1. Já vistes, filhas, a grande empresa que pretendemos ganhar. Que tais havemos de ser para que, aos olhos de Deus e do mundo, não nos tenham por muito atrevidas? Está claro que temos necessidade de trabalhar muito, e ajuda muito ter altos pensamentos para nos esforçarmos a que o sejam as obras. Pois, com tal que procuremos guardar perfeitamente a nossa Regra e Constituições com grande cuidado, espero no Senhor que Ele admitirá os nossos rogos. Não vos peço coisas novas, filhas minhas, senão que guardemos a nossa profissão, pois é a nossa vocação e aquilo a que estamos obrigadas, ainda que de guardar a guardar vá muito.
2. Diz a nossa primeira Regra que oremos sem cessara. Logo que se faça isto com todo o cuidado que pudermos, que é o mais importante, não se deixarão de cumprir os jejuns e disciplinas e o silêncio que manda a Ordem. Porque já sabeis que a oração, para ser verdadeira, se há-de amparar nisto: que regalo e oração não são compatíveis.
3. Nisto de oração é que me pedistes que diga alguma coisa. Em paga do que disser, peço-vos que observeis e leiais muitas vezes de boa vontade o que disse até agora. Antes de falar do interior, que é a oração, direi algumas coisas que são necessárias às que pretendem ir por este caminho, e tão necessárias são que, tendo-as, ainda mesmo que não sejam muito contemplatívas poderão ir muito adiante no serviço do Senhor, e é impossível, se não as tiverem, ser muito contemplativas; e quando pensarem que o são, estão muito enganadas. O Senhor me dê o Seu favor para isto e me ensine o que devo dizer, a fim de que seja para Sua glória, amen.
4. Não penseis, amigas e irmãs minhas, que serão muitas as coisas que vos recomendarei, porque, praza ao Senhor façamos as que os nossos Santos Padres ordenaram e guardaram, que por este caminho mereceram este nome. Erro seria buscar outro, ou aprendêlo alguém. Alongar-me-ei somente em declarar três, que são da mesma Constituição, porque importa muito entendamos o muito que nos convém guardá-las para possuirmos, interior e exteriormente, a paz que o Senhor tanto nos recomendou: uma é o amor de umas para com outras; outra, o desapego das coisas criadas; e a terceira, a verdadeira humildade que, embora a diga no fim, é a principal e as abrange todas.
5. Quanto à primeira, que é amar-vos muito umas às outras, vai nisto muito, muito; porque não há coisa enfadonha que não se passe com facilidade entre os que se amam, e forte há-de ser a coisa quando lhe causa enfado. E se este mandamento se guardasse no mundo como se deveria guardar, creio que aproveitaria muito para se guardarem os demais; mas, em mais ou em menos, nunca conseguimos guardá-lo com perfeição. Parece que em demasia, entre nós, não pode ser mau; traz, no entanto, consigo tanto mal e tantas imperfeições, que não creio o acredite senão quem tiver sido testemunha ocular. Aqui, faz o demónio muitos enredos, que, em consciências que tratam por alto de contentar a Deus, se sentem pouco e lhes parece virtude; mas as que tratam de perfeição, entendem-no muito bem, porque, pouco a pouco, tira a força à vontade e a impede que de todo se possa empregar em amar a Deus.
6. E em mulheres, creio deve ser isto ainda mais que nos homens; e causa danos muito notórios à Comunidade; porque daqui vem o não se amar tanto a todas, o sentir o agravo feito à amiga, o desejar ter com que lhe dar prazer, o buscar tempo para lhe falar e, muitas vezes, para lhe dizer quanto lhe quer e outras coisas impertinentes, mais do quanto ama a Deus. Porque estas grandes amizades poucas vezes vão ordenadas a se ajudarem a amarem mais a Deus; antes creio que o demónio as faz começar por criarem partidos nas religiões. Quando é para servir a Sua Majestade, logo se conhece que a vontade não é levada pela paixão, mas procura ajuda para vencer outras paixões.
7. E destas amizades quereria eu muitas onde há grandes conventos, que, nesta casa, onde não são mais de treze, nem o hãode ser, todas têm de ser amigas, todas se hão-de amar. Guardem-se destas particularidades, por amor do Senhor, por santas que sejam, que até entre irmãos costuma ser peçonha e nenhum proveito vejo nisso; e se são parentes, muito pior; é pestilência! E creiam-me, irmãs, que, embora isto vos pareça um extremo, nisso há grande perfeição e grande paz, e evitam-se muitas ocasiões às que não estão muito fortes. Se, porém, a nossa vontade se inclinar mais para uma que para outra (o que não poderá deixar de ser, pois é natural, e muitas vezes somos assim levadas a amar o mais ruim, se tem mais graças naturais), tenhamos muita mão em não nos deixarmos assenhorear por aquela afeição. Amemos as virtudes e o bom interiormente falando, e tenhamos sempre um cuidadoso empenho em não fazer caso de tudo quanto é exterior.
8. Não consintamos, ó irmãs, que a nossa vontade seja escrava de ninguém senão d'Aquele que a comprou com o Seu sangue. Olhem que, sem entenderem como, se acharão presas a não se poderem libertar. Oh valha-me Deus! As ninharias que daqui vêm não têm conta! E porque são tão miúdas, só quem as vê o entenderá e acreditará, não há para que dizê-las aqui. Somente direi que em qualquer uma será mau e, na prelada, pestilência.
9. Em atalhar estas parcialidades é preciso grande cuidado logo desde o princípio, quando começa a amizade; e isto mais com jeito e amor do que com rigor. Para remédio disto é grande coisa não estarem juntas, nem se falarem, a não ser nas horas marcadas, conforme o costume que agora temos, como manda a Regra, que é de não estarem juntas, senão cada uma na sua cela. Livrem-se, em S. José, de ter casa de lavor; porque, embora seja louvável costume, com mais facilidade se guarda o silêncio estando cada uma de per si, e acostumar-se à soledade é grande coisa para a oração; pois este há-de ser o fundamento desta casa e para isto nos juntamos, é preciso por o nosso cuidado em nos afeiçoarmos ao que a isto mais nos ajuda.
10. Voltando ao amarmo-nos umas às outras, parece coisa impertinente recomendá-lo; pois, que gente haverá tão rude que não se ganhe mútuo amor estando em contínuo trato e vivendo juntas e não tendo outras conversações nem outros tratos com pessoas de fora de casa e crendo que Deus nos ama e elas a Ele, pois, por Sua Majestade, deixaram tudo? Especialmente porque já por si a virtude convida sempre a ser amada, esta, espero que, com o favor de Deus, sempre a haverá nas desta casa. Assim nisto não há, a meu parecer, muito a recomendar.
11. Como há-de ser este amar-se e que coisa é «amor virtuoso», - aquele que eu desejo haja aqui - e em que veremos se temos esta virtude que é bem grande, pois Nosso Senhor tanto no-la recomendou e tão encarecidamente a Seus Apóstolos, quereria eu dizer agora um poucochinho, conforme a minha rudeza. Mas, se em outros livros tão por miúdo o encontrardes, não tomeis nada de mim, que, porventura, não sei o que digo.
12. De dois modos de amor é o que eu quero tratar: um é espiritual, porque parece que nenhuma coisa toca na sensualidade nem na ternura da nossa natureza, de modo a que lhe tirem a sua pureza; o outro é também espiritual, mas, junto com ele, vai a nossa sensualidade e fraqueza ou amor bom, que parece lícito, como o de parentes e amigos. Deste, já fica dito alguma coisa.
13. Do que é espiritual, sem que intervenha paixão alguma, quero eu agora falar, porque, em havendo paixão, vai desconcertado todo este concerto; e se tratamos com moderação e discrição com as pessoas virtuosas, especialmente confessores, é proveitoso. Mas, se no confessor se perceber tendência a alguma vaidade, tenham tudo por suspeito e, de modo algum, por boas que sejam suas conversações, se tenham com ele, mas confessar-se com brevidade e concluir. E o melhor seria dizer â Prelada que a alma não se acha bem com ele e mudar. Isto é o mais acertado, se se pode fazer sem lhe tocar na honra.
14. Em caso semelhante e outros em que, nas coisas dificultosas, o demónio poderia enredar e não se sabe que conselho tomar, o mais acertado será procurar falar a alguma pessoa que tenha letras; - pois, havendo necessidade, dá-se liberdade para isso -, e confessarse com ele e fazer o que lhe disser naquele caso; porque, como não se pode deixar de dar algum remédio, poder-se-ia errar muito fazendo coisas sem tomar conselho, especialmente no que toca em prejudicar alguém. E quantos erros se dão no mundo por não se fazer assim! Deixar de lançar mão de algum meio, não se sofre; porque, quando o demónio começa por aqui, não é para pouco dano se não se atalha com prontidão. E assim, o que eu já disse para procurar falar com outro confessor, é o mais acertado se houver disposição, e espero no Senhor que haverá.
15. Olhem que nisto vai muito, pois é coisa perigosa e um inferno e dano para todas. E digo que não esperem a compreender que o mal é muito, mas logo no princípio o atalhem por todas as vias que puderem e entenderem, com boa consciência podem fazê-lo. Mas espero no Senhor que Ele não permitirá que, pessoas que hão-de tratar sempre de oração, possam ter amizade, senão a quem for muito servo de Deus, que isto é muito certo, ou elas não têm oração, nem perfeição, conforme ao que se pretende nesta casa, porque, se não virem que ele entende a sua linguagem e é afeiçoado a falar de Deus, não lhe poderão ter amizade, porque não é seu semelhante. Mas se o é, com as pouquíssimas ocasiões que aqui haverá, ou será muito simples, ou não há-de querer desassossegar-se e desassossegar as servas de Deus.
16. Já que comecei afalar disto, que - como já disse - é grande o dano que o demónio pode fazer e muito tardio em se dar a conhecer, e assim, sem se saber como nem por onde, se pode ir estragando a perfeição. Porque, se este tal quer dar lugar a vaidades por ele as ter, tem tudo em pouco, ainda mesmo para os outros. Deus nos livre, por Quem Sua Majestade é, de coisas semelhantes! Isto seria o bastante para perturbar todas as religiosas, porque a consciência lhes diz o contrário do que diz o confessor e, se as constrangem a ter um só, não sabem que fazer nem como se sossegar; porque, quem as devia aquietar e remediar, é quem lhes faz dano. Bastas aflições destas deve haverem algumas partes; faz-me grande lástima, e assim não vos espanteis que eu ponha muito empenho em dar-vos a conhecer este perigo.