Vês assim a que alturas chega o homem que atingiu o amor-amizade.Depois de ultrapassar o primeiro degrau, os pés de Cristo crucificado, atinge o segredo do coração, isto é, o segundo degrau, conforme representei o corpo de meu Filho.
Disse antes (16.1) que os degraus figuravam as três faculdades; agora mostro como significam (também) as três fases pelas quais passa o homem. Mas antes de ocupar-me do terceiro degrau - que é o da boca de Cristo - quero explicar-te qual a caminhada para o amor-amizade (18.2), como é vivido tal amor (18.3) e quais são os sinais reveladores da sua presença (18.4). Relativamente ao modo como se chega ao amor-amizade e filial, dá-se da seguinte maneira: inicialmente imperfeito, o homem vive no amor servil; com a perseverança e esforço, chega ao amor interesseiro das consolações (espirituais) no qual se compraz olhando-me como algo útil para si mesmo. Tal é o roteiro para quem quer chegar ao amor-amizade e filial. Este último é o amor perfeito; com ele alcança se a herança do reino. O amor filial inclui o amor-amizade; nesse sentido se passa do amor-amizade ao amor filial. Mas qual é a estrada?
Vou dizê-lo. Toda perfeição e virtude procede da caridade; a caridade alimenta-se de humildade; a humildade nasce do autoconhecimento e da vitória sobre o egoísmo da sensualidade. Para se atingir o amor filial é necessário pois, perseverar na cela do autoconhecimento. Nesta cela o homem conhecerá o meu perdão através do sangue de Cristo e atrairá sobre si pelo amor a minha caridade, procurará destruir em si toda má vontade espiritual e temporal. Fará como os apóstolos e Pedro que, depois da negação, chorou. Era um pranto imperfeito, que imperfeito permaneceu durante os quarenta dias que precederam a Ascenção. Depois que Jesus subiu ao Céu em sua humanidade, Pedro e os demais (apóstolos) fecharam-se no Cenáculo, esperando a vinda do Espírito Santo segundo a promessa feita por meu Filho. Ali permaneceram com as portas fechadas, cheios de medo, como acontece a todo homem antes de chegar ao verdadeiro amor. Ficaram perseverantes na oração humilde e contínua, até receber a plenitude do Espírito Santo. Então, livres do temor, passaram a seguir e pregar Cristo crucificado.
Também o homem que deseja atingir tal perfeição, por medo do castigo começa a chorar depois de abandonar o pecado mortal pelo arrependimento; em seguida, eleva-se à consideração de minha misericórdia, e nisto encontra consolação e prazer. É algo ainda imperfeito. Para que se encaminhe à perfeição, após os "quarenta dias" - que são os dois primeiros estados - aos poucos vou me afastando da alma quanto às consolações, sem retirar-lhe a graça.
Foi quanto Jesus revelou aos discípulos, ao dizer: "Irei e voltarei a vós" (Jo 14,27). Tudo quanto ele dizia a eles em particular, afirmava-o igualmente para todos os seus contemporâneos e às gerações futuras. "Irei e voltarei a vós", disse ele; e o fez. Voltou, quando o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos. De fato, já te disse (12.5) que o Espírito Santo não vem sozinho, mas com meu poder, com a sabedoria do Filho e com a própria clemência, pois ele procede do Pai e do Filho.
Pois bem, afirmo-te que, para libertar o homem da imperfeição (do amor servil e interesseiro), afasto-me da alma quanto às consolações. Quando se achava no pecado mortal, o pecador estava longe de mim; por sua culpa, eu me afastara dele quanto à graça. Havia-se fechado a porta do desejo por culpa sua, sem responsabilidade do sol divino. Ao tomar consciência das próprias trevas, ele abre as janelas, "vomita" a podridão do pecado na santa confissão, e então, pela graça, volto à sua alma. Se me afasto, é quanto às consolações, não quanto à graça, no modo explicado acima. Ajo assim para que a pessoa se humilhe, procure me com empenho, seja provada quanto à fé e se torne prudente. A tais alturas, se o cristão me amar desinteressadamente, com fé viva e desapego de si, alegrar-se-á nas adversidades, achando-se indigno de viver no sossego e descanso da mente. Mas este já é o segundo assunto dos três que falei antes (18.2).