar-se os principais artífices do próprio desenvolvimento social e económico (…) e todo e qualquer povo, como membro activo e responsável da sociedade humana, possa cooperar para a consecução do bem comum com os mesmos direitos dos demais povos ».
80. Homens e mulheres de negócios, governos, grupos económicos lançam-se em programas de exploração que poluem o ambiente e causam uma desertificação nunca vista. Graves atentados são praticados contra a natureza e as florestas, a flora e a fauna, e inúmeras espécies correm o risco de desaparecer para sempre. Tudo isto ameaça o ecossistema global e, consequentemente, a sobrevivência da humanidade. Exorto a Igreja na África a encorajar os governantes para que protejam os bens fundamentais, como são a terra e a água, para a vida humana das gerações presentes e futuras e para a paz entre os povos.
C. A BOA GOVERNAÇÃO DOS ESTADOS
81. Um dos instrumentos mais importantes ao serviço da reconciliação, da justiça e da paz pode ser a instituição política, cujo dever essencial é a introdução e a gestão da ordem justa. Por sua vez, esta ordem está ao serviço da « vocação à comunhão das pessoas ». Para concretizar semelhante ideal, a Igreja na África deve contribuir para a edificação da sociedade, em colaboração com as autoridades governamentais e as instituições públicas e privadas empenhadas na obtenção do bem comum. Os chefes tradicionais podem contribuir, de maneira muito positiva, para a boa governação. A Igreja, por seu lado, compromete-se a promover no seu seio e na sociedade uma cultura que tenha a peito o primado do direito. A título de exemplo, as eleições constituem um espaço de expressão da escolha política dum povo e são o sinal da legitimidade para o exercício do poder. Constituem momento privilegiado para um debate público sadio e sereno, caracterizado pelo respeito das diversas opiniões e dos vários grupos políticos. Favorecer o bom andamento das eleições suscitará e encorajará uma participação real e activa dos cidadãos na vida política e social. O desrespeito da Constituição nacional, da lei ou do veredicto das urnas, quando as eleições foram livres, imparciais e transparentes, manifestaria uma grave disfunção na governação e significaria uma falta de competência na gestão da realidade pública.
82. Hoje, muitos daqueles que decidem, tanto políticos como economistas, pretendem não dever nada a ninguém, a não ser a si mesmos. « Considerando-se titulares só de direitos, frequentemente deparam-se com fortes obstáculos para maturar uma responsabilidade no âmbito do desenvolvimento integral próprio e alheio. Por isso, é importante invocar uma nova reflexão que faça ver como os direitos pressupõem deveres, sem os quais o seu exercício se transforma em arbítrio ».
83. O aumento da taxa de criminalidade nas sociedades, cada vez mais urbanizadas, é um sério motivo de preocupação para todos os responsáveis e para os governantes. É urgente, portanto, estabelecer sistemas judiciários e prisionais independentes, para restabelecer a justiça e reeducar os culpados. É preciso também banir os casos de erro da justiça e os maus tratos dos prisioneiros, as numerosas ocasiões de não aplicação da lei, que correspondem a uma violação dos direitos humanos, e as detenções que só tardiamente ou nunca chegam a um processo. « A Igreja na África (…) reconhece a sua missão profética junto de quantos acabam envolvidos pela criminalidade, sabendo da sua necessidade de reconciliação, de justiça e de paz ». Os presos são pessoas humanas que, apesar do seu crime, merecem ser tratadas com respeito e dignidade; precisam da nossa solicitude. Para isso, a Igreja deve organizar a pastoral do sector carcerário para o bem material e espiritual dos presos. Esta actividade pastoral é um verdadeiro serviço que a Igreja presta à sociedade, e que o Estado deve favorecer para o bem comum. Com os membros do Sínodo, chamo a atenção dos responsáveis da sociedade para a necessidade de fazer todo o possível a fim de se chegar à eliminação da pena capital, bem como para a reforma do sistema penal a fim de que a dignidade humana do preso seja respeitada. Aos agentes pastorais cabe a tarefa de estudar e propor a justiça restituitória como meio e processo para favorecer a reconciliação, a justiça e a paz, e ainda a reinserção nas comunidades das vítimas e dos transgressores.
D. OS EMIGRANTES, DESLOCADOS E REFUGIADOS
84. Milhões de emigrantes, deslocados e refugiados procuram uma pátria e uma terra de paz na África ou noutros continentes. As dimensões deste êxodo, que envolve todos os países, revelam a amplitude dissimulada das diversas pobrezas, frequentemente geradas por falhas na gestão pública. Milhares de pessoas procuraram, e procuram ainda, atravessar os desertos e os mares à procura de oásis de paz e prosperidade, duma formação melhor e de maior liberdade. Infelizmente, numerosos refugiados ou deslocados encontram toda a espécie de violência e exploração, senão mesmo a prisão e frequentemente a morte. Alguns Estados responderam a este drama com uma legislação repressiva. A situação de precariedade de tais pobres deveria suscitar a compaixão e a solidariedade generosa de todos; muitas vezes, porém, sucede o contrário, fazendo nascer o medo e a ansiedade, porque muitos consideram os emigrantes como um fardo e olham-nos com desconfiança, não vendo neles senão perigo, insegurança e ameaça. Esta visão provoca reacções de intolerância, xenofobia e racismo, enquanto estes mesmos emigrantes se vêem constrangidos, por causa da precariedade da sua situação, a realizar trabalhos mal remunerados e muitas vezes ilegais, humilhantes ou degradantes. A consciência humana não pode deixar de se indignar à vista destas situações. Assim a emigração dentro e para fora do continente torna-se um drama multidimensional, que afecta seriamente o capital humano da África, provocando a instabilidade ou mesmo a destruição das famílias.
85. A Igreja recorda-se que a África foi uma terra de refúgio para a Sagrada Família, que escapava do poder político sanguinário de Herodes à procura duma terra que lhes prometia a segurança e a paz. A Igreja continuará a fazer ouvir a sua voz e a empenhar-se por defender todas as pessoas.
E. A GLOBALIZAÇÃO E A AJUDA INTERNACIONAL
86. Os Padres sinodais manifestaram a sua perplexidade e preocupação perante a globalização. Já chamei a atenção para esta realidade, como sendo um desafio a enfrentar. « A verdade da globalização enquanto processo e o seu critério ético fundamental provêm da unidade da família humana e do seu desenvolvimento no bem. Por isso é preciso empenhar-se sem cessar por favorecer uma orientação cultural personalista e comunitária, aberta à transcendência, do processo de integração mundial ». A Igreja espera que a globalização da solidariedade cresça até inscrever, « nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom, como expressão da fraternidade », evitando a tentação do pensamento unidimensional sobre a vida, a cultura, a política, a economia, em benefício de um constante respeito ético pelas diversas realidades humanas, para uma efectiva solidariedade.
87. Esta globalização da solidariedade manifesta-se já, em certa medida, através das ajudas internacionais. Hoje a notícia duma catástrofe cruza rapidamente o mundo, suscitando muitas vezes um movimento de compaixão e acções concretas de generosidade. A Igreja presta um serviço de grande caridade, defendendo as necessidades reais do destinatário. Em nome do direito de quantos passam necessidade e não têm voz e em nome do respeito e solidariedade que é preciso ter para com eles, a Igreja pede que « os organismos internacionais e as organizações não governamentais se comprometam a uma plena transparência ».