8. A propósito, na Sagrada Escritura há um texto que deve ser tomado sempre como ponto de partida. Trata-se da revelação de Deus a Moisés junto à sarça ardente: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de o libertar […] E agora, vai; Eu te envio» ( Ex 3, 7-8.10). [7] Deus mostra-se solícito para com as necessidades dos pobres: «Clamaram, então, ao Senhor, e o Senhor enviou-lhes um salvador» ( Jz 3, 15). Portanto, ao ouvir o clamor do pobre, somos chamados a identificar-nos com o coração de Deus, que está atento às necessidades dos seus filhos, especialmente dos mais necessitados. Se permanecêssemos, porém, indiferentes a esse clamor, o pobre clamaria ao Senhor contra nós e isso tornar-se-ia para nós um pecado (cf. Dt 15, 9) e, deste modo, afastar-nos-íamos do próprio coração de Deus.
9. A condição dos pobres representa um grito que, na história da humanidade, interpela constantemente a nossa vida, as nossas sociedades, os sistemas políticos e económicos e, sobretudo, a Igreja. No rosto ferido dos pobres encontramos impresso o sofrimento dos inocentes e, portanto, o próprio sofrimento de Cristo. Ao mesmo tempo, deveríamos falar, e talvez de modo mais acertado, dos inúmeros rostos dos pobres e da pobreza, uma vez que se trata de um fenómeno multifacetado; na verdade, existem muitas formas de pobreza: a daqueles que não têm meios de subsistência material, a pobreza de quem é marginalizado socialmente e não possui instrumentos para dar voz à sua dignidade e capacidades, a pobreza moral e espiritual, a pobreza cultural, aquela de quem se encontra em condições de fraqueza ou fragilidade seja pessoal seja social, a pobreza de quem não tem direitos, nem lugar, nem liberdade.
10. Neste sentido, pode dizer-se que o compromisso em favor dos pobres e pela erradicação das causas sociais e estruturais da pobreza, embora tenha adquirido importância nas últimas décadas, ainda continua insuficiente; até porque as sociedades em que vivemos privilegiam, com frequência, linhas políticas e padrões de vida marcados por numerosas desigualdades e, por isso, às antigas formas de pobreza que evidenciámos e se procuram combater, acrescentam-se outras novas, por vezes mais subtis e perigosas. Deste ponto de vista, é de louvar que as Nações Unidas tenham colocado a erradicação da pobreza como um dos objetivos do Milénio.
11. Ao compromisso concreto com os pobres ocorre associar também uma mudança de mentalidades que tenha incidências culturais. Efetivamente, a ilusão de uma felicidade que deriva de uma vida confortável leva muitas pessoas a ter uma visão da existência centrada na acumulação de riquezas e no sucesso social a todo o custo, a ser alcançado mesmo explorando os outros e aproveitando ideais sociais e sistemas político-económicos injustos, favoráveis aos mais fortes. Assim, num mundo onde os pobres são cada vez mais numerosos, vemos paradoxalmente crescer algumas elites ricas, que vivem numa bolha de condições demasiado confortáveis e luxuosas, quase num mundo à parte em relação às pessoas comuns. Isto significa que persiste – por vezes bem disfarçada – uma cultura que descarta os outros sem sequer se aperceber, tolerando com indiferença que milhões de pessoas morram à fome ou sobrevivam em condições indignas do ser humano. Alguns anos atrás, a foto de uma criança de bruços, sem vida, numa praia do Mediterrâneo provocou grande choque; infelizmente, à parte de alguma momentânea comoção, acontecimentos semelhantes estão a tornar-se cada vez mais irrelevantes, como se fossem notícias secundárias.
12. Não devemos baixar a guarda diante da pobreza. Preocupam-nos, de modo particular, as graves condições em que vivem muitíssimas pessoas, devido à escassez de alimentos e água potável. Todos os dias morrem milhares de pessoas por causas relacionadas com a desnutrição. Mesmo nos países ricos, as estimativas relativas ao número de pobres não são menos preocupantes. Na Europa, há cada vez mais famílias que não conseguem chegar ao fim do mês. Em geral, nota-se que as diferentes manifestações da pobreza aumentaram. Ela já não se apresenta como uma condição única e homogénea, mas manifesta-se em múltiplas formas de empobrecimento económico e social, refletindo o fenómeno de crescentes desigualdades, mesmo em contextos geralmente prósperos. Recordemos que «duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos. E, todavia, também entre elas, encontramos continuamente os mais admiráveis gestos de heroísmo quotidiano na defesa e cuidado da fragilidade das suas famílias». Embora em alguns países se observem mudanças importantes, «a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam outra», especialmente se pensarmos nas mulheres mais pobres.