EUCARISTIA, PÃO REPARTIDO PARA A VIDA DO MUNDO
88. « O pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo » (Jo 6, 51). Com estas palavras, o Senhor revela o verdadeiro significado do dom da sua vida por todos os homens; as mesmas mostram-nos também a compaixão íntima que Ele sente por cada pessoa. Na realidade, os Evangelhos transmitem-nos muitas vezes os sentimentos de Jesus para com as pessoas, especialmente doentes e pecadores (Mt 20, 34; Mc 6, 34; Lc 19, 41). Ele exprime, através dum sentimento profundamente humano, a intenção salvífica de Deus que deseja que todo o homem alcance a verdadeira vida. Cada celebração eucarística actualiza sacramentalmente a doação que Jesus fez da sua própria vida na cruz por nós e pelo mundo inteiro. Ao mesmo tempo, na Eucaristia, Jesus faz de nós testemunhas da compaixão de Deus por cada irmão e irmã; nasce assim, à volta do mistério eucarístico, o serviço da caridade para com o próximo, que « consiste precisamente no facto de eu amar, em Deus e com Deus, a pessoa que não me agrada ou que nem conheço sequer. Isto só é possível realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro que se tornou comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento. Então aprendo a ver aquela pessoa já não somente com os meus olhos e sentimentos, mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo ». Desta forma, nas pessoas que contacto, reconheço irmãs e irmãos, pelos quais o Senhor deu a sua vida amando-os « até ao fim » (Jo 13, 1). Por conseguinte, as nossas comunidades, quando celebram a Eucaristia, devem consciencializar-se cada vez mais de que o sacrifício de Jesus é por todos; e, assim, a Eucaristia impele todo o que acredita n'Ele a fazer-se « pão repartido » para os outros e, consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais justo e fraterno. Como sucedeu na multiplicação dos pães e dos peixes, temos de reconhecer que Cristo continua, ainda hoje, exortando os seus discípulos a empenharem-se pessoalmente: « Dai-lhes vós de comer » (Mt 14, 16). Na verdade, a vocação de cada um de nós consiste em ser, unido a Jesus, pão repartido para a vida do mundo.
AS IMPLICAÇÕES SOCIAIS DO MISTÉRIO EUCARÍSTICO
89. A união com Cristo, que se realiza no sacramento, habilita-nos também a uma novidade de relações sociais: « a ‘‘mística'' do sacramento tem um carácter social, porque (...) a união com Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele Se entrega. Eu não posso ter Cristo só para mim; posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se tornaram ou hão-de tornar Seus ». A propósito, é necessário explicitar a relação entre mistério eucarístico e compromisso social. A Eucaristia é sacramento de comunhão entre irmãos e irmãs que aceitam reconciliar-se em Cristo, o Qual fez de judeus e gentios um só povo, destruindo o muro de inimizade que os separava (Ef 2, 14). Somente esta tensão constante à reconciliação permite comungar dignamente o corpo e o sangue de Cristo (Mt 5, 23-24). Através do memorial do seu sacrifício, Ele reforça a comunhão entre os irmãos e, de modo particular, estimula os que estão em conflito a apressar a sua reconciliação, abrindo-se ao diálogo e ao compromisso em prol da justiça. A restauração da justiça, a reconciliação e o perdão são, sem dúvida alguma, condições para construir uma verdadeira paz; desta consciência nasce a vontade de transformar também as estruturas injustas, a fim de se restabelecer o respeito da dignidade do homem, criado à imagem e semelhança de Deus; é através da realização concreta desta responsabilidade que a Eucaristia se torna na vida o que significa na celebração. Como já tive ocasião de afirmar, não é missão própria da Igreja tomar nas suas mãos a batalha política para se realizar a sociedade mais justa possível; todavia, ela não pode nem deve ficar à margem da luta pela justiça. A Igreja « deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar ».
Na perspectiva da responsabilidade social de todos os cristãos, os padres sinodais lembraram que o sacrifício de Cristo é mistério de libertação que nos interpela e provoca continuamente; dirijo, pois, um apelo a todos os fiéis para que se tornem realmente obreiros de paz e justiça: « Com efeito, quem participa na Eucaristia deve empenhar-se na edificação da paz neste nosso mundo marcado por muitas violências e guerras, e, hoje de modo particular, pelo terrorismo, a corrupção económica e a exploração sexual »; problemas, estes, que geram por sua vez outros fenómenos degradantes que causam viva preocupação. Sabemos que estas situações não podem ser encaradas de modo superficial. Precisamente em virtude do mistério que celebramos, é preciso denunciar as circunstâncias que estão em contraste com a dignidade do homem, pelo qual Cristo derramou o seu sangue, afirmando assim o alto valor de cada pessoa.
O ALIMENTO DA VERDADE E A INDIGÊNCIA DO HOMEM
90. Não podemos ficar inactivos perante certos processos de globalização, que não raro fazem crescer desmesuradamente a distância entre ricos e pobres a nível mundial. Devemos denunciar quem delapida as riquezas da terra, provocando desigualdades que bradam ao céu (Tg 5, 4). Por exemplo, é impossível calar diante das « imagens impressionantes dos grandes campos de deslocados ou refugiados — em várias partes do mundo — amontoados em condições precárias para escapar a sorte pior, mas carecidos de tudo. Porventura estes seres humanos não são nossos irmãos e irmãs? Os seus filhos não vieram ao mundo com os mesmos legítimos anseios de felicidade que os outros? ». O Senhor Jesus, pão de vida eterna, incita a tornarmo-nos atentos às situações de indigência em que ainda vive grande parte da humanidade: são situações cuja causa se fica a dever, frequentemente, a uma clara e preocupante responsabilidade dos homens. De facto, « com base em dados estatísticos disponíveis, pode-se afirmar que bastaria menos de metade das somas imensas globalmente destinadas a armamentos para tirar, de forma estável, da indigência o exército ilimitado dos pobres. Isto interpela a consciência humana. Às populações que vivem sob o limiar da pobreza, mais por causa de situações que dependem das relações internacionais políticas, comerciais e culturais do que por circunstâncias incontroláveis, o nosso esforço comum verdadeiramente pode e deve oferecer-lhes nova esperança ».
O alimento da verdade leva-nos a denunciar as situações indignas do homem, nas quais se morre à míngua de alimento por causa da injustiça e da exploração, e dá-nos nova força e coragem para trabalhar sem descanso na edificação da civilização do amor. Desde o princípio, os cristãos tiveram a preocupação de partilhar os seus bens (Act 4, 32) e de ajudar os pobres (Rm 15, 26). O peditório que se realiza nas assembleias litúrgicas constitui viva reminiscência disso mesmo, mas é também uma necessidade muito actual. As instituições eclesiais de beneficência, de modo particular a Caritas nos seus vários níveis, realizam o valioso serviço de auxiliar as pessoas em necessidade, sobretudo os mais pobres. Tirando inspiração da Eucaristia, que é o sacramento da caridade, aquelas tornam-se a sua expressão concreta; por isso, merecem todo o aplauso e estímulo pelo seu empenho solidário no mundo.
A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
91. O mistério da Eucaristia habilita-nos e impele-nos a um compromisso corajoso nas estruturas deste mundo para lhes conferir aquela novidade de relações que tem a sua fonte inexaurível no dom de Deus. O pedido que repetimos em cada Missa: « O pão nosso de cada dia nos dai hoje », obriga-nos a fazer tudo o que for possível, em colaboração com as instituições internacionais, estatais, privadas, para que cesse ou pelo menos diminua, no mundo, o escândalo da fome e da subnutrição que padecem muitos milhões de pessoas, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento. Particularmente o leigo cristão, formado na escola da Eucaristia, é chamado a assumir directamente a sua responsabilidade político-social; a fim de poder desempenhar adequadamente as suas funções, é preciso prepará-lo através duma educação concreta para a caridade e a justiça. Para isso, como foi pedido pelo Sínodo, é necessário que, nas dioceses e comunidades cristãs, se dê a conhecer e incremente a doutrina social da Igreja. Neste precioso património, nascido da mais antiga tradição eclesial, encontramos os elementos que orientam, com profunda sabedoria, o comportamento dos cristãos nas questões sociais em ebulição. Amadurecida durante toda a história da Igreja, esta doutrina caracteriza-se pelo seu realismo e equilíbrio, ajudando assim a evitar promessas enganadoras ou vãs utopias.
SANTIFICAÇÃO DO MUNDO E DEFESA DA CRIAÇÃO
92. Enfim, para desenvolver uma espiritualidade eucarística profunda, capaz de incidir significativamente também no tecido social, é necessário que o povo cristão, ao dar graças por meio da Eucaristia, tenha consciência de o fazer em nome da criação inteira, aspirando assim à santificação do mundo e trabalhando intensamente para tal fim. A própria Eucaristia projecta uma luz intensa sobre a história humana e todo o universo. Nesta perspectiva sacramental, aprendemos dia após dia que cada acontecimento eclesial possui o carácter de sinal, pelo qual Deus Se comunica a Si mesmo e nos interpela. Desta maneira, a forma eucarística da existência pode verdadeiramente favorecer uma autêntica mudança de mentalidade no modo como lemos a história e o mundo. Para tudo isto nos educa a própria liturgia quando o sacerdote, durante a apresentação dos dons, dirige a Deus uma oração de bênção e súplica a respeito do pão e do vinho, « fruto da terra », « da videira » e do « trabalho do homem ». Com estas palavras, o rito, além de envolver na oferta a Deus toda a actividade e canseira humana, impele-nos a considerar a terra como criação de Deus, que produz quanto precisamos para o nosso sustento. Não se trata duma realidade neutral, nem de mera matéria a ser utilizada indiferentemente segundo o instinto humano; mas coloca-se dentro do desígnio amoroso de Deus, segundo o qual todos nós somos chamados a ser filhos e filhas de Deus no seu único Filho, Jesus Cristo (Ef 1, 4-12). As condições ecológicas em que a criação subjaz em muitas partes do mundo suscitam justas preocupações, que encontram motivo de conforto na perspectiva da esperança cristã, pois esta compromete-nos a trabalhar responsavelmente na defesa da criação; (250) de facto, na relação entre a Eucaristia e o universo, descobrimos a unidade do desígnio de Deus e somos levados a individuar a relação profunda da criação com a « nova criação » que foi inaugurada na ressurreição de Cristo, novo Adão. Dela participamos já agora em virtude do Baptismo (Col 2, 12s), abrindo-se assim à nossa vida cristã, alimentada pela Eucaristia, a perspectiva do mundo novo, do novo céu e da nova terra, onde a nova Jerusalém desce do céu, de junto de Deus, « bela como noiva adornada para o seu esposo » (Ap 21, 2).
UTILIDADE DUM COMPÊNDIO EUCARÍSTICO
93. No termo destas reflexões em que de boa vontade me detive sobre as indicações surgidas no Sínodo, desejo acolher também o pedido que os padres apresentaram para ajudar o povo cristão a crer, celebrar e viver cada vez melhor o mistério eucarístico. Cuidado pelos Dicastérios competentes, há-de ser publicado um Compêndio, que recolha textos do Catecismo da Igreja Católica, orações, explicações das Orações Eucarísticas do Missal e tudo o mais que possa demonstrar-se útil para a correcta compreensão, celebração e adoração do sacramento do altar. Espero que este instrumento possa contribuir para que o memorial da páscoa do Senhor se torne cada dia sempre mais fonte e ápice da vida e da missão da Igreja; isto animará cada fiel a fazer da sua própria vida um verdadeiro culto espiritual.