19. A natureza e a vocação universal da Igreja exigem que ela se abra ao diálogo com os membros das outras religiões. No Médio Oriente, este diálogo funda-se nos laços espirituais e históricos que unem os cristãos, os judeus e os muçulmanos. Este diálogo não se move tanto por considerações pragmáticas de ordem política ou social, como sobretudo pelas bases teológicas que interpelam a fé. Tais bases derivam da Sagrada Escritura e estão claramente definidas na Constituição dogmática sobre a Igreja Lumen gentium e na Declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs Nostra aetate. Judeus, cristãos e muçulmanos crêem num Deus Uno, criador de todos os homens. Possam os judeus, os cristãos e os muçulmanos descobrir um dos desejos divinos que é a unidade e a harmonia da família humana. Possam os judeus, os cristãos e os muçulmanos entrever no outro crente um irmão a respeitar e a amar, para darem – em primeiro lugar nas suas terras – um bom testemunho de serena convivência entre filhos de Abraão. O reconhecimento de um Deus Uno – em vez de ser instrumentalizado em conflitos sem fim, injustificáveis para um verdadeiro crente – pode, se for vivido com um coração puro, contribuir significativamente para a paz na região e para a convivência respeitosa dos seus habitantes.
20. Os vínculos entre os cristãos e os judeus são numerosos e profundos, ancorados num precioso património espiritual comum. Temos, sem dúvida, a fé num Deus único, criador, que Se revela e mostra um aliado do homem para sempre e do qual, por amor, quer a redenção. Há depois a Bíblia, que em grande parte é comum aos judeus e aos cristãos, considerada por uns e outros como a Palavra de Deus; aproxima-nos esta frequência comum da Sagrada Escritura. Por outro lado, Jesus – um filho do povo eleito – nasceu, viveu e morreu judeu (cf. Rm 9, 4-5). E Maria, sua mãe, é um convite mais a descobrirmos as raízes judaicas do cristianismo. Estes vínculos estreitos constituem um património único, de que todos os cristãos se orgulham e são devedores ao povo eleito. Se, por um lado, a origem judia do « Nazareno » permite aos cristãos saborear com alegria o mundo da Promessa, introduzindo-os de forma decisiva na fé do povo eleito e unindo-os ao mesmo, por outro, separa-os a pessoa e a identidade profunda do próprio Jesus, porque os cristãos reconhecem n’Ele o Messias, o Filho de Deus.
21. Convém que os cristãos se consciencializem mais da profundidade do mistério da Encarnação, para amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças (cf. Dt 6, 5). Cristo, o Filho de Deus, encarnou num povo, numa tradição de fé e numa cultura, cujo conhecimento não pode deixar de enriquecer a compreensão da fé cristã. Os cristãos desenvolveram este conhecimento com a contribuição específica recebida do próprio Cristo por meio da sua morte e ressurreição (cf. Lc 24, 26); mas devem permanecer cientes e reconhecidos pelas suas raízes. De facto o enxerto, para poder pegar no velho tronco (cf. Rm 11, 17-18), necessita da seiva que provém das raízes.
22. As relações entre as duas comunidades crentes ressentem-se das marcas deixadas pelas paixões humanas ao longo da história. Inumeráveis e repetidas foram as incompreensões e suspeitas recíprocas; são indesculpáveis e profundamente condenáveis as perseguições insidiosas ou violentas do passado. Todavia, não obstante estas tristes situações, as ajudas recíprocas ao longo dos séculos foram tão fecundas que contribuíram para o nascimento e o florescimento duma civilização e duma cultura comummente denominadas « judaico-cristãs »; como se estes dois mundos, que por diversos motivos se dizem diferentes ou contrários, tivessem decidido ligar-se para oferecerem um nobre vínculo à humanidade. Este vínculo, que ao mesmo tempo une e separa judeus e cristãos, deve abri-los a uma nova responsabilidade de uns pelos outros e de uns com os outros. Na verdade, os dois povos receberam a mesma bênção e promessas de eternidade tais, que permitem caminhar confiadamente para a fraternidade.
23. Fiel aos ensinamentos do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica olha com estima para os muçulmanos: prestam culto a Deus sobretudo com a oração, a esmola e o jejum, veneram Jesus como profeta mas sem reconhecer a sua divindade, e honram Maria, a sua mãe virginal. Sabemos que o encontro entre o islão e o cristianismo assumiu muitas vezes a forma de controvérsia doutrinal. Infelizmente, estas diferenças doutrinais serviram de pretexto a uns e a outros para justificarem, em nome da religião, práticas de intolerância, discriminação, marginalização e até de perseguição.
24. Apesar disso, os cristãos partilham com os muçulmanos a mesma vida quotidiana no Médio Oriente, onde a sua presença não é recente nem acidental, mas histórica. Parte integrante do Médio Oriente, os cristãos desenvolveram no decorrer dos séculos uma relação harmoniosa com o ambiente que pode servir de lição. Deixaram-se interpelar pela religiosidade dos muçulmanos e continuaram, com os meios próprios e na medida do possível, a viver e promover os valores evangélicos na cultura circundante; daqui resultou uma simbiose particular. Por isso, é justo reconhecer a contribuição judaica, cristã e muçulmana para a formação duma rica cultura própria do Médio Oriente.
25. Os católicos do Médio Oriente, que na sua maioria são cidadãos lá nascidos, têm o dever e o direito de participar plenamente na vida nacional, contribuindo para a edificação da própria pátria. Devem gozar de plena cidadania, não sendo tratados como cidadãos ou crentes de classe inferior. Como no passado – quando, pioneiros do renascimento árabe, eram parte integrante da vida cultural, económica e científica das várias civilizações da região – desejam continuar, hoje e sempre, a partilhar as suas experiências com os muçulmanos, prestando o seu contributo específico. É por causa de Jesus que os cristãos são sensíveis à dignidade da pessoa humana e à liberdade religiosa daí resultante; é por amor de Deus e da humanidade – honrando assim a dupla natureza de Cristo e tendo em vista a vida eterna – que os cristãos construíram escolas, hospitais e instituições de todo o tipo, onde todos, sem discriminação, são acolhidos (cf. Mt 25, 31-46). Pelas mesmas razões, os cristãos reservam particular atenção aos direitos fundamentais da pessoa humana; mas não é justo afirmar que estes direitos não passam de direitos cristãos do homem; são simplesmente direitos conexos com a dignidade de cada pessoa humana, de cada cidadão, independentemente da própria origem, convicção religiosa e opção política.
26. A liberdade religiosa é o apogeu de todas as liberdades. Trata-se de um direito sagrado e inalienável, que implica tanto a liberdade individual e colectiva de seguir a própria consciência em matéria de religião, como a liberdade de culto; inclui a liberdade de escolher a religião que se crê ser verdadeira e de manifestar publicamente a própria crença. Deve ser possível professar e manifestar livremente a própria religião e respectivos símbolos, sem pôr em perigo a vida e a liberdade pessoal. A liberdade religiosa radica-se na dignidade da pessoa; garante a liberdade moral e favorece o respeito mútuo. Os judeus, que foram vítimas de prolongadas hostilidades muitas vezes letais, não podem esquecer os benefícios da liberdade religiosa. Por sua vez, os muçulmanos partilham com os cristãos a convicção de que, em matéria religiosa, não é permitida qualquer coacção, e menos ainda com a força. A referida coacção, que pode assumir variadas e insidiosas formas no plano pessoal e social, cultural, administrativo e político, é contrária à vontade de Deus; é uma fonte de manipulação político-religiosa, de discriminação e violência que pode levar à morte. Deus quer a vida, não a morte; Ele proíbe o homicídio, incluindo o do homicida (cf. Gn 4, 15; 9, 5-6; Ex 20, 13).
27. Em diversos países, existe a tolerância religiosa, mas pouca influência tem porque restrita na sua área de aplicação; é necessário passar da tolerância à liberdade religiosa. Esta passagem não é uma porta aberta ao relativismo, como afirmam alguns; não é uma fenda aberta na fé religiosa, mas uma ponderação mais profunda da relação antropológica com a religião e com Deus. Não é uma violação das verdades originárias da fé, porque, não obstante as divergências humanas e religiosas, há um raio de verdade que ilumina todos os homens. Sabemos que a verdade fora de Deus não existe como uma realidade em si; seria um ídolo. A verdade só pode desenvolver-se na relação com o outro aberta a Deus, cuja vontade é exprimir a sua alteridade através e nos homens meus irmãos. Por isso não é oportuno afirmar de maneira exclusiva: « eu possuo a verdade ». A verdade não é propriedade de ninguém, mas é sempre um dom que nos chama a um caminho cada vez mais profundo de assimilação à verdade. Esta só pode ser conhecida e vivida na liberdade, pelo que não podemos impor a verdade ao outro; só no encontro de amor se desvenda a verdade.
28. O mundo inteiro mantém a sua atenção fixa no Médio Oriente, que anda à procura da própria estrada. Possa esta região mostrar que o viver juntos não é uma utopia e que a suspeita e o preconceito não são uma fatalidade. As religiões podem juntar-se para servir o bem comum, contribuindo para o desenvolvimento de toda a pessoa e a edificação da sociedade. Há séculos que os cristãos do Médio Oriente vivem o diálogo islâmico-cristão; para eles, é o diálogo da e na vida diária. Conhecem as suas vantagens e limitações. Mais recente é a vivência do diálogo judaico-cristão. Além disso, há muito tempo que existe um diálogo bilateral ou trilateral de intelectuais ou de teólogos judeus, cristãos e muçulmanos. Trata-se dum laboratório de encontros e pesquisas variadas que é preciso promover; neste sentido, oferecem uma contribuição eficaz os diversos Institutos ou Centros católicos – de filosofia, teologia e outros mais – que nasceram no Médio Oriente há muito tempo e funcionam em condições por vezes difíceis. Saúdo-os cordialmente e encorajo a continuar a sua obra de paz, sabendo que é necessário apoiar tudo o que combate a ignorância e favorece o conhecimento. Por certo, uma venturosa união do diálogo da vida diária com o diálogo dos intelectuais ou dos teólogos contribuiria, com a ajuda de Deus, para melhorar gradualmente a convivência judaico-cristã, judaico-islâmica, islâmico-cristã: tais são os votos que formulo e, por esta intenção, rezo.