108. Numa época particularmente difícil para a Igreja de Roma, quando as instituições imperiais estavam a ruir sob a pressão dos bárbaros, o Papa São Gregório Magno advertiu assim os seus fiéis: «Todos os dias podemos encontrar Lázaro, se o procuramos, e todos os dias nos deparamos com ele, mesmo sem o procurar. Eis que os pobres que se apresentam de forma insistente, a fazer-nos pedidos, poderão um dia interceder por nós. […] Não desperdiceis, portanto, as oportunidades de agir com misericórdia e não negligencieis os remédios que recebestes». Ele desafiava corajosamente os preconceitos disseminados contra os pobres, como aquele que os considerava responsáveis pela sua própria miséria: «Quando virdes os pobres a fazer algo repreensível, não os desprezeis nem desconfieis deles, pois a frágua da pobreza talvez esteja a purificar o que eles fazem contraindo culpas, mesmo que muito leves». Com frequência, o bem-estar torna-nos cegos, a ponto de pensarmos que a nossa felicidade só pode ser alcançada se conseguirmos viver sem os outros. Nesse sentido, os pobres podem ser para nós como mestres silenciosos, reconduzindo o nosso orgulho e a nossa arrogância a uma conveniente humildade.
109. Se é verdade que os pobres são sustentados por aqueles que têm meios económicos, certamente também é possível afirmar o contrário. Esta é uma experiência surpreendente, testemunhada pela tradição cristã, e que se torna uma verdadeira reviravolta na nossa vida pessoal, quando percebemos que são precisamente os pobres que nos evangelizam. De que modo? No silêncio da sua condição, eles colocam-nos diante da nossa fraqueza. O idoso, por exemplo, com a fragilidade do seu corpo, lembra-nos a nossa vulnerabilidade, ainda que a tentemos esconder por trás do bem-estar ou das aparências. Além disso, os pobres fazem-nos refletir sobre a inconsistência daquele orgulho agressivo com que muitas vezes enfrentamos as dificuldades da vida. Em suma, eles revelam a nossa precariedade e o vazio de uma vida aparentemente protegida e segura. A este respeito, ouçamos novamente São Gregório Magno: «Ninguém, portanto, se sinta seguro dizendo: “eu não roubo os outros, mas usufruo apenas dos bens recebidos licitamente”, pois o rico epulão não foi punido porque quis para si os bens alheios, mas por se ter descuidado de si mesmo depois de ter recebido tantas riquezas. A sua condenação ao inferno foi determinada porque, na felicidade, não conservou o sentimento do temor, tornou-se arrogante pelos dons recebidos e não teve qualquer sentimento de compaixão».
110. Para nós, cristãos, a questão dos pobres remete-nos à essência da nossa fé. A opção preferencial pelos pobres, ou seja, o amor que a Igreja tem por eles, como ensinava São João Paulo II, «é decisivo e pertence à sua constante tradição, impele-a a dirigir-se ao mundo no qual, apesar do progresso técnico-económico, a pobreza ameaça assumir formas gigantescas». A realidade é que, para os cristãos, os pobres não são uma categoria sociológica, mas a própria carne de Cristo. Com efeito, não basta limitar-se a enunciar de modo genérico a doutrina da encarnação de Deus. Para entrar verdadeiramente neste mistério, é preciso especificar que o Senhor se faz carne que tem fome e sede, que está doente e na prisão. «A Igreja pobre para os pobres começa pelo dirigir-se à carne de Cristo. Se nos fixarmos na carne de Cristo, começamos a compreender qualquer coisa, a compreender o que é esta pobreza, a pobreza do Senhor. E isso não é fácil!».
111. O coração da Igreja, por sua própria natureza, é solidário com os pobres, excluídos e marginalizados, com todos aqueles que são considerados “descartáveis” pela sociedade. Os pobres ocupam um lugar central na Igreja, porque «deriva da nossa fé em Cristo, que se fez pobre e sempre se aproximou dos pobres e marginalizados, a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade». No coração de cada fiel encontra-se «a exigência de ouvir este clamor [que] deriva da própria obra libertadora da graça em cada um de nós, pelo que não se trata de uma missão reservada apenas a alguns».
112. Por vezes, em alguns movimentos ou grupos cristãos, nota-se a falta ou mesmo a ausência de compromisso pelo bem comum da sociedade e, em particular, pela defesa e promoção dos mais fracos e desfavorecidos. A este respeito, é preciso recordar que a religião, especialmente a cristã, não pode ser confinada à esfera privada, como se os fiéis não devessem interessar-se também pelos problemas relacionados com a sociedade civil e pelos acontecimentos que dizem respeito aos cidadãos.
113. Na realidade, «qualquer comunidade da Igreja, na medida em que pretender subsistir tranquila sem se ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja a inclusão de todos, correrá também o risco da sua dissolução, mesmo que fale de temas sociais ou critique os Governos. Facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios».
114. Não estamos a falar apenas da assistência e do necessário compromisso com a justiça. Os fiéis devem responder também por uma outra forma de incoerência em relação aos pobres. Na verdade, «a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual […]. A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária». Todavia, tal atenção espiritual aos pobres é posta em causa por certos preconceitos, mesmo por parte de cristãos, porque nos sentimos mais à vontade sem os pobres. Há quem continue a dizer: “O nosso dever é rezar e ensinar a verdadeira doutrina”. Mas, desvinculando este aspecto religioso da promoção integral, acrescentam que só o Governo deveria cuidar deles, ou que seria melhor deixá-los na miséria e ensinar-lhes antes a trabalhar. Além disso, assumem-se, às vezes, critérios pseudocientíficos para dizer que a liberdade do mercado levará naturalmente à solução do problema da pobreza. Ou ainda, opta-se por uma pastoral das ditas elites, defendendo-se que, em vez de perder tempo com os pobres, é melhor cuidar dos ricos, dos poderosos e dos profissionais, para que, através deles, seja possível alcançar soluções mais eficazes. É fácil perceber a mundanidade que se esconde por trás destas opiniões: elas levam-nos a olhar para a realidade com critérios superficiais e desprovidos de qualquer luz sobrenatural, privilegiando relações que nos tranquilizam e buscando privilégios que nos favorecem.