37. Mais do que salvar o velho multilateralismo, parece que o desafio hoje seja redesenhá-lo e recriá-lo à luz da nova situação global. Convido-vos a reconhecer que «muitos grupos e organizações da sociedade civil ajudam a compensar as debilidades da Comunidade Internacional, a sua falta de coordenação em situações complexas, a sua carência de atenção relativamente a direitos humanos fundamentais». A propósito, o processo de Otava contra o uso, a elaboração e o fabrico das minas antipessoais é um exemplo que demonstra como a sociedade civil e as suas organizações sejam capazes de criar dinâmicas eficazes que a ONU não consegue. Assim o princípio de subsidiariedade aplica-se também à relação global-local.
38. A médio prazo, a globalização propicia intercâmbios culturais espontâneos, maior conhecimento mútuo e modalidades de integração dos povos que levarão a um multilateralismo «a partir de baixo» e não meramente decidido pelas elites do poder. Os pedidos que emergem a partir de baixo em todo o mundo, onde pessoas comprometidas dos mais diversos países se ajudam e sustentam mutuamente, podem acabar por fazer pressão sobre os fatores de poder. Espera-se que isto possa acontecer no que diz respeito à crise climática. Por isso, reafirmo que, «se os cidadãos não controlam o poder político – nacional, regional e municipal –, também não é possível combater os danos ambientais».
39. A cultura pós-moderna gerou uma nova sensibilidade para com os mais frágeis e menos dotados de poder. Isto relaciona-se com a minha insistência, na carta encíclica Fratelli tutti, sobre o primado da pessoa humana e a defesa da sua dignidade, independentemente das circunstâncias. É outra forma de convidar ao multilateralismo para se resolverem os verdadeiros problemas da humanidade, procurando sobretudo o respeito pela dignidade das pessoas, de tal modo que a ética prevaleça sobre os interesses locais ou contingentes.
40. Não se trata de substituir a política. As potências emergentes estão a tornar-se cada vez mais relevantes e são realmente capazes de obter resultados significativos na resolução de problemas concretos, como algumas delas demonstraram na pandemia. O próprio facto de as respostas aos problemas poderem vir de qualquer país, por mais pequeno que seja, leva a reconhecer o multilateralismo como um caminho inevitável.
41. A velha diplomacia – também ela em crise – continua a demonstrar a sua importância e necessidade. Ainda não conseguiu gerar um modelo de diplomacia multilateral que responda à nova configuração do mundo, mas, se for capaz de se reformular, deverá ser parte da solução, pois a própria experiência de séculos não pode ser descartada.
42. O mundo está a tornar-se tão multipolar e, simultaneamente, tão complexo que é necessário um quadro diferente para uma cooperação eficaz. Não basta pensar nos equilíbrios de poder, ocorre também responder aos novos desafios e reagir com mecanismos globais aos desafios ambientais, sanitários, culturais e sociais, sobretudo para consolidar o respeito dos direitos humanos mais elementares, dos direitos sociais e do cuidado da casa comum. Trata-se de estabelecer regras universais e eficazes para garantir esta proteção mundial.
43. Tudo isto pressupõe que se adote um novo procedimento para a tomada de decisões e a legitimação das mesmas, porque o procedimento estabelecido há vários decénios não é suficiente nem parece ser eficaz. Neste contexto, são necessários espaços de diálogo, consulta, arbitragem, resolução dos conflitos, supervisão e, em resumo, uma espécie de maior «democratização» na esfera global, para expressar e incluir as diversas situações. Deixará de ser útil apoiar instituições que preservem os direitos dos mais fortes, sem cuidar dos direitos de todos.