RESSONÂNCIAS DA PALAVRA NA HISTÓRIA

RESSONÂNCIAS DA PALAVRA NA HISTÓRIA

102. Consideremos alguns dos efeitos que esta Palavra de Deus produziu na história da fé cristã. Vários Padres da Igreja, sobretudo da Ásia Menor, mencionaram a chaga do lado de Jesus como a origem da água do Espírito: a Palavra, a sua graça e os sacramentos que a comunicam. A força dos mártires vive da «fonte celeste de água viva que brota das entranhas de Cristo», ou, como traduz Rufino, «das fontes celestes e eternas que procedem das entranhas de Cristo». Os fiéis, que renascemos pelo Espírito, viemos dessa fenda do rochedo, «saímos do ventre de Cristo». O seu lado ferido, que interpretamos como o seu coração, está cheio do Espírito Santo, e a partir dele chegam até nós rios de água viva: «Em Cristo permanece a fonte de todo o Espírito Santo». Mas o Espírito que recebemos não nos afasta do Senhor ressuscitado, antes nos enche d’Ele, porque, ao bebermos do Espírito, bebemos o próprio Cristo: «Bebe Cristo, porque é a rocha que jorra água; bebe Cristo, porque é a fonte da vida; bebe Cristo, porque é o rio cujo ímpeto alegra a cidade de Deus; bebe Cristo, porque é a paz; bebe Cristo, porque do seu ventre brota um rio de água viva».

 

103. Santo Agostinho abriu o caminho para a devoção ao Sagrado Coração como lugar de encontro pessoal com o Senhor. Ou seja, para ele o lado de Cristo não é só fonte de graça e de sacramentos, mas personaliza-o, apresentando-o como símbolo da união íntima com Cristo, como lugar de um encontro amoroso. É aí que reside a origem da sabedoria mais preciosa, que é conhecê-Lo. Com efeito, Agostinho escreve que João, o amado, quando inclinou a sua cabeça sobre o peito de Jesus, durante a última ceia, aproximou-se do lugar secreto da sabedoria. Não se trata de uma simples contemplação intelectual de uma verdade teológica. São Jerónimo explica que uma pessoa capaz de contemplar «não retira das correntes de água nenhum deleite, mas bebe a água viva do lado do Senhor».

 

104. São Bernardo retomou o simbolismo do lado trespassado do Senhor, entendendo-o explicitamente como revelação e dom do amor do seu Coração. Através da chaga, ele torna-se acessível a cada um de nós e é possível fazer nosso o grande mistério do amor e da misericórdia: «O que a mim me falta, eu extraio das entranhas do Senhor, pois estas transbordam misericórdia e não faltam fendas pelas quais ela passa. Trespassaram-lhe as mãos e os pés, perfuraram-lhe o lado com uma lança. E por essas fendas posso extrair mel da pedra e óleo da rocha duríssima, isto é, posso saborear e ver quão suave é o Senhor [...] O ferro trespassou-lhe a alma, e aproximou-se do seu coração, para que não deixe já de saber como se compadecer das minhas fraquezas. O segredo do seu coração é patente através das chagas do corpo, é patente o grande sacramento da piedade, são patentes as vísceras de misericórdia do nosso Deus».

 

105. Isto reaparece de forma especial em Guilherme de Saint-Thierry, o qual convidava a entrar no Coração de Jesus, que nos alimenta no seu próprio seio. Não é de admirar, se recordamos que para este autor «a arte do amor é a arte das artes [...]. Este mesmo amor é incutido pelo Criador [...]. Com efeito, o amor é uma força da alma, que a conduz como que por um peso natural ao lugar e ao fim que lhe são próprios». Esse lugar que lhe é próprio, onde o amor reina em plenitude, é o Coração de Cristo: «Aonde pois, Senhor, conduzis aqueles que abraçais e estreitais em vossos braços, senão para o vosso coração? O vosso coração, Jesus, é aquele doce maná da vossa divindade (cf. Heb 9, 4), que guardais no vosso interior, no cofre áureo da vossa alma que supera toda a sabedoria. Felizes os que conduzis até lá com o vosso abraço. Felizes os que, imersos nestas profundezas, foram escondidos por Vós dentro do Vosso coração».

 

106. São Boaventura une as duas linhas espirituais em torno do Coração de Cristo: ao mesmo tempo que o apresenta como fonte dos sacramentos e da graça, propõe que esta contemplação se torne uma relação de amigos, um encontro pessoal de amor.

 

107. Por um lado, ajuda-nos a reconhecer a beleza da graça e dos sacramentos que brotam daquela fonte de vida que é o lado ferido do Senhor: «Para que do lado de Cristo morto na cruz se formasse a Igreja e se cumprisse a palavra da Escritura que diz: “Hão de olhar para Aquele que trespassaram”, a divina providência permitiu que um dos soldados lhe abrisse com a lança o lado sacrossanto e dele fizesse brotar sangue e água. Este é o preço da nossa salvação, saído daquela divina fonte, isto é, do íntimo do seu Coração, para dar aos sacramentos da Igreja o poder de conferir a vida da graça e se tornar para aqueles que vivem em Cristo uma fonte de água viva que jorra para a vida eterna».

 

108. Depois convida-nos a dar mais um passo, para que o acesso à graça não se torne algo de mágico, ou uma espécie de emanação neoplatónica, mas uma relação direta com Cristo, habitando no seu Coração, pois quem bebe é amigo de Cristo, é um coração amoroso: «Levanta-te, pois, tu que amas a Cristo, sê como a pomba que faz o seu ninho na borda do rochedo, e aí, como o pássaro que encontrou sua morada, não cesses de estar vigilante; aí esconde, como a andorinha, os filhos nascidos do casto amor».

 

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