1 - O QUE É UM DEMÓNIO?

1 - O QUE É UM DEMÓNIO?

SUMMA DAEMONIACA

Tratado de Demonologia e Manual de Exorcistas

Por: JOSÉ ANTONIO FORTEA

 

O QUE É UM DEMÓNIO?

Um demónio é um ser espiritual de natureza angélica condenada eternamente. Não tem corpo, não existe no seu ser nenhum tipo de matéria subtil, nem nada semelhante à matéria, mas trata-se de uma existência de carácter inteiramente espiritual.

A palavra latina spiritus significa “sopro”, “hálito”. Dado que não têm corpo, os demónios não sentem a mínima inclinação para nenhum pecado que se cometa com o corpo. Portanto, a gula ou a luxúria são impossíveis neles. Podem tentar os seres humanos a pecar nessas matérias, mas só compreendem esses pecados de um modo meramente intelectual, pois não têm sentidos corporais. Os pecados dos demónios, portanto, são exclusivamente espirituais.

Os demónios não foram criados maus, mas depois de terem sido criados foram submetidos a uma prova antes de lhes ser oferecida a visão da essência da divindade, pois antes da prova viam a Deus, mas não viam a Sua essência. O próprio verbo “ver” torna-se aproximativo, já que a visão dos anjos é uma visão intelectual. Como para muitos se tornará difícil entender o facto de poderem ver/conhecerem a Sua essência, poderíamos dizer, como exemplo, que eles viam a Deus como uma luz, que o ouviam como uma voz majestosa e santa, mas que o Seu rosto continuava sem se revelar. De qualquer maneira, embora não penetrassem na Sua essência, sabiam que era o seu Criador e que era santo, o Santo entre os Santos.

Antes de penetrarem na visão beatífica dessa essência divina, Deus pô-los à prova. Nessa prova uns obedeceram, outros desobedeceram. Os que desobedeceram de forma irreversível transformaram-se em demónios. Foram eles próprios que se transformaram no que são. Ninguém os fez assim.

    A psicologia dos anjos passou por uma série de fases antes de se transformarem em demónios. Estas fases deram-se deram-se, não no tempo material, mas no evo1. Ao dar-se no evo, a nós, humanos, estas fases parecer-nos-ão quase instantâneas. Mas o que a nós parece tão breve foi para eles muito longo.

 

As fases de transformação do anjo em demónio foram as seguintes:

No princípio invadi-os a dúvida de que talvez a desobediência à Lei divina fosse o melhor. O facto de voluntariamente aceitarem a possibilidade de que a desobediência a Deus fosse uma opção a considerar já significa um pecado em si mesmo. No princípio, a aceitação da dúvida constituiu um pecado venial que pouco a pouco foi evoluindo para um pecado mais grave. Mas no princípio nenhum deles, nesta primeira fase, estava disposto a afastar-se irreversivelmente, nem sequer o Diabo. Isso aconteceu mais tarde, quando se foi firmando neles o que a sua vontade havia escolhido apesar da advertência da sua inteligência, que lhes recordava que tal desobediência era contrária à razão. Mas as suas vontades foram-se afastando de Deus, e, como consequência, as suas inteligências foram aceitando como verdadeiro o mal que a sua vontade tinha escolhido. As suas inteligências foram-se consolidando no erro. A vontade de desobedecer foi-se cimentando, tornando-se cada vez mais profunda. E as suas inteligências iam procurando cada vez mais razões para que tudo isso se tornasse cada vez mais justificável.

Finalmente, esse processo levou ao pecado mortal, que se deu num momento concreto, através de um ato de vontade. Isto é, cada anjo chegou a um momento em que não só quis desobedecer, mas inclusivamente optou por ter uma existência à margem da Lei divina. Já não era um esfriamento do amor a Deus, já não era uma desobediência menor a algo determinado que se lhes tornasse difícil de aceitar, antes, na vontade de muitos deles surgiu a ideia de um destino à parte da Trindade, um destino autónomo.

   Os que perseveraram neste pensamento e decisão começaram um processo de justificação desta escolha. Entraram num processo em que trataram de se convencer de que Deus não era Deus. De que Deus era mais um espírito. De que podia ser o seu Criador, mas que n´Ele havia erros, arbítrios. Começavam a acariciar a possibilidade que surgira nas suas inteligências: a possibilidade de uma existência à parte de Deus e das suas normas.

A existência à parte de Deus aparecia como uma existência mais livre. As normas de Deus, a obediência a Ele e à Sua vontade, surgiam progressivamente como uma opressão. Deus começava a ser visto como um tirano do qual havia que libertar-se. Nesta nova fase de afastamento já não procuravam simplesmente um destino fora de Deus, mas o próprio Deus lhe parecia um obstáculo para alcançar a liberdade. Pensavam que a beleza e felicidade do mundo angélico teriam sido muito melhores sem um opressor. Porque é que havia um Espírito que se levantava acima dos demais espíritos? Porque é que a Sua vontade deve impor-se sobre a dos demais espíritos? Porque é que a Sua vontade deve impor-se sobre outras vontades? «Não somos crianças, não somos escravos», devem ter pensado. Deus já não era um elemento que tinham deixado para trás, antes começava a converter-se para eles no mal. E assim começaram a odiá-L´O. Os apelos de Deus dirigidos a estes anjos para que voltassem para Ele eram vistos como uma intromissão inaceitável. Nesta fase, o ódio em alguns espíritos cresceu mais, noutros menos.

 

    Pode surpreender que um anjo chegue a odiar Deus, mas há que entender que Deus já não era visto por eles como um bem, mas como um obstáculo, como uma opressão; Ele era visto como as cadeias dos mandamentos, como a falta de liberdade. Já não era visto como um Pai, mas como fonte de ordens e mandatos. O ódio nasceu com a energia das suas vontades, resistindo continuamente aos chamamentos de Deus que, como um Pai, os procurava. O ódio nasceu como reação lógica de uma vontade que tem de firmar-se na sua decisão de abandonar a casa paterna, para o dizer em termos que se tornem inteligíveis para nós. Ou seja, alguém que sai de casa, a princípio quer simplesmente sair, mas se o pai o chama uma e outra vez, o filho acaba por dizer “deixa-me em paz”. Deus chamava-os, pois sabia que quanto mais tempo as suas vontades estivessem afastadas d´Ele, mais se consolidariam no seu afastamento. Contudo, muitos dos anjos que se tinham afastado num primeiro momento voltaram.

 

 

 

Esta é a grande luta nos céus de que se fala em Apocalipse 12:

Travou-se então uma batalha no Céu: Miguel e os seus anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou juntamente com os seus anjos, mas foi derrotado, e no Céu não houve mais lugar para eles. Esse grande Dragão é a antiga Serpente, é o chamado Diabo ou Satanás. É aquele que seduz todos os habitantes da terra. O Dragão foi expulso para a Terra, e os anjos do Dragão foram expulsos com ele.

 

  Como podem os anjos lutar entre si? Se não têm corpo, que armas podem ser usadas? O anjo é espírito, o único combate que se pode travar entre eles é intelectual. As únicas armas que podem brandir são os argumentos intelectuais. Essa luta foi uma luta intelectual. Deus enviava a graça a cada anjo que voltasse à fidelidade ou se mantivesse nela. Os anjos davam argumentos aos rebeldes para que voltassem à obediência. Os anjos rebeldes apresentavam as suas razões para fundamentarem a sua postura e para introduzirem a rebelião entre os fiéis. Nesta angelical conversão de milhares de milhões de anjos, houve baixas para ambos os lados: anjos rebeldes regressaram à obediência, anjos fiéis foram convencidos com a sedução de raciocínios malignos.

      A transformação em demónios foi progressiva. Com o passar do tempo – o evo é um tipo de tempo – uns odiaram mais a Deus, outros menos. Uns tornaram-se mais soberbos, outros não tanto. Cada anjo rebelde foi-se corrompendo mais e mais, cada um em pecados específicos, ao contrário dos anjos fiéis, que se foram santificando progressivamente. Uns anjos santificaram-se mais numa virtude, outros noutra. Cada anjo fixou-se num aspeto ou outro da divindade. Cada anjo amou com uma medida de amor. Por isso no grupo dos fiéis começaram a existir muitas distinções, conforme a intensidade das virtudes que cada anjo praticou.

     Cada anjo tinha a sua própria natureza dada por Deus, mas cada um santificou-se numa medida própria segundo a graça de Deus e a correspondência da própria vontade. E acontece exatamente o contrário no caso dos demónios. Cada um recebeu de Deus uma natureza, mas cada um corrompeu-se segundo os seus próprios caminhos extraviados.

    Por esta razão, a batalha terminou quando cada um deles se fechou em si de forma irreversível. Chegou um momento em que já só havia mudanças acidentais em cada ser espiritual. Chegou um momento em que cada demónio se manteve firme na sua imprudência, nos seus ciúmes, no seu ódio, na sua inveja, na sua soberba, na sua egolatria…

    A batalha acabara. Podiam continuar a discutir, a falar, a disputar, a exortar-se durante milhares de anos, para falarmos em termos humanos, mas já só haveria mudanças acidentais.

    Foi então que os anjos foram admitidos à presença divina, e aos demónios permitiu-se-lhes que se afastassem, foram abandonados à situação de prostração moral em que cada um se situara.

    Como se pode observar, não se trata de os demónios serem enviados para um lugar fechado com chamas e aparelhos de tortura, mas de os deixar como estão, de os abandonar à sua liberdade, à sua vontade. Não são conduzidos a parte alguma. Os demónios não ocupam lugar, não há aonde levá-los. Não há aparelhos de tortura, nem chamas que os possam atormentar, nem cadeias que os amarrem. Tão-pouco os anjos fiéis entram em algum sítio. Simplesmente recebem a graça da visão beatífica. Tanto o Céu como o inferno dos demónios são estados. Cada anjo transporta no seu interior o seu próprio céu, esteja aonde estiver. Cada demónio esteja onde estiver, leva dentro do seu espírito o seu próprio inferno.

     O momento em que não há retorno possível, é quando um anjo vê a essência de Deus. Porque depois de ver Deus já nada o poderá fazer mudar de opinião. Depois de ter visto Deus, ninguém poderá escolher algo que O ofenda no mais ínfimo que seja. A inteligência compreenderia que seria escolher estrume face a um tesouro. Depois desse momento o pecado é impossível. O anjo, antes de entrar no céu, compreendia Deus, compreendia o que era, o que supunha a Sua santidade, omnipotência, sabedoria, amor… Depois de ter sido aceite para contemplar a Sua essência, não só a compreende, como além disso a vê. Isto é, vê a Sua santidade, o Seu amor, a Sua sabedoria, etc. O espírito, ao contemplá-lo, enche-se de tal amor, de uma veneração tal, que nunca, sob nenhum conceito, quer separar-se d´Ele. Por isso o pecado passa a ser impossível.

    O demónio fica irremissivelmente ligado ao que escolheu, desde que Deus decide não insistir mais. Chega um momento em que Deus decide não enviar mais graças de arrependimento, pois cada uma delas só pode ser superada, só pode ser vencida cimentando-se mais no ódio. Chega um momento em que Deus compreende que enviar mais graças só serve para que para que o demónio reforce mais aquilo que a sua vontade escolheu. Chega um momento em que Deus Amor vira as costas 2 e deixa que o Seu filho siga o caminho dele. Deixa que o demónio siga a vida dele à parte.

 

     Por um lado poderíamos dizer que não há um momento único em que o anjo se transforma em demónio, antes trata-se de um processo lento, gradual, evolutivo. Mas, por outro lado, por longo que tenha sido esse processo prévio (e posterior), há um momento preciso em que o espírito angélico tem de tomar a decisão de rejeitar ou não o seu Criador.

    Já se disse que nesse processo há lugar a retrocessos; essa é a celestial batalha de que fala Ap 12, 7-9. Mas chega um momento dessa batalha em que os demónios se afastam cada vez mais. Não teria sentido continuar a insistir. O Criador respeita a liberdade de cada um.

    O demónio costuma aparecer disforme em pinturas e esculturas, de um modo muito adequado de o representar; pois é um espírito angélico deformado. Continua a ser anjo, foram só a sua inteligência e a sua vontade que se deformaram. No resto continua a ser tão anjo como quando foi criado. Definitivamente, o demónio não é mais do que um anjo que decidiu ter o seu destino longe de Deus. É um anjo que quer viver livre, sem amarras. A solidão interior em que se encontrará pelos séculos dos séculos, os ciúmes de compreender que os fiéis gozam da visão de um Ser infinito, levam-no a censurar o seu pecado uma e outra vez. Odeia-se a si mesmo, odeia Deus, odeia os que lhe deram razões para se afastar.

     Mas nem todos sofrem de igual modo. Durante a batalha uns anjos deformaram-se mais do que outros. Os que mais se deformaram, os mais disformes, são os que mais sofrem. Mas é necessário voltar a recordar que só é deformidade da inteligência e da vontade.

     A inteligência está deformada, obscurecida pelas próprias razões com que se justificou a sua marcha, a sua “libertação”. A vontade impôs à inteligência a sua decisão, e a inteligência viu-se impelida a justificar a referida decisão. A inteligência funcionou como um mecanismo de justificação, de argumentação daquilo que a vontade a fustigava a aceitar. Como se vê, o processo tem uma extraordinária similitude como o processo de aviltamento dos humanos. Não esqueçamos que nós, humanos, somos um espírito num corpo. Se prescindirmos dos pecados relativos ao corpo, o processo interno psicológico que leva uma pessoa boa a acabar na máfia, em guarda num campo de concentração, ou em terrorista, é em substância o mesmo processo.

     Em substância, o conceito de pecado, de tentação, de evolução da própria iniquidade é igual no espírito angélico e no espírito do ser humano. Os pecados do Homem são sempre pecados do espírito, embora os cometa com o corpo, já que o corpo é tão só um instrumento do que o espírito decidiu com o seu livre arbítrio.

     Assim como a criança atravessa um período de infância, assim o anjo que acaba de ser criado não tem experiência. A pessoa humana tem tentações de outras pessoas, também os anjos dos seus semelhantes. O Homem pode pecar por estruturas mentais tais como a Pátria, a honra da família ou o bem-estar de um filho. O espírito angélico também tinha atrás de si grandes construções intelectuais, que embora distintas das humanas, representavam uma complexa relação angélica de todo este mundo humano que conhecemos.

    Nós, os humanos, somos também espírito, embora tenhamos um corpo e só temos de olhar para o nosso interior para compreender como alguém pode cair no pecado. Como alguém pode envilecer-se. É então que o pecado dos anjos nos começa a parecer mais próximo e já não se nos torna tão incompreensível. 

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Por: JOSÉ ANTONIO FORTEA


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