O SÉCULO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

O SÉCULO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

82. A acelerada transformação tecnológica e social dos últimos dois séculos, cheia de trágicas contradições, não foi apenas sofrida pelos pobres, mas também por eles enfrentada e pensada. Os movimentos de trabalhadores, mulheres e jovens, assim como a luta contra a discriminação racial levaram a uma nova consciência da dignidade daqueles que estão à margem. Também o contributo da Doutrina Social da Igreja tem em si esta raiz popular que não se pode esquecer: seria inimaginável a releitura da Revelação cristã nas modernas circunstâncias sociais, laborais, económicas e culturais sem leigos cristãos envolvidos com os desafios do seu tempo. Ao seu lado, atuaram religiosas e religiosos, testemunhas de uma Igreja em saída dos caminhos já percorridos. A mudança de época que enfrentamos hoje torna ainda mais necessária a interação contínua entre batizados e Magistério, entre cidadãos e peritos, entre povo e instituições. Em particular, é preciso reconhecer novamente que a realidade se vê melhor a partir das periferias e que os pobres são sujeitos de uma inteligência específica, indispensável à Igreja e à humanidade.

 

83. O Magistério dos últimos cento e cinquenta anos oferece um verdadeiro tesouro de ensinamentos sobre os pobres. Deste modo, os Bispos de Roma fizeram-se voz de novas consciências, passadas pelo crivo do discernimento eclesial. Por exemplo, na Carta encíclica Rerum novarum (1891), Leão XIII abordou a questão do trabalho, expondo a situação intolerável de muitos operários da indústria e propondo o estabelecimento de uma ordem social justa. Nesta linha se manifestaram também outros Pontífices. Com a Encíclica Mater et Magistra (1961), São João XXIII fez-se promotor de uma justiça de dimensões mundiais: os países ricos não podiam permanecer indiferentes face aos países oprimidos pela fome e pela miséria, mas eram chamados a socorrê-los generosamente com todos os seus bens.

 

84. O Concílio Vaticano II representa uma etapa fundamental no discernimento eclesial sobre os pobres, à luz da Revelação. Embora nos documentos preparatórios esse tema fosse secundário, São João XXIII chamou a atenção para o mesmo na Radiomensagem de 11 de setembro de 1962, a um mês da abertura do Concílio, com palavras inesquecíveis: «A Igreja apresenta-se como é e como quer ser, como Igreja de todos e particularmente Igreja dos pobres». Houve, então, o grande trabalho de Bispos, teólogos e peritos preocupados com a renovação da Igreja – com o apoio do próprio São João XXIII – que reorientou o Concílio. É fundamental a natureza cristocêntrica, isto é, doutrinal e não apenas social, de tal reflexão. Efetivamente, numerosos Padres conciliares favoreceram a consolidação da consciência, bem expressa pelo cardeal Lercaro na sua intervenção memorável de 6 de dezembro de 1962, de que «o mistério de Cristo na Igreja sempre foi e continua a ser – e hoje de modo especial – o mistério de Cristo presente nos pobres», e de que «não se trata de um tema qualquer, mas, em certo sentido, é o único tema de todo o Vaticano II». O Arcebispo de Bolonha, preparando o texto desta intervenção, anotava: «Esta é a hora dos pobres, dos milhões de pobres que estão em toda a terra, esta é a hora do mistério da Igreja mãe dos pobres, esta é a hora do mistério de Cristo, sobretudo no pobre». Desse modo, apresentava-se a necessidade de uma nova forma eclesial, mais simples e sóbria, que envolvesse todo o povo de Deus e a sua figura histórica. Uma Igreja mais parecida com o seu Senhor do que com os poderes mundanos, propensa a estimular em toda a humanidade um compromisso concreto para a solução do grande problema da pobreza no mundo.

 

85. São Paulo VI, por ocasião da abertura da segunda sessão do Concílio, retomou o tema levantado pelo seu predecessor, ou seja, que a Igreja olha com particular interesse «para os pobres, para os necessitados, para os aflitos, para os famintos, os que sofrem, os encarcerados, os que têm fome; isto é, olha para toda a humanidade que sofre e chora, pois a Igreja sabe que esta lhe pertence, por direito evangélico». Na Audiência Geral de 11 de novembro de 1964, ele sublinhou que «o pobre é representante de Cristo» e, associando a imagem do Senhor nos últimos à que se manifesta no Papa, afirmou: «A representação de Cristo no pobre é universal, todo o pobre reflete Cristo; a do Papa é pessoal. […] O pobre e Pedro podem coincidir, podem ser a mesma pessoa, revestida de uma dupla representação: a da pobreza e a da autoridade». Deste modo, o vínculo intrínseco entre a Igreja e os pobres ficava simbolicamente expresso com uma clareza inédita.

 

86. Na Constituição pastoral Gaudium et spes, o Concílio, atualizando a herança dos Padres da Igreja, reafirmou com força a destinação universal dos bens da terra e a função social da propriedade que dela deriva: «Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos [...] Por esta razão, quem usa desses bens, não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar não só a si, mas também aos outros. De resto, todos têm o direito de ter uma parte de bens suficientes para si e suas famílias. [...] Aquele, porém, que se encontra em extrema necessidade, tem direito de tomar, dos bens dos outros, o que necessita. [...] De resto, a mesma propriedade privada é de índole social, fundada na lei do destino comum dos bens. O desprezo deste carácter social foi muitas vezes ocasião de cobiças e de graves desordens». Esta convicção é reafirmada por São Paulo VI na Encíclica Populorum progressio, onde lemos que ninguém pode considerar-se com o «direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário». No seu discurso à ONU, o Papa Montini apresentou-se como o advogado dos povos pobres, instando a comunidade internacional a construir um mundo solidário.

 

87. Com São João Paulo II, consolida-se, pelo menos no âmbito doutrinário, a relação preferencial da Igreja com os pobres. Com efeito, o seu magistério reconheceu que a opção pelos pobres é uma «forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja». Na Encíclica Sollicitudo rei socialis, também escreve que hoje, dada a dimensão mundial que a questão social assumiu, «este amor preferencial, com as decisões que ele nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem-teto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor: não se pode deixar de ter em conta a existência destas realidades. Ignorá-las significaria tornar-nos como o “rico epulão”, que fingia não conhecer o pobre Lázaro, que jazia ao seu portão (cf. Lc 16, 19-31)». O seu ensinamento sobre o trabalho adquire especial relevância quando nos propomos pensar no papel ativo dos pobres na renovação da Igreja e da sociedade, deixando para trás o paternalismo da mera assistência às suas imediatas necessidades. Na Encíclica Laborem exercens, ele afirma que «o trabalho humano é uma chave, provavelmente a chave essencial, de toda a questão social».

 

88. Diante das múltiplas crises que assinalaram o início do terceiro milénio, a leitura de Bento XVI torna-se mais marcadamente política. Assim, na Carta encíclica Caritas in veritate, afirma que «ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas necessidades reais». Além disso, observa que «a fome não depende tanto de uma escassez material, como sobretudo da escassez de recursos sociais, o mais importante dos quais é de natureza institucional; isto é, falta um sistema de instituições económicas que seja capaz de garantir um acesso regular, e adequado do ponto de vista nutricional, à alimentação e à água e também de enfrentar as carências relacionadas com as necessidades primárias e com a emergência de reais e verdadeiras crises alimentares provocadas por causas naturais ou pela irresponsabilidade política nacional e internacional».

 

89. O Papa Francisco reconheceu como, nas últimas décadas, além do magistério dos Bispos de Roma, também se tornaram cada vez mais frequentes as tomadas de posição por parte das Conferências Episcopais nacionais e regionais sobre este tema. Ele mesmo, por exemplo, pôde testemunhar pessoalmente o empenho particular do episcopado latino-americano em repensar a relação da Igreja com os pobres. No pós-Concílio, em quase todos os países da América Latina, sentiu-se com muita força a identificação da Igreja com os pobres e a participação ativa na sua redenção. Era o próprio coração da Igreja que se movia diante de tantos pobres afligidos pelo desemprego, subemprego e salários miseráveis, obrigados a viver em condições deploráveis. O martírio de São Oscar Romero, Arcebispo de San Salvador, foi ao mesmo tempo um testemunho e uma exortação viva para a Igreja. Ele sentia como próprio o drama da grande maioria dos seus fiéis, fazendo deles o centro da sua opção pastoral. As Conferências do Episcopado Latino-Americano em Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida constituem etapas significativas também para toda a Igreja. Eu mesmo, missionário no Peru durante tantos anos, devo muito a este caminho de discernimento eclesial, que o Papa Francisco com sabedoria soube unir ao de outras Igrejas particulares, especialmente do chamado Sul global. Gostaria, agora, de retomar dois temas específicos deste magistério episcopal.

 

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